“Como cooperadores de Deus, insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus” (2ª Coríntios 6:1)
O quinto e último ponto da TULIP calvinista é o da “perseverança dos santos”. Com isso, o que eles estão querendo dizer é que, não importa o que aconteça, os que forem uma vez salvos nunca poderão perder a salvação – eles irão necessariamente perseverar até o fim e nunca apostatarão. É daí que surge o lema calvinista de que, “uma vez salvo, sempre salvo”. Usando as palavras de Calvino, “todos os que têm suas raízes fincadas em Deus jamais poderão ser desarraigados da salvação”[1]. Ele também disse:
“Nos membros de Cristo o poder da graça se afigura muito mais excelente, porque, enxertados em seu Cabeça, nunca apostatam da salvação”[2]
Por outro lado, na Conferência de Remonstrantes ficou decidido que “pessoas verdadeiramente regeneradas, ao negligenciarem a graça e entristecerem o Espírito Santo com pecado, decaem totalmente e, finalmente, da graça para a eterna reprovação”[3]. Os arminianos defendem que a perda da salvação é possível diante de três fatores principais: (a) a condicionalidade da perseverança; (b) a possibilidade da apostasia; (c) a expressa declaração de crentes que caíram da graça.
Como o próprio Armínio deixou este ponto em aberto, alguns arminianos aderem a este “P” na TULIP, sendo conhecidos como “arminianos de quatro pontos”. Iremos analisar as objeções deles também na análise de cada texto que será passado aqui na defesa do ponto de vista bíblico de que a apostasia é possível e que a perseverança é condicional[4].
• Hebreus 6:4-6
Um dos textos mais famosos e mais claros na descrição bíblica da perda da salvação é o de Hebreus 6:4-6, que diz:
“Ora para aqueles que uma vez foram iluminados, provaram o dom celestial, tornaram-se participantes do Espírito Santo, experimentaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da era que há de vir, e caíram, é impossível que sejam reconduzidos ao arrependimento; pois para si mesmos estão crucificando de novo o Filho de Deus, sujeitando-o à desonra pública” (Hebreus 6:4-6)
Há dois meios pelos quais o calvinista tenta desmerecer a evidência deste texto. O primeiro é dizendo que estas pessoas nunca foram realmente salvas uma vez, e a segunda (defendida por aqueles que admitem que estas pessoas foram salvas) é dizendo que estas pessoas nunca perderam a salvação. A tese de que aquelas pessoas (independentemente se eram judeus ou não) não haviam alcançado a salvação é claramente falsa pelo contexto, que diz que elas:
- Foram iluminadas.
- Provaram o dom celestial.
- Tornaram-se participantes do Espírito Santo.
- Experimentaram os poderes da era que há de vir.
- Arrependeram-se.
Se tudo isso for características de um não-salvo, então somos forçados a renegar tudo aquilo que o próprio Calvino escreveu sobre os outros pontos da TULIP, em especial o da depravação total e graça irresistível. Os não-salvos, diz a Bíblia, estão em trevas (1Jo.2:11; Ef.5:11; Lc.11:35), e não “iluminados”, como diz o texto. Os não-salvos também não possuem dons espirituais, que são dados pelo Espírito Santo aos que creem (1Co.12:4-31). Os não-salvos também não são participantes do Espírito Santo, pois o Espírito Santo só habita naqueles que foram uma vez regenerados (Ef.4:30).
O texto também diz que eles caíram, e, se eles caíram, é porque estavam de pé antes. Mas o não-regenerado não está “de pé”, ele está caído. Ele ainda está morto em seus próprios pecados (Ef.2:1), e não “de pé”, vivo na corrida da fé. O homem ainda não-salvo está caído e morto em seus pecados, e não de pé e vivo. Quando se considera o caso cumulativo, teríamos que crer que um não-regenerado possui todas as características presentes em um regenerado, se o texto realmente faz menção a pessoas que nunca foram salvas (regeneradas).
Essa queda não foi algo superficial, mas tão profundo ao ponto de que elas crucificaram o Filho de Deus. Se isso não soa forte o suficiente ao ponto de perder a salvação, eu não sei que tipo de linguagem poderia ser expressa para representar isso. Teríamos que crer, por essa lógica de alguns calvinistas, que pessoas que crucificam o Filho de Deus e o sujeitam à desonra pública nunca perdem a salvação. Isso é simplesmente ridículo.
Assim sendo, diante de todo o contexto, essa queda de quem antes estava de pé não foi uma queda pequena. Não foi simplesmente “um tropeço”. Foi algo tão forte e tão profundo que os fizeram crucificar de novo o Filho de Deus e sujeitá-lo à desonra pública, de forma tal que, por isso, um novo arrependimento para aqueles que caíram desta maneira é algo impossível. Eles não podem novamente se arrepender destes pecados cometidos que os fizeram crucificar Jesus espiritualmente.
E, se não podem se arrepender destes pecados, também não podem ser salvos, pois sem arrependimento não há salvação. Que o arrependimento é um precedente necessário à salvação, isso é de concordância mútua de arminianos e calvinistas, e é um princípio bíblico básico e fundamental, presente em toda a Escritura (Ap.2:21; 3:19). Jesus claramente disse que, “se não se arrependerem, todos vocês perecerão” (Lc.13:15). Pessoas que se recusam a se arrepender não podem ser salvas, pois ainda estão mortas em seus pecados. Portanto, essa queda foi tão profunda que implicou em perda de salvação e impossibilidade de resgatá-la.
• Hebreus 10:26-31
“Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hebreus 10:26,27)
Que o texto fala de pessoas que foram salvas (cristãos), isso é dedutível do fato de que o autor da epístola estava escrevendo a judeus convertidos, ou seja, ao povo cristão. Nos versos anteriores, por exemplo, ele diz:
“Sendo assim, aproximemo-nos de Deus com um coração sincero e com plena convicção de fé, tendo os corações aspergidos para nos purificar de uma consciência culpada e tendo os nossos corpos lavados com água pura. Apeguemo-nos com firmeza à esperança que professamos, pois aquele que prometeu é fiel. E consideremo-nos uns aos outros para incentivar-nos ao amor e às boas obras” (Hebreus 10:22-24)
Corpos lavados com água pura, apego à fé que professa, incentivo ao amor e às boas obras. Tudo isso é uma linguagem referente a pessoas cristãs, que já passaram pelo primeiro estágio, o da regeneração. Elas já receberam o “pleno conhecimento da verdade” (v.26), e, para isso, era necessário que Deus lhes abrisse os olhos para que elas compreendessem a totalidade do evangelho, coisa que só ocorre com pessoas regeneradas (At.26:18).
Mesmo assim, ao invés de ele dizer a tais pessoas que elas já estavam garantidas e confirmadas na fé até o fim e que de modo algum poderiam perder a salvação, ele afirma justamente o contrário: que ainda é possível pecar voluntariamente e que, neste caso, resta-lhes apenas o fogo do juízo que lhes irá devorar. É uma linguagem forte, especialmente usada para mostrar a condenação que lhes espera em caso de apostasia.
Se aquelas pessoas não fossem salvas, teríamos que presumir que um descrente, ao ter conhecimento do evangelho e mesmo assim continuar vivendo no pecado, já não tem mais chance de salvação. Isso é irracional e nenhum calvinista ensina isso, pois, de fato, o texto trata de pessoas já regeneradas, que, da mesma forma, podem perecer no dia do juízo, caso passem a pecar voluntariamente.
Por fim, o contexto indica que essas pessoas estavam na fé, pois diz:
“Vocês precisam perseverar, de modo que, quando tiverem feito a vontade de Deus, recebam o que ele prometeu; pois em breve, muito em breve ‘Aquele que vem virá, e não demorará. Mas o meu justo viverá pela fé. E, se retroceder, não me agradarei dele’” (Hebreus 10:36-38)
Se é possível alguém “retroceder”, é porque antes estava no caminho. Não era um descrente, mas um regenerado, convertido, alguém que estava na fé, mas precisava perseverar neste caminho até o fim e não retroceder dele. Embora alguns nomes como Geisler insistam que este “retroceder” não se refere à perda da salvação, mas apenas da recompensa, todo o contexto mostra claramente que tais pessoas não perderão apenas a recompensa, mas serão condenadas no dia do juízo. O autor de Hebreus demonstra isso ao dizer:
“Quem rejeitava a lei de Moisés morria sem misericórdia pelo depoimento de duas ou três testemunhas. Quão mais severo castigo, julgam vocês, merece aquele que pisou aos pés o Filho de Deus, que profanou o sangue da aliança pelo qual ele foi santificado, e insultou o Espírito da graça? Pois conhecemos aquele que disse: ‘A mim pertence a vingança; eu retribuirei’; e outra vez: ‘O Senhor julgará o seu povo’. Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo!” (Hebreus 10:28-31)
Em primeiro lugar, a analogia com a lei de Moisés já deveria encerrar a questão. Os que pecavam na lei perdiam apenas a recompensa ou eram de fato mortos? A resposta é óbvia: eram mortos. O autor de Hebreus mostra que o castigo que aguarda tais pessoas é maior do que o castigo que passou aqueles que pecaram sob a lei. Enquanto ali era apenas uma morte passageira (primeira morte, pois ainda havia a ressurreição), agora é uma morte eterna (segunda morte, a morte final e irreversível). Logo, pela analogia já podemos perceber que o texto não trata apenas de perda de recompensa, mas do castigo da morte eterna.
Outros elementos no texto também demonstram isso, como, por exemplo, o fato de tal pessoa ter pisado os pés no Filho de Deus (v.29), profanado o sangue da aliança (v.29) e insultado o Espírito Santo (v.29). Será que uma pessoa que pisa em Jesus, que profana o Seu sangue e blasfema contra o Espírito Santo é salva, e apenas perde uma recompensa? É lógico que não. Tais pessoas são, obviamente, apóstatas, que se desviaram não parcialmente, mas totalmente da fé. O verso final mostra isso com ainda mais clareza, ao dizer que terrível coisa é cair nas mãos de Deus (v.31). Será que essa coisa tão terrível é estar no Céu sem recompensa?
À vista de tudo isso, o “retroceder na fé”, como mostra o contexto (Hb.10:36-38), não se trata apenas da perda de galardão para uma pessoa salva, mas da perda da salvação para alguém que caiu a tal ponto que pisou os pés em Cristo, profanou o Seu sangue, blasfemou contra o Espírito Santo e que terá um terrível castigo mais severo que a morte daqueles que estavam sob a antiga aliança, aguardando uma “certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (v.27). Se isso não é a descrição de um perdido em uma condição de condenação, sinceramente não sei como isso poderia ser expresso em palavras.
• João 15:1-7
“Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda. Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado. Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim. Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma. Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido” (João 15:1-7)
Cristo estava ensinando por analogia que o fato de um dia fazer parte de Seu corpo não garante a salvação final, pois é necessária a perseverança até o fim. Da mesma forma, ele ensina que é possível que alguém que uma vez foi salvo não persevere e não confirme esta salvação. Alegar que tais pessoas descritas nesta analogia não eram salvas é inútil, pois Jesus disse que elas estavam nele (v.2). Se elas estavam nele, faziam parte do Seu corpo, a Igreja invisível eleita para a salvação e espalhada em todo o mundo.
Outro detalhe que nos mostra que essas pessoas eram salvas é o fato de já estarem limpas (v.3). Sabemos que a santificação é um processo de purificação que sucede a regeneração. Pessoas são salvas por Deus, regeneradas e, então, santificadas. Se essas pessoas já estavam limpas pela palavra de Cristo, é porque elas já haviam sido regeneradas e estavam, consequentemente, salvas, naquele momento.
Mais uma coisa que nos ajuda a concluir que tais “ramos” estavam salvos era que eles teriam que permanecer em Cristo. Se eles tinham que “permanecer”, é porque já estavam nele. Da mesma forma que é sem sentido dizer para alguém “permanecer em casa” se não está em casa, é sem razão dizer para alguém “permanecer em Cristo” se já não está em Cristo. E, se elas estavam em Cristo, faziam parte do Corpo e eram genuinamente cristãs. Cristãos nominais não fazem parte do Corpo nem estão em Cristo, embora frequentem uma igreja física. O texto está claramente tratando de cristãos de fato.
Por fim, o último ponto que nos leva a crer que Jesus estava falando de pessoas já salvas é que ele dirigia aquelas palavras, em primeiro lugar, aos seus próprios discípulos, que ali estavam. Estavam ali Cristo e onze apóstolos, pois Judas já havia deixado aquele lugar para ir vender Jesus aos sacerdotes (Jo.13:30). Depois que Judas saiu, Jesus continuou seu discurso aos onze discípulos e, referindo-se a eles, disse as palavras que lemos no capítulo 15. Partindo da premissa óbvia de que aqueles onze discípulos eram verdadeiros crentes e pessoas já salvas, é lógico que aquilo se aplica a pessoas regeneradas.
Que aquelas palavras foram ditas a pessoas já salvas, isso é indiscutível. Mas será mesmo que Cristo estava abrindo uma possibilidade de apostasia e de perda de salvação para elas? A resposta é que sim, analisando o mesmo contexto. Ele diz que aqueles ramos poderiam ser cortados (Jo.15:2) e que poderiam não permanecer na videira (v.4), que era ele mesmo. Deixando de fazer parte do Corpo, deixariam de ser salvos, pois apenas serão salvos os que estão em Cristo, e não fora dele.
O verso 6 mostra com ainda mais clareza que este “cortar” não significa apenas a “perda da recompensa”, mas a própria perda da salvação, com a consequente condenação ao inferno. Ele diz:
“Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados” (João 15:6)
Estes ramos, que estavam em Cristo mas não permaneceram nele, serão cortados, jogados fora, apanhados, lançados ao fogo e queimados, que é exatamente a mesma linguagem empregada aos ímpios que serão condenados (Mt.13:40; Mt.7:19; Mc.9:44; Ap.20:14). Portanto, temos aqui o retrato perfeito de pessoas que estavam salvas em Cristo, e que, mesmo assim, poderiam ser excluídas do Corpo, lançadas ao fogo e queimadas.
Aquelas palavras estavam sendo aplicadas primeiramente aos onze discípulos que ali estavam, mas, logicamente, também se aplicam por extensão a qualquer cristão que hoje esteja em Cristo. A mensagem transmitida era muito clara: não basta apenas estar em Cristo, é preciso permanecer nele até o fim, e a possibilidade da apostasia (ser cortado e lançado ao fogo) era real e existente.
• 1ª Coríntios 9:27
“Mas esmurro o meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado” (1ª Coríntios 9:27)
Este é um texto que não precisamos provar pelo contexto que se trata de pessoas já salvas, porque Paulo fala de si mesmo, e os calvinistas creem que Paulo era um predestinado à salvação incondicional. O foco da questão, então, fica por conta do “reprovado”. Arminianos creem que essa reprovação é a perda da salvação e consequente condenação no dia do juízo. Como os calvinistas negam que seja possível perder a salvação, eles são obrigados a sustentar a tese de que essa reprovação é a mera perda de galardão no Céu[7].
Logo de cara é difícil imaginar alguém que está salvo no Céu e reprovado. O bom senso nos diz que os aprovados são salvos e os reprovados são condenados, assim como em uma prova de vestibular, em que só é possível passar (ser aprovado) e não passar (ser reprovado). Sustentar a tese de que é possível passar (ser salvo) sem ser aprovado é algo tão ilógico quanto alegar o inverso, de que é possível não passar (ser condenado) sem ser reprovado.
Em toda a Bíblia, a aprovação refere-se à salvação geral dos crentes e a reprovação refere-se à perdição dos descrentes. Não há nenhum lugar da Bíblia que mostre que Deus rejeitou alguém que foi salvo, e nenhum lugar que diga que Deus aprovou alguém que foi condenado. 1ª Coríntios 4:5 nos diz que todos os crentes que forem salvos na volta de Jesus receberão a Sua aprovação (1Co.4:5). Não diz que parte dos crentes salvos será aprovada e outra parte será reprovada, mas salva assim mesmo.
Além disso, o termo “reprovado” sempre se refere a alguém que perde a salvação, e não a alguém que permanece salvo mesmo sem uma recompensa. Não precisamos ir muito longe: basta conferirmos o que o mesmo apóstolo disse aos mesmos coríntios e usando a mesma palavra para se referir a alguém que se desviou da fé e não está mais em Cristo:
“Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos. Não percebem que Cristo Jesus está em vocês? A não ser que tenham sido reprovados!” (2ª Coríntios 13:5)
Por este texto, vemos que por “reprovado” Paulo entendia como sendo aquele que não estava na fé e não tinha Cristo em si mesmo. Sem Cristo e sem fé, não há qualquer salvação! Paulo também disse que os que são reprovados tem a mente totalmente depravada e resistem à verdade (2Tm.3:8), e diz que “eles afirmam que conhecem a Deus, mas por seus atos o negam; são detestáveis, desobedientes e reprovados para qualquer boa obra” (Tt.1:6).
Como vemos, a reprovação nunca é sinônimo de “salvação sem recompensa”. Ela sempre, em todas as ocasiões, incluindo pelo uso do próprio Paulo e aos mesmos destinatários, se refere a pessoas não-salvas, totalmente depravadas, desqualificadas para qualquer boa obra, que não estão mais na fé nem tem Jesus em seus corações. À vista disso, é realmente uma forçação de barra alegar que os reprovados continuam salvos. Isso é tão ilógico quanto admitir que há salvos que não recebem recompensa nenhuma (que é o que foi argumentado por eles), pois a própria vida eterna já é uma recompensa, e ela é livremente desfrutada por todos os salvos.
Paulo também não estaria tão disposto a fazer do seu corpo seu escravo e esmurrá-lo até a sujeição se fosse por algo que não envolvesse salvação ou perdição, mas meros bens futuros a mais do que outros. Se todos os justos desfrutam igualmente da vida eterna, a “recompensa” a mais que alguns ensinam se resumiria, como eles dizem, a uma “mansão maior e mais bonita no Céu”, e é realmente suspeito se Paulo iria se sujeitar a tudo aquilo que o texto diz se o que estivesse em jogo não fosse algo realmente importante, como vida eterna e morte eterna.
Calvinistas não tratam o texto conforme o seu rigor, não o interpretam como tratando de realidades eternas diferentes e opostas entre si, mas o resumem a algo muito menos importante, subtraindo do texto a sua significância. Mas há também razões contextuais que nos mostram que Paulo estava falando da perda da salvação. Logo em seguida, ao entrar no capítulo 10, Paulo prossegue citando o exemplo de reprovação dos israelitas, e diz:
“Porque não quero, irmãos, que vocês ignorem o fato de que todos os nossos antepassados estiveram sob a nuvem e todos passaram pelo mar. Em Moisés, todos eles foram batizados na nuvem e no mar. Todos comeram do mesmo alimento espiritual e beberam da mesma bebida espiritual; pois bebiam da rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo. Contudo, Deus não se agradou da maioria deles; por isso os seus corpos ficaram espalhados no deserto. Essas coisas ocorreram como exemplos para nós, para que não cobicemos coisas más, como eles fizeram” (1ª Coríntios 10:1-6)
Como no original não havia nenhuma divisão entre capítulos e versículos, o capítulo 10 sucedia imediatamente o verso 9:27, que é o último do capítulo 9. Paulo não estava mudando de assunto, mas complementando a mesma coisa que havia sido abordada, citando alguns exemplos que elucidavam aquilo que ele entendia como sendo a “reprovação”. O “porque” do verso 1 é claramente um complemento do que foi dito no último verso do capítulo anterior, continuando a mesma mensagem, com uma finalidade explicativa.
Ao citar um exemplo de reprovação, ele faz uso dos acontecimentos em torno dos israelitas na antiga aliança. Ele diz que Deus reprovou a maioria deles, e deixa implícito que esses reprovados não apenas perderam uma recompensa, pois seus corpos ficaram esplhados pelo deserto (mortos) como exemplo (tipologia) para nós, sobre o risco de cairmos em morte eterna, como os israelitas que morreram no deserto por desobedecerem a Deus. E ele finaliza dizendo:
“Não sejam idólatras, como alguns deles foram, conforme está escrito: ‘O povo se assentou para comer e beber, e levantou-se para se entregar à farra’. Não pratiquemos imoralidade, como alguns deles fizeram – e num só dia morreram vinte e três mil. Não devemos pôr o Senhor à prova, como alguns deles fizeram – e foram mortos por serpentes. E não se queixem, como alguns deles se queixaram – e foram mortos pelo anjo destruidor. Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos. Assim, aquele que julga estar firme, cuide-se para que não caia!” (1ª Coríntios 10:7-12)
Paulo prossegue citando outros exemplos dos pecados cometidos pelos israelitas de outrora e da punição que eles receberam, citando a idolatria, a imoralidade e a murmuração, e a punição como sendo a morte em todos os casos. Ele diz que aquilo serve de exemplo para nós, porque o mesmo pode acontecer conosco nos dias de hoje. Aquele que está de pé tem que se cuidar para não cair.
Diante de todo o contexto, este “cair” e esta “reprovação” de que Paulo tanto falava nunca esteve relacionado à uma salvação sem recompensa, mas sim à perda da salvação, com a consequente condenação à morte no dia do juízo, exatamente como ocorreu com os israelitas rebeldes e reprovados no deserto.
Se tudo o que Paulo estava dizendo era que esse “cair” e essa “reprovação” nada mais é senão apenas uma perda de recompensa para pessoas ainda salvas, todo o contexto se perderia e suas analogias seriam inúteis e falhas, já que em nenhuma analogia ele cita uma pessoa salva sem recompensa, mas fala sempre da condenação com a morte de pessoas que não foram salvas.
Se isso não é suficiente para mostrar que essa reprovação não se resume a perda de recompensa, que os calvinistas nos mostrem as maravilhosas provas lógicas e contextuais que indiquem de forma lúcida e clara que tais reprovados são “salvos sem recompensa”. A verdade é que eles não tem nenhuma prova e nenhum argumento, eles simplesmente afirmam, porque a priori estão amarrados à crença de que o crente não pode perder a salvação de jeito nenhum, e são forçados a manipularem e distorcerem o sentido claro dos textos bíblicos para que eles possam se alinhar a esta visão distorcida da realidade.
• Tiago 5:19-20
“Meus irmãos, se algum de vocês se desviar da verdade e alguém o trouxer de volta, saiba que aquele que fizer converter do erro do seu caminho um pecador, salvará da morte uma alma, e cobrirá uma multidão de pecados” (Tiago 5:19,20)
As palavras acima de Tiago dificilmente podem ser bem compreendidas dentro do prisma calvinista de que é impossível perder a salvação. Isso porque ele está falando de uma pessoa salva, que estava na verdade, no caminho, pois apenas alguém que está trilhando o caminho pode se “desviar” dele. Nenhum descrente ou não-regenerado está trilhando o caminho da salvação, e, consequentemente, nenhum deles pode se “desviar” de um caminho no qual nunca esteve. Se ele se desviou da verdade, é porque antes cria na verdade, que é Jesus Cristo.
Mas a continuação do verso nos mostra que tal pessoa desviada deixa o caminho. Se ela precisa ser trazida de volta ao caminho, é porque o deixou neste desvio. E, fora do caminho, não há salvação. O texto também mostra que, se uma pessoa a converter novamente ao caminho, salvará uma alma da morte, o que mostra claramente que tal pessoa desviada teria a morte eterna como destino final caso não houvesse ninguém que a trouxesse de volta ao caminho. A perseverança é nitidamente condicional e a possibilidade de apostasia total é real.
Isso tudo demonstra que é possível que alguém que hoje está no caminho venha a deixá-lo, ficando de fora e perecendo para sempre. Para os calvinistas, alguém que se perde nunca foi um crente verdadeiro; consequentemente, nunca esteve no caminho. Para a Bíblia, é possível se desviar do caminho uma vez que já se esteve nele. Para os calvinistas, alguém que está no caminho pode apenas “tropeçar”, mas nunca cair definitivamente, nunca se desviar ao ponto de perder a salvação. Para a Bíblia, esse que se desvia corre o risco de morrer eternamente, caso ninguém o convença de voltar à fé. São conceitos diametralmente opostos.
• 2ª Pedro 2:20-22
“Se, tendo escapado das contaminações do mundo por meio do conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, encontram-se novamente nelas enredados e por elas dominados, estão em pior estado do que no princípio. Teria sido melhor que não tivessem conhecido o caminho da justiça, do que, depois de o terem conhecido, voltarem as costas para o santo mandamento que lhes foi transmitido. Confirma-se neles que é verdadeiro o provérbio: ‘O cão voltou ao seu vômito’ e ainda: ‘A porca lavada voltou a revolver-se na lama’” (2ª Pedro 2:20-22)
Este texto de Pedro descreve com perfeição a realidade de que é possível que alguém que foi uma vez regenerado volte aos pecados de outrora. Ele diz que certas pessoas escaparam das contaminações do mundo por meio de Jesus Cristo (v.20), o que descreve com perfeição a regeneração que ocorre no pecador que crê. Mais uma vez devemos observar que é um ponto comum entre calvinistas e arminianos que a santificação é um processo de sucede a regeneração, no seguinte esquema:
– Chamado
– Regeneração
– Santificação
– Glorificação
Mas note que essas pessoas já tinham escapado das contaminações do mundo (2Pe.2:20), e através de Jesus Cristo. Isso obviamente significa que elas já tinham passado pelo estágio da regeneração e estavam em processo de santificação. Se elas já tinham escapado da contaminação do mundo, é porque não estavam mais contaminadas nem estavam mais no mundo. Se não estavam mais contaminadas então estavam santificadas, e se não estavam mais no mundo então estavam em Cristo.
De outra forma, teríamos que sustentar que pessoas não-eleitas e não-regeneradas podem mesmo assim escapar das contaminações do mundo de alguma forma, o que afundaria todo o conceito de depravação total (que inclui a contaminação da carne e o apego ao mundo), que é crido tanto por calvinistas como por arminianos.
É somente pela regeneração que o homem que estava completamente depravado e afundado no pecado pode “escapar das contaminações do mundo por meio de Jesus Cristo”, e, se é assim, segue-se logicamente que aquelas pessoas já tinham obtido a regeneração e, consequentemente, estavam salvas, naquele momento.
A continuação do verso exemplifica isso muito bem, ao se citar o exemplo da porca que foi lavada, mas voltou ao vômito (v.22). A porca sendo lavada é uma figura do homem pecador sendo purificado pela graça. Mas o texto mostra que é possível voltar ao vômito, que é o pecado. Mais uma vez, o conceito de voltar ao pecado depois que foi uma vez salvo é claro e evidente. R. C. Sproul é um dos que lutam contra a clareza do texto bíblico, dizendo:
“Pedro também fala da porca lavada voltando a revolver-se no lamaçal e do cão que volta a seu vômito, comparando-os a pessoas que se desviaram depois de serem instruídas no caminho da justiça. Há falsos convertidos cujas naturezas nunca foram mudadas (2 Pe.2.22)”[8]
Como vemos, ele afirma que aquelas pessoas nunca foram regeneradas. Mas, se elas não foram regeneradas, como haviam escapado das contaminações do mundo? E como haviam sido lavadas? Deus lava sem regenerar? Ele tira do mundo sem trazer para Cristo? Ele santifica quem ele não salva? Sproul apenas afirma que aqueles “porcos” continuavam sendo “porcos”, o que não resolve em nada a questão.
Era óbvio que porcos continuariam sendo porcos, da mesma forma que pessoas continuam sendo pessoas, estando elas no pecado ou não. O que determina se aquelas pessoas foram regeneradas não é por continuar possuindo a mesma natureza, que é impossível que se mude, e sim se essa natureza foi purificada do pecado ou não.
Todos nós somos homens pecadores que continuaremos sendo homens pecadores estando regenerados ou não. O que muda no homem regenerado é que ele é limpo destes pecados ao invés de continuar vivendo neles. Pedro nos diz que aqueles porcos foram limpos, que é uma figura do homem que é purificado do pecado. O fato de a porca ter voltado à lama só prova que é possível um regenerado voltar a viver no pecado, e não que ele nunca foi regenerado!
Da mesma forma que uma porca lavada pode voltar à lama, um homem regenerado pode voltar ao pecado. Era isso o que estava sendo ensinado ali. Presumir que a porca teria que mudar sua natureza e se tornar outro animal na analogia de Pedro é algo completamente ridículo. O que determina é o estado da porca e não o fato dela ser uma porca, da mesma forma que o que determina a salvação do homem é o estado do homem (de regenerado ou não-regenerado), e não o fato dele ser um homem!
Tais pessoas que voltam ao pecado depois de terem sido santificadas perdem a salvação porque se encontram em pior estado do que no princípio, quando ainda não eram salvas (2Pe.2:21). Se quando elas não conheciam o caminho da justiça elas não eram salvas, então depois de terem se desviado do caminho elas também não são salvas, pois se encontram em pior estado do que no princípio. Consequentemente, elas não podem permanecer como salvas.
Se a salvação não pudesse ser perdida e elas continuassem salvas, elas obviamente estariam em estado melhor do que quando elas ainda não conheciam a verdade, pois antes elas não eram salvas, e agora são. Se elas estão em pior estado, é porque caíram ao estado de não-salvas e tem ainda menos chances de recuperar aquilo que perderam.
• Mateus 24:24
“Pois aparecerão falsos cristos e falsos profetas que realizarão grandes sinais e maravilhas para, se possível, enganar até os eleitos” (Mateus 24:24)
Calvinistas argumentam, com base neste texto, que é impossível enganar os eleitos. Mas não é isso o que o texto diz. O texto não está dizendo “se fosse possível”, e sim “se possível”, no sentido de “se conseguir”. Este é o sentido que permeia todo o Novo Testamento nas ocasiões em que o mesmo termo é empregado em outras passagens. Atos 20:16, por exemplo, diz:
“Paulo tinha decidido não aportar em Éfeso, para não se demorar na província da Ásia, pois estava com pressa de chegar a Jerusalém, se possível antes do dia de Pentecoste” (Atos 20:16)
“Se possível”, logicamente, está no sentido de “se conseguir”. Trata-se de uma possibilidade, e não de uma impossibilidade. Prova disso é que Paulo de fato conseguiu chegar dois antes do Pentecoste (At.21:17)[9]. Como vemos, o mesmo termo é empregado para algo tão possível que, de fato, ocorreu! Outro texto que nos mostra a possibilidade aberta dentro do termo “se possível” é Romanos 12:18, que diz:
“Se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens” (Romanos 12:18)
Mais uma vez, vemos que o “se possível” abre uma possibilidade, ao contrário de uma impossibilidade. Se não fosse assim, teríamos que pensar que Paulo estava dizendo que viveríamos inevitavelmente em guerra com todos os homens e que nada poderíamos fazer para mudar isso! Logicamente, o “se possível” abre uma possibilidade no sentido de “se conseguir”. Desta forma, se for possível, temos que viver em paz com todos os homens; se for possível Paulo chegaria antes do Pentecoste, e se for possível o anticristo enganará os eleitos.
A possibilidade existe: os eleitos podem ser enganados, da mesma forma que Paulo podia chegar em Jerusalém antes do Pentecoste e que nós podemos viver em paz com todos os homens. São casos similares que presumem uma interpretação linear que seja coerente com o todo das Escrituras, que, mais uma vez, demonstram que até mesmo alguns que hoje estão no grupo dos eleitos podem vir a ser enganados pelo anticristo, desviando-se da fé.
• Mateus 5:13/Marcos 9:50
“Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mateus 5:13)
“O sal é bom, mas se deixar de ser salgado, como restaurar o seu sabor? Tenham sal em vocês mesmos e vivam em paz uns com os outros” (Marcos 9:50)
As palavras acima deixam claro que é possível que o sal perca seu sabor, de modo que não possa mais ser restaurado. Obviamente, Jesus não estava preocupado com o sal, mas estava fazendo uma analogia com os crentes, que ele disse que são “o sal da terra” (Mt.5:13), Mas, ao invés de dizer que este sal nunca poderá perder seu sabor ou deixar de ser salgado (o que indicaria logicamente a perda da salvação), ele diz exatamente o contrário, confirmando, mais uma vez, que uma vez salvo não é, necessariamente, salvo para sempre.
O termo “restaurar” nos mostra que a referência é a pessoas que uma vez foram salvas, pois se o texto estivesse falando de falsos convertidos que nunca foram salvos de verdade ele nunca teria empregado a palavra “restaurar”, que induz ao fato de que já foram transformados uma vez. Eles não poderiam “perder” o sabor se já não tivessem tido o sabor. Se Jesus estivesse falando de falsos convertidos, ele não teria dito que eles eram o sal da terra, mas que pareciam ser o sal da terra. Mas o texto transmite a ideia de algo real, de alguém que realmente foi salvo uma vez.
Além disso, o mundo não é “sal”, e nem pode ser considerado “bom”, como Jesus disse em relação ao sal (Mc.9:50). O sal é, então, claramente uma figura dos crentes fieis. Mas Jesus também disse que esse sal pode perder o seu sabor e nunca mais ser restaurado, que não servirá para nada e que será jogado fora e pisado pelos homens (Mt.5:13).
Isso é nitidamente um retrato da condenação de pessoas que se perderam. É difícil imaginar que Jesus estivesse dizendo que pessoas ainda salvas não servissem para nada, não pudessem ser restauradas e seriam pisadas pelos homens. Isso a Bíblia sempre fala em relação aos descrentes, nunca aos crentes. Em Malaquias, por exemplo, Deus disse:
“Porque eis que aquele dia vem ardendo como forno; todos os soberbos, e todos os que cometem impiedade, serão como a palha, e o dia que está para vir os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que lhes não deixará nem raiz nem ramo. E pisareis os ímpios, porque se farão cinzas debaixo das plantas de vossos pés, naquele dia que farei, diz o Senhor dos Exércitos” (Malaquias 4:1-3)
Os que são “pisados”, portanto, se refere aos ímpios que serão condenados no juízo. Jesus não estava inventando ou acrescentando nada que já não tivesse sido claramente dito por Deus acerca dos ímpios e que era muito bem conhecido pelos judeus. Eles sabiam perfeitamente que o “pisados pelos homens” era uma referência à condenação dos ímpios descrita em Malaquias, onde exatamente esta mesma linguagem havia sido empregada.
Portanto, por consequencia lógica essa associação demonstra que o “sal” não apenas “perde uma recompensa”, mas incorre na mesma condenação dos ímpios, e isso só pode ocorrer por ter perdido a salvação, já que ele realmente era um “sal da terra” antes, e não um falso convertido. A possibilidade da perdição foi aberta, então ela pode acontecer.
• Romanos 11:17-23
“Se alguns ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava, foi enxertado entre os outros e agora participa da seiva que vem da raiz da oliveira, não se glorie contra esses ramos. Se o fizer, saiba que não é você quem sustenta a raiz, mas a raiz a você. Então você dirá: ‘Os ramos foram cortados, para que eu fosse enxertado’. Está certo. Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece pela fé. Não se orgulhe, mas tema. Pois se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará você. Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus: severidade para com aqueles que caíram, mas bondade para com você, desde que permaneça na bondade dele. De outra forma, você também será cortado. E também eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar” (Romanos 11:17-23)
Este é um dos textos mais difíceis de um calvinista deturpar e dizer que aquelas pessoas nunca foram salvas, ou que apenas perderam uma recompensa. O texto é claro: aqueles indivíduos (os gentios convertidos) foram “enxertados” na oliveira, representando que eles agora estavam em Cristo, mediante a fé. Mas ao invés de Paulo dizer que eles estariam garantidos na oliveira não importa o que acontecesse, ele faz justamente o contrário, se antecipando a essa possível objeção e dizendo que Deus não lhes pouparia caso desobedecessem, e que havia a possibilidade de eles serem cortados da oliveira.
Mais uma vez, vemos aberta a possibilidade de apostasia, de ser cortado do Reino, de deixar a oliveira, mesmo já estando lá uma vez. Ele não diz que as pessoas que foram enxertadas na oliveira ali permaneceriam incondicionalmente para sempre, mas os alerta com tanto rigor para a possibilidade de serem cortados que é impossível pensar que ele fosse um “calvinista”. Além da permanência na oliveira ser condicional (v.22), ainda havia como ser cortado (v.22), razão pela qual eles deveriam “temer” (v.20). Temer o que, se é realmente impossível perder a salvação?
• Gálatas 5:7
“Vocês corriam bem. Quem os impediu de continuar obedecendo à verdade?” (Gálatas 5:7)
Este texto é de interpretação simples e dispensa maiores comentários. Os gálatas, de forma geral, estavam correndo bem e obedecendo de fato à verdade. Não eram falsos cristãos. Porém, deixaram de obedecer à verdade. Para que nenhum pretenso calvinista dissesse que esse “deixar de obedecer à verdade” não implicava na perda da salvação, Paulo foi mais enfático ao dizer que eles “separaram-se de Cristo” (v.4) e “caíram da graça” (v.4). Nada mais claro para dizer que eles, de fato, perderam a salvação – a não ser que exista salvação longe de Cristo e separado da graça.
• 2ª Coríntios 6:1
“Como cooperadores de Deus, insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus” (2ª Coríntios 6:1)
Este texto nos mostra que receber a graça de Deus não basta, é preciso permanecer nela. Se é possível receber a graça em vão, é porque, logicamente, é possível perdê-la, de modo que não se desfrute de seus efeitos. Mas se o efeito da graça – que é a salvação – continuasse em vigência mesmo assim, seria incorreto dizer que ela foi recebida “em vão”, já que seu maior efeito permanece. Para que a graça fosse recebida “em vão”, ou seja, “inutilmente”, é necessário que seu efeito (a salvação) cesse. Somente assim a frase teria sentido e a graça recebida seria realmente em vão.
O original grego traz a palavra kenoo, que significa “privar de força, tornar vão, inútil, sem efeito”[10]. Admitindo-se que o maior efeito da graça é a salvação, é lógico que esse efeito é anulado na vida daquelas pessoas. Portanto, a garantia eterna da salvação não existe, pois há a possibilidade do efeito da graça ser anulado pela própria pessoa, o que, como consequencia lógica, implica na perda da salvação.
• Hebreus 2:1-3
“Por isso é preciso que prestemos maior atenção ao que temos ouvido, para que jamais nos desviemos. Porque se a mensagem transmitida por anjos provou a sua firmeza, e toda transgressão e desobediência recebeu a devida punição, como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação?” (Hebreus 2:1-3)
O autor de Hebreus traça uma analogia com o povo israelita no deserto e diz que é possível negligenciar a salvação (v.3). Que os israelitas que foram punidos não foram salvos, fica claro pelo fato de eles terem sido considerados “desobedientes” (v.2), “desviados” (v.1), “transgressores” (v.2) e de terem recebido a “devida punição” (v.2) para os seus atos. Se a analogia está correta, isso deve implicar no fato de que a negligência da salvação implica na perda desta salvação, assim como os israelitas rebeldes no deserto, que não foram salvos.
• 1ª Tessalonicenses 5:19
“Não extingais o Espírito” (1ª Tessalonicenses 5:19)
A palavra aqui usada no grego foi sbennumi, que significa “extinguir, apagar”[11]. Apague o fogo e não há mais fogo. Extinga qualquer coisa que ela cessa de existir. A linguagem não denota apenas uma operação menor da parte do Espírito, mas a completa cessação dele na vida da pessoa. Em outras palavras, o Espírito é apagado da mesma forma que o fogo é apagado – não há mais fogo, não há mais Espírito.
Para que o Espírito Santo deixasse de habitar em uma pessoa, é porque essa pessoa já foi habitada por ele. Se ela já foi habitação do Espírito Santo, é porque em algum momento ela tinha sido salva, pois o Espírito só habita naqueles que são filhos de Deus, como diz a Bíblia em todo lugar (Jo.14:17; Rm.8:15,16). Em contrapartida, o Espírito não deixa de habitar em alguém a não ser que se perca a salvação, pois ele não deixa um salvo sem sua presença. Todos os salvos possuem o Espírito Santo, e os que não são salvos não o possuem (Jo.14:17; 1Co.2:14).
Assim sendo, a lógica nos diz que é possível que alguém seja salvo (possua o Espírito Santo) e deixe de ser salvo (apague o Espírito Santo). Se a presença ou a falta de presença do Espírito implica em alguém ser filho de Deus ou não ser filho dele, é impossível escapar ao fato de que a possibilidade de se perder a salvação está aberta.
Para evitar isso, os calvinistas teriam que inventar uma teologia onde alguém pode ter o Espírito sem ser salvo, ou ser salvo sem tê-lo. Ou, em última hipótese, que é possível apagar o Espírito e o Espírito ainda estar ali, o que é tão antilógico quanto alguém apagar o fogo e ainda haver fogo. De qualquer forma, teriam que reconstruir a teologia com algo antibíblico e antilógico.
• 2ª Pedro 3:17
“Portanto, amados, sabendo disso, guardem-se para que não sejam levados pelo erro dos que não têm princípios morais, nem percam a sua firmeza e caiam” (2ª Pedro 3:17)
Ninguém “cai” a não ser que se esteja de pé. Nenhum não-regenerado e totalmente depravado está “de pé”. Eles já estão caídos. Se Pedro induz que eles estavam de pé, é porque estavam salvos naquele momento. Mas ele diz que é possível perder essa firmeza e cair.
Esta queda não parece ser algo como uma mera perda de recompensa ou um pequeno deslize sem relevância, porque ele diz que tais pessoas poderiam ser levadas pelo erro dos que “não tem princípios morais” (v.17). Concordando-se com o fato de que a inexistência de princípios morais implica na impossibilidade de salvação, não há como escapar ao fato de que esta queda implica na perda da salvação.
• 2ª Pedro 2:1
“E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição” (2ª Pedro 2:1)
Este texto é um dos mais interessantes, pois coloca um ponto da TULIP contra outro ponto. O texto diz que aqueles falsos profetas foram resgatados pelo Senhor Jesus, o que significa que Cristo morreu por eles. Mas há um problema: o “L” da TULIP é o da Expiação Limitada, que afirma que Cristo não morreu por todos, mas somente pelos eleitos (os salvos).
Portanto, se o texto fala que aqueles falsos profetas foram resgatados pelo Senhor, e os que são resgatados são apenas os eleitos, temos que chegar à infeliz conclusão de que aqueles falsos profetas com heresias destruidoras e que negavam a Cristo eram salvos e eleitos! É claro que qualquer um pode perceber o problema aqui. Ou o “L” da TULIP é falso, ou o “P” da TULIP é falso, ou os dois são falsos. Eles não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo, pois o texto bíblico fala de pessoas resgatadas por Cristo que caíram a tal ponto que se tornaram os piores hereges e que teriam uma destruição repentina – a condenação.
Sendo assim, ou todos são resgatados por Cristo através da cruz – o que é rejeitado por eles – ou os que são resgatados podem apostatar e perder a salvação, se o texto mostra resgatados negando Cristo, introduzindo heresias destruidoras, enganando os humildes e caminhando para a perdição. Como se isso não fosse suficientemente claro para mostrar o destino de tais infieis (a perdição), Pedro prossegue dizendo:
“Eles abandonaram o caminho reto e se desviaram, seguindo o caminho de Balaão, filho de Beor, que amou o salário da injustiça, mas em sua transgressão foi repreendido por uma jumenta, um animal mudo, que falou com voz humana e refreou a insensatez do profeta. Esses homens são fontes sem água e névoas impelidas pela tempestade. A escuridão das trevas lhes está reservada, pois eles, com palavras de vaidosa arrogância e provocando os desejos libertinos da carne, seduzem os que estão quase conseguindo fugir daqueles que vivem no erro” (2ª Pedro 2:15-18)
A nova terra, o destino futuro dos salvos, não é a “escuridão das trevas”. Pedro está dizendo que tais falsos profetas estarão em trevas (perdidos), e não salvos. Toda a descrição é claramente de pessoas que foram resgatadas por Cristo (v.1), mas que “abandonaram o caminho reto e se desviaram” (v.15) a tal ponto que perderam a salvação, pois de outra forma ele não teria dito que tais indivíduos iriam para as trevas e seriam destruídos repentinamente, mas sim que eles nunca se desviaram o suficiente para serem condenados à morte eterna – o que não é dito em lugar nenhum. A descrição é de um desvio total e de um destino certo para tais apóstatas, que não tem nada a ver com o Céu.
• Hebreus 3:7-14
“Assim, como diz o Espírito Santo: ‘Hoje, se vocês ouvirem a sua voz, não endureçam o coração, como na rebelião, durante o tempo de provação no deserto, onde os seus antepassados me tentaram, pondo-me à prova, apesar de, durante quarenta anos, terem visto o que eu fiz. Por isso fiquei irado contra aquela geração e disse: Os seus corações estão sempre se desviando, e eles não reconheceram os meus caminhos. Assim jurei na minha ira: Jamais entrarão no meu descanso. Cuidado, irmãos, para que nenhum de vocês tenha coração perverso e incrédulo, que se afaste do Deus vivo. Pelo contrário, encorajem-se uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama ‘hoje’, de modo que nenhum de vocês seja endurecido pelo engano do pecado, pois passamos a ser participantes de Cristo, desde que, de fato, nos apeguemos até o fim à confiança que tivemos no princípio” (Hebreus 3:7-14)
O contexto inteiro não deixa dúvidas de que o autor de Hebreus estava alertando à possibilidade da perda da salvação pelo endurecimento do pecado. Ele não estava escrevendo a “não-eleitos” ou a pessoas que “nunca haviam sido salvas verdadeiramente” (como calvinistas geralmente objetam), mas a pessoas que passaram a ser participantes de Cristo (v.14). Se elas passaram a ser participantes de Cristo, é porque o Espírito Santo habitava nelas como consequencia da regeneração. Ou seja: estava falando a pessoas já salvas.
Porém, ao invés de ele dizer que tais pessoas já estavam absolutamente garantidas na salvação e que de modo nenhum poderiam perdê-la, ele afirma justamente o contrário: que poderiam ser endurecidas pelo engano do pecado (.13), que o apego até o fim era condicional (v.14), que poderiam endurecer seus próprios corações (v.8), que poderiam se desviar (v.10) e não reconhecer os caminhos de Deus (v.10), que poderiam ter um coração perverso (v.12), incrédulo (v.12) e que se afasta do Deus vivo (v.12), e, como se tudo isso não fosse suficientemente claro, afirma ainda que poderiam jamais entrar no descanso de Deus (v.11).
Ele ainda traça uma analogia com os israelitas rebeldes do deserto, que fizeram tudo isso e que não entraram no descanso de Deus, que, naquele caso, era a terra prometida, e, no nosso caso, é a Jerusalém celestial (Hb.11:16). Se aqueles israelitas jamais entraram no descanso de Deus e a analogia lançada por ele é válida, então segue-se logicamente que aqueles que “passaram a ser participantes de Cristo” (v.14) também poderiam não entrar no descanso de Deus, na vida eterna.
Mas, se fosse impossível perder a salvação, toda a analogia se perderia e seria totalmente inútil mostrar os exemplos do povo israelita que se desviou e que não alcançou a promessa. Se os que se tornam participantes de Cristo sempre necessariamente entram no descanso de Deus e não tem a mínima possibilidade de se perder, o escritor inspirado estaria perdendo tempo citando tantos exemplos de perdição como analogias aos que se tornam participantes de Cristo. A exortação à possibilidade de tais pessoas não entrarem no descanso de Deus seria falsa e nada do que aconteceu com os israelitas apóstatas se aplicaria a cristãos eleitos.
Em contrapartida, se a analogia por ele feita é válida, a conclusão que se segue é uma lição: aqueles que se tornam participantes de Cristo devem estar atentos à possibilidade de se desviarem do caminho e de terem o mesmo fim daqueles antigos israelitas, que é de não entrar no descanso de Deus, por não se apegar até o fim à confiança que teve no princípio (v.14).
• Caindo da graça
“Vocês, que procuram ser justificados pela lei, separaram-se de Cristo; caíram da graça” (Gálatas 5:4)
Se há uma linguagem forte o suficiente para esvaziar qualquer dúvida sobre a possibilidade da perda da salvação, é o “cair da graça”. Como já vimos, um texto que diz que alguém se separou de Cristo só pode existir se este um dia já esteve ligado a Cristo, sendo “um” com ele. Somente duas pessoas que um dia foram casadas podem se separar. Se João nunca foi casado com Maria, ele não pode se “separar” dela. Se aqueles gálatas nunca tivessem tido um real relacionamento com Cristo, Paulo jamais teria dito que eles se separaram dEle.
Assim também, da mesma forma que se João se separa de Maria ele não está mais com ela, alguém que se separa de Cristo não tem mais parte com ele. A linguagem implica em alguém que era uma só carne com Cristo, que tinha um relacionamento com ele, que estava ligado ao Corpo, mas que se separou, deixando tudo isso para trás. Para ser mais claro, a linguagem implica na perda da salvação, que uma vez já se teve. Se separar de Cristo é se separar da salvação, pois Ele é a nossa salvação.
Essas pessoas que se separaram de Cristo, para Paulo, “caíram da graça” (Gl.5:4). Eles não poderiam “cair” da graça se não estivessem na graça uma vez. A linguagem, mais uma vez, denota que eles tinham aceitado a graça, pois somente desta forma eles poderiam “cair” dela. Se eles tinham aceitado a graça, isso significa que eles eram salvos. Eles só caíram porque estavam de pé. E, ao caírem da graça, se apartaram dela. Não é preciso dizer que, sem a graça, não há qualquer salvação. Nós só somos salvos pela graça (Ef.2:8-9).
Da mesma forma que algum time que “caiu da Série A” não está mais na Série A, alguém que “caiu da graça” não está mais na graça. Se não está mais na graça, não está mais salvo, pois é a graça que nos salva, se estamos nela. Uma pessoa salva à parte de graça não tem sentido algum. Novamente, é uma linguagem que expressa a possibilidade clara de perder a salvação, desde que concordemos que somos salvos pela graça. Essa possibilidade de cair da graça é o que levou Paulo a escrever:
“Mantenham-se firmes na graça de Deus” (1ª Pedro 5:12)
Se aquele que foi uma vez salvo pela graça não pode se apartar desta graça de jeito nenhum até o fim da vida, não haveria qualquer sentido em Paulo dizer para se manter firme na graça de Deus. Se temos que nos manter firmes, é porque existe a possibilidade de não nos mantermos firmes, o que significa cair. Manter-se firme é condicional, nunca incondicional. Deus salva pela graça, mas é possível que alguém não se mantenha na graça, ao deixar de exercer fé, que é a ponte que nos liga à graça (Rm.5:1-2; Ef.2:8).
O autor de Hebreus também conhecia muito bem a possibilidade de alguém se excluir da graça. Ele disse:
“Cuidem que ninguém se exclua da graça de Deus. Que nenhuma raiz de amargura brote e cause perturbação, contaminando a muitos” (Hebreus 12:15)
É possível que alguém que está na graça de Deus permaneça firme nela ou se exclua dela. É possível que alguém caia dela ou permaneça de pé. A perseverança nunca foi incondicional. Não há nenhum lugar da Bíblia que diga que aquele que foi uma vez salvo pela graça não pode cair dela ou ser excluído dela. O testemunho bíblico unânime ressoa o contrário. É exatamente em função da possibilidade de alguém não continuar na graça de Deus que Paulo e Barnabé disseram:
“Despedida a congregação, muitos dos judeus e estrangeiros piedosos convertidos ao judaísmo seguiram Paulo e Barnabé. Estes conversavam com eles, recomendando-lhes que continuassem na graça de Deus” (Atos 13:43)
Há sentido em recomendar algo se este algo irá acontecer inevitavelmente, sem qualquer possibilidade do contrário? Há sentido em exortar a permanecer na graça, se não há chances de não permanecer? Não, não há. A exortação só ganha um sentido se há a possibilidade de alguém se excluir da graça, o que, de fato, implica em perder a salvação, já que ninguém é salvo longe da graça.
As “explicações” calvinistas não convencem. Geisler, por exemplo, disse que “eles [os gálatas] não haviam perdido a salvação, mas somente a verdadeira santificação, que também vem pela graça, não pela Lei”[12]. O problema com uma afirmação dessas é duplo. Primeiro, porque não trabalha com o fato da exclusão da graça. Para alguém excluído da graça (como os gálatas – Gl.5:4) permanecer salvo mesmo assim, teriam que inventar um evangelho onde a graça não é mais o fator determinante para a salvação, mas somente para a “verdadeira santificação”. Ou seja: teriam que assassinar o evangelho.
Além disso, a perda da santificação sempre implicou na perda da salvação. Jesus disse que, “se eu não os lavar, você não terá parte comigo” (Jo.13:8). O autor de Hebreus foi ainda mais claro ao dizer que “sem santificação ninguém verá ao Senhor” (Hb.12:14). Alguém será salvo e proibido de ver a Deus? É claro que não. Os que não verão a Deus são os condenados. Sem santificação ninguém verá ao Senhor. Sem santificação ninguém será salvo. Perder a santificação e permanecer com a salvação é algo que pode parecer cabível para um calvinista, mas é completamente repudiável à luz da Bíblia.
• O naufrágio
“Mantendo a fé e a boa consciência que alguns rejeitaram e, por isso, naufragaram na fé. Entre eles estão Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar” (1ª Timóteo 1:19-20)
Quem leu o capítulo 3 deste livro ao invés de pular direto para este capítulo deve ter notado a analogia bíblica da salvação em Cristo como um navio, onde os crentes salvos estão sendo dirigidos pelo Senhor à Jerusalém eterna. Isso foi representado no Antigo Testamento pela arca, que salvou do dilúvio Noé e sua família, e hoje é representado pela Igreja, que guarda os cristãos da condenação proclamada ao mundo. A Igreja é como a arca, é como um navio. Quem está neste navio está a salvo da condenação do mundo.
Sabemos que este navio não pode afundar. Mas será que é possível alguém, individualmente, deixar este navio? Em outras palavras: é possível “naufragar na fé”? Paulo afirma que sim. Ele até cita dois exemplos: Himeneu e Alexandre. Primeiramente é bom esclarecer que ninguém pode “naufragar na fé” se nunca esteve na fé. Aquelas pessoas estavam no navio (Igreja), não eram infieis ou falsos cristãos. O joio não é o trigo, o joio se finge de trigo. Os falsos crentes não estão no navio, embora externamente possa parecer que sim[13].
Himeneu e Alexandre, contudo, realmente estavam no navio, senão não teriam naufragado na fé. E esse naufrágio, por sua vez, jamais pode ser considerado uma mera “perda da recompensa”, mas implica em estar fora do navio, em cair na mesma condenação do mundo. Não é à toa que Paulo diz que eles estavam “entregues a Satanás” (1Tm.1:20), porque blasfemaram (1Tm.1:20). A conclusão que se chega é que é sim possível que alguém que hoje está a salvo no navio (Igreja) venha a deixar o navio e naufragar, estando entregue à Satanás e ao mesmo destino final dos incrédulos.
• A apostasia
Um ensinamento muito recorrente na Bíblia é a apostasia. Davi há muito tempo já dizia que “os que se alongam de Ti perecerão; Tu tens destruído todos aqueles que, apostatando, se desviam de Ti” (Sl.73:27). Jeremias também era enfático ao dizer que “todos aqueles que Te deixam serão envergonhados; os que se apartam de Ti serão escritos sobre a terra; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas” (Jr.17:13).
O apóstolo Paulo confirmou isso em suas epístolas. Ele disse que “o Espírito expressamente diz que nos últimos dias alguns apostatarão da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios” (1Tm.4:1), e que, “na verdade, alguns já se desviaram, para seguir a Satanás” (1Tm.5:15). Como vemos, a Bíblia frequentemente fala da apostasia e sempre diz que tais apóstatas perecerão, serão destruídos, envergonhados e que estão seguindo a Satanás.
A primeira pergunta que deve ser feita a um calvinista que crê que esses apóstatas nunca foram salvos é a seguinte: eles se apostataram do que? Se eram salvos, é muito fácil responder a esta pergunta: apostataram da salvação. Se estavam em Cristo, também é muito fácil a resposta: se apostataram de Cristo. Mas os calvinistas afirmam que estes apóstatas nunca foram salvos, e, consequentemente, nunca estiveram em Cristo. Então, repito: apostataram do que?
Se eles estavam no mundo, teriam que “apostatar do mundo”. Mas isso não faz qualquer sentido, já que o mundo “jaz no maligno” (1Jo.5:19) e uma “apostasia do mundo” seria algo bom, e não algo tão ferrenhamente repudiado. É claro que para alguém apostatar da fé tem que ter um precedendo necessário: estar na fé. Apostatar simplesmente de uma “revelação parcial” mesmo antes de ter sido salvo é uma explicação que está longe de ser convincente, para qualquer pessoa que tenha bom senso.
O salmista é claro ao afirmar que estes que apostataram não se apostataram de qualquer coisa, ou de uma revelação parcial, mas “de Ti” (Sl.73:27), ou seja, do próprio Deus. Isso significa que eles estavam em Deus antes de apostatarem, pois aphistemi significa exatamente “retroceder, ir embora, deixar alguém, abandonar”[14], e ninguém pode retroceder, deixar ou abandonar algo a não ser que se estivesse neste algo antes. Como o sujeito nos textos bíblicos é Deus, então é de Deus que eles se apartaram, e é em Deus que eles estavam antes de se apartar. Consequentemente, a apostasia não pode ser de uma mera “revelação parcial”, mas de alguém que estava realmente firmado em Deus[15].
Se o “apóstata” não é um salvo, e os não-salvos estão em trevas e totalmente depravados, como corretamente ensina o calvinismo, teríamos que entender tais textos como dizendo que algum cego, surdo e mudo espiritual, em estado de total depravação e absolutamente incapaz de iniciar um relacionamento com Deus, apostatou dele. Ou seja: que alguém que nunca teve um relacionamento real com Deus abandonou Deus!
Tais “apóstatas” teriam se apostatado de algo, mas com certeza não seria de Deus, com quem eles não tinham um relacionamento antes. Se eles eram joio, certamente não teriam se “apostatado da fé” (1Tm.4:1), pois não estavam na fé para poderem apostatar dela! A fé verdadeira, a fé real, é trilhada por pessoas já regeneradas e salvas pelo Espírito Santo. É absurdo, senão ridículo, afirmar que a apostasia não implica na perda da salvação. Seria um termo desnecessário e com pouco ou nenhum significado se estivesse se referindo a pessoas que nunca foram mesmo salvas.
• As igrejas do Apocalipse
O Apocalipse também é repleto de citações às igrejas onde a possibilidade da perda da salvação é visível e patente. À Igreja de Éfeso, por exemplo, Jesus disse:
“Você tem perseverado e suportado sofrimentos por causa do meu nome, e não tem desfalecido. Contra você, porém, tenho isto: você abandonou o seu primeiro amor. Lembre-se de onde caiu! Arrependa-se e pratique as obras que praticava no princípio. Se não se arrepender, virei a você e tirarei o seu candelabro do seu lugar” (Apocalipse 2:3-5)
Os cristãos de Éfeso não eram pessoas “não-salvas”. Eles estavam perseverando na fé sem desfalecer (v.3). Contudo, isso não impediu o Senhor de ter aberto a possibilidade da apostasia a eles, dizendo-lhes que poderiam não se arrepender e que, neste caso, tiraria o seu candelabro do seu lugar, o que significaria o fim daquela igreja. Sabemos que sem arrependimento não há salvação (Lc.13:3; At.17:30), o que deve significar que Cristo estava abrindo uma possibilidade de perda da salvação, para cristãos salvos naquele momento.
À Igreja de Pérgamo, Cristo é ainda mais claro ao dizer:
“Portanto, arrependa-se! Se não, virei em breve até você e lutarei contra eles com a espada da minha boca” (Apocalipse 2:16)
Ele não estava falando a falsos cristãos, pois tinha acabado de dizer que “você permanece fiel ao meu nome e não renunciou à sua fé em mim” (v.13). Mesmo assim, havia a possibilidade de não se arrependerem de seus pecados e de serem condenados. A linguagem figurada de Cristo sobre “lutar contra eles com a espada da minha boca” é uma alusão a Apocalipse 19:21, onde é registrado que “os demais foram mortos com a espada que saía da boca daquele que está montado no cavalo, e todas as aves se fartaram com a carne deles”. É obviamente uma linguagem de condenação, e não de salvação.
À Igreja de Tiatira, Jesus também disse:
“Dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua imoralidade sexual, mas ela não quer se arrepender. Por isso, vou fazê-la adoecer e trarei grande sofrimento aos que cometem adultério com ela, a não ser que se arrependam das obras que ela pratica” (Apocalipse 2:21,22)
Mais uma vez, aqui ele estava falando a pessoas salvas, dizendo que “conheço as suas obras, o seu amor, a sua fé, o seu serviço e a sua perseverança, e sei que você está fazendo mais agora do que no princípio” (v.19). Mesmo assim, o arrependimento é colocado como sendo condicional e a possibilidade de eles não se arrependerem dos pecados cometidos estava aberta, junto à condenação que aconteceria neste caso.
À Igreja de Sardes, Cristo diz algo semelhante:
“Lembre-se, portanto, do que você recebeu e ouviu; obedeça e arrependa-se. Mas se você não estiver atento, virei como um ladrão e você não saberá a que hora virei contra você” (Apocalipse 3:3)
Paulo disse que Cristo viria como um ladrão para os ímpios, e não para a Igreja (1Ts.5:4-5). Jesus diz aqui que, se eles não se arrependerem, ele viria contra eles como um ladrão, significando, com isso, que eles incorreriam na mesma condenação dos ímpios, no último dia.
A possibilidade da perda da salvação estava aberta até mesmo para aquelas igrejas que estavam bem e que só receberam elogios, como a igreja da Filadélfia, que “guardou a minha palavra de exortação à perseverança” (Ap.3:10). Mesmo assim, Jesus deixou aberta a possibilidade de eles perderem a sua coroa:
“Retenha o que você tem, para que ninguém tome a sua coroa” (Apocalipse 3:11)
Tudo isso nos mostra que, na visão bíblica, a perseverança nunca foi incondicional, como ensinam os calvinistas, onde “uma vez salvo está para sempre salvo”, e onde não há nada que possa fazer com que o crente perca a salvação. As cartas às sete igrejas anunciam o fato amplamente ressaltado em toda a Bíblia, de que é possível perder a salvação e que a permanência até o fim não é mais que condicional.
• A perseverança é condicional
O ensino de que a perseverança é condicional é expresso várias vezes ao longo da Sagrada Escritura. Calvinistas creem na incondicionalidade da perseverança da mesma forma que creem na “eleição incondicional”, ou seja, que todos salvos perseverarão até o fim, e que isto é incondicional, não depende do homem em nenhuma medida, ele sempre estará perseverando e nunca cairá ao ponto de perder a salvação.
Se analisássemos um milhão de casos de pessoas que foram salvas uma vez, nestes um milhão de casos todas elas teriam sempre perseverado até o fim. Nenhuma delas teria perdido a fé, nenhuma delas teria apostatado, nenhuma delas teria caído. Os que caem, para eles, são sempre aqueles que nunca foram salvos. A perseverança é incondicional, pois só assim o crente não pode perder a salvação.
Este ensino calvinista, contudo, não encontra base nas Escrituras, pois a Bíblia sempre apresenta a perseverança como sendo algo condicional e sempre mostra o outro lado da moeda, que é a possibilidade de não perseverar até o fim. Em 1ª Coríntios, por exemplo, o apóstolo Paulo disse:
“Por meio deste evangelho vocês são salvos, desde que se apeguem firmemente à palavra que lhes preguei; caso contrário, vocês têm crido em vão” (1ª Coríntios 15:2)
Eles eram salvos por meio do evangelho, desde que…
A salvação final, como está implícito neste e em outros textos, é condicional ao apego firme à Palavra até o fim. A salvação deles não era absolutamente garantida sob qualquer circunstância. Eles eram salvos e permaneceriam assim sob uma condição, o apego à Palavra. Essa condição não seria bem uma condição se a promessa da perseverança fosse incondicional. Uma condição incondicional é uma impossibilidade lógica e uma contradição de termos. A declaração faz presumir a possibilidade da falta da perseverança e da consequente perda da salvação.
O mesmo apóstolo também disse:
“Mas agora ele os reconciliou pelo corpo físico de Cristo, mediante a morte, para apresentá-los diante dele santos, inculpáveis e livres de qualquer acusação, desde que continuem alicerçados e firmes na fé, sem se afastarem da esperança do evangelho, que vocês ouviram e que tem sido proclamado a todos os que estão debaixo do céu” (Colossenses 1:22,23)
Mais uma vez, vemos aqui o mesmo princípio que vimos no outro texto: a condicionalidade da perseverança. Seria inócua a exortação a não se afastar da esperança do evangelho se esse afastamento e consequente perdição fosse algo impossível de acontecer. Além de um desperdício de tinta, induziria que é possível que eles não ficassem alicerçados e firmes na fé até o fim. O simples fato de Paulo fazer ressalvas à declaração inicial de que eles eram salvos já deveria ser suficiente para mostrar que a perseverança não é incondicional.
O autor de Hebreus segue o mesmo conceito e diz:
“Mas Cristo é fiel como Filho sobre a casa de Deus; e esta casa somos nós, se é que nos apegamos firmemente à confiança e à esperança da qual nos gloriamos” (Hebreus 3:6)
Pedro também faz o mesmo, ao dizer:
“Portanto, irmãos, empenhem-se ainda mais para consolidar o chamado e a eleição de vocês, pois se agirem dessa forma, jamais tropeçarão, e assim vocês estarão ricamente providos quando entrarem no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2ª Pedro 1:10,11)
Judas igualmente nos mostra que não basta estar no amor de Deus, é preciso se manter neste amor:
“Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo para a vida eterna” (Judas 1:21)
A conclusão inferida destes e de outros textos semelhantes é a de que a perseverança, longe de ser incondicional, é sempre apresentada de modo a presumir que é possível que alguém não persevere, e, consequentemente, não seja salvo. Isso chamamos de perseverança condicional, pois ela depende da fé do início ao fim, e é possível que alguém não exerça fé até o último momento, abrindo a possibilidade da salvação não ser mantida.
• O Livro da Vida
Um assunto quase nunca tocado por calvinistas é o livro da vida, onde está o nome de todos os salvos. Se Deus risca o nome de alguém do livro da vida, isso significa que uma pessoa salva está sendo tirada do rol dos que obterão a vida eterna, e, consequentemente, perdendo a salvação. Assim sendo, se o arminianismo é verdadeiro, devemos encontrar algum tipo de descrição bíblica onde um nome é retirado do livro da vida. Por outro lado, se o calvinismo for verdadeiro, não devemos encontrar nenhuma descrição assim, ou teríamos que esperar citações dizendo que é impossível que um nome seja retirado do livro.
O livro da vida aparece desde o Antigo Testamento, e desde aquela época já estava explícita a ideia de que Deus tira nomes do livro:
“Sejam eles tirados do livro da vida e não sejam incluídos no rol dos justos” (Salmos 69:28)
Se Moisés, o autor do Pentateuco, cresse que era impossível que Deus tirasse algum nome do livro da vida, jamais teria pedido isso:
“Agora, pois, perdoa o seu pecado; se não, risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito. Então disse o Senhor a Moisés: Aquele que pecar contra mim, a este riscarei do meu livro” (Êxodo 32:32-33)
Como vemos, ao invés de Deus responder a Moisés dizendo-lhe que nunca tiraria alguém do livro, ele diz expressamente o contrário: que aquele que pecar contra Ele, teria seu nome riscado. É explícito e claro que é possível que um nome seja retirado do livro da vida. A ideia de que nome nenhum pode ser retirado do livro da vida é estranha às Escrituras e só foi inserida no pensamento de alguns em função de suas crenças calvinistas, que não admitem algo como isso.
No Apocalipse, João reflete o mesmo pensamento ao dizer:
“O que vencer será vestido de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro da vida; e confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos seus anjos” (Apocalipse 3:5)
A ideia novamente é a de que é possível um nome ser riscado do livro, e que é necessário “vencer” para não ter o nome riscado. Se fosse impossível que um nome fosse riscado, jamais Jesus teria dito que o que vencer não teria o nome riscado. Seria uma redundância desnecessária. A afirmação presume que nomes podem ser riscados. Portanto, de modo implícito e também explícito, tanto o Antigo como o Novo Testamento atestam a possibilidade de um nome ser retirado do livro da vida. Desde Moisés (Êx.32:32-33), passando por Davi (Sl.69:28) até João (Ap.3:5), esse pensamento era claro.
Nomes seriam “tirados do livro da vida” (Sl.69:28), “riscados do meu livro” (Êx.32:32-33) e somente o que vencer é que não teria seu nome riscado (Ap.3:5). Impressiona que mesmo diante dessas evidências tão claras na Bíblia ainda tenha pessoas que se oponham a este ensino e creiam que Deus não risca ninguém do seu livro, ou que “jamais se diz que Deus apagará o nome de alguém do livro da vida”. Esperar-se-ia isso de principiantes no estudo da Bíblia, não de teólogos renomados.
• Analisando os “textos calvinistas”
Como é a prática deste livro, não basta apenas mostrarmos as provas bíblicas do nosso lado, é preciso também desfazer os argumentos apresentados do lado deles. Calvinistas também tem textos que, segundo eles, “provam” que o crente não pode perder a salvação, e se baseiam nestes textos quando algum arminiano tenta provar o contrário. Curiosamente, nenhum dos textos apresentados por eles são claros e explícitos como são os apresentados pelos arminianos.
É preciso mais que uma leitura nos “textos calvinistas” para chegarmos às conclusões apresentadas por eles. O principal defeito nos argumentos deles e aquilo que refuta todos os argumentos contrários de uma só vez é que todos eles fazem presumir a fidelidade do homem a partir da fidelidade de Deus. Isso é mais do que falso: isso é falacioso. É por meio deste raciocínio não deduzível nos textos que os calvinistas concluem que não podemos perder a salvação.
Há sempre uma inferência que todo calvinista faz na hora de apresentar os textos do lado deles, que é uma inferência não dedutiva nos próprios textos, mas uma que é meramente o reflexo de suas próprias convicções teológicas, e em parte pela interpretação de Calvino. Para citarmos um exemplo prático, vejamos este texto:
“Nunca o deixarei, nunca o abandonarei” (Hebreus 13:5)
Um arminiano lê um texto como este e conclui que Deus nunca nos deixará nem nos abandonará. Um calvinista lê um texto como este e conclui que Deus nunca nos deixará nem nos abandonará, e que nós também nunca deixaremos nem abandonaremos a Deus. Em termos simples, o arminiano interpreta o texto como o texto diz, enquanto o calvinista coloca no texto o que ele quer. A conclusão do arminiano, a partir disso, é que a fidelidade de Deus não implica necessariamente na fidelidade do homem, enquanto o calvinista inclui a fidelidade do homem em textos que somente falam da fidelidade de Deus.
Vejamos este outro texto:
“Por essa causa também sofro, mas não me envergonho, porque sei em quem tenho crido e estou bem certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia” (2ª Timóteo 1:12)
O arminiano lê este texto e conclui que Deus tem poder para guardar o depósito de Paulo até aquele dia. O calvinista lê este texto e conclui que Deus tem poder para guardar o depósito de Paulo até aquele dia e que Paulo necessariamente seria fiel e estaria salvo até aquele dia, para receber seu depósito. De um lado vemos a afirmação bíblica (de Deus tendo poder para guardar uma recompensa), e do outro lado temos uma suposição humana (de alguém necessariamente perseverando até o fim).
Suponhamos, por exemplo, que a taça da Copa Libertadores da América do ano que vem esteja em minha posse e que eu a entregarei ao time que conquistar o título, e que, diante das críticas, assegurasse ao presidente do São Paulo F. C. que “eu sou plenamente capaz de guardar a taça até a final do torneio”. Dessa afirmação apenas se deduz que eu guardarei bem a taça, e não que o São Paulo F. C. irá necessariamente ser o campeão[17]. A fidelidade de Deus é sempre incondicional; a perseverança do homem, contudo, é condicional.
Vejamos também este texto:
“Todo o que o Pai me der virá a mim, e quem vier a mim eu jamais rejeitarei” (João 6:37)
Arminianos leem este texto e concluem que Deus jamais rejeita quem vem a ele. Calvinistas leem este texto e concluem que Deus jamais rejeita quem vem a ele e que o homem também jamais rejeita a Deus. Mais uma vez, calvinistas leem mais do que o texto diz. Eles praticam frequentemente a eisegese, que é quando se força o texto para fazer com que uma passagem diga o que na verdade não se acha ali, e não exegese, que é quando se extrai o significado de um texto mediante legítimos métodos de interpretação.
Um típico exemplo de eisegese é essa declaração de Geisler, que reflete o parecer de muitos calvinistas:
“Todos os crentes estão em Cristo (2Co 5.17; Ef 1.4) e são parte de seu corpo (ICo 12.13). Por conseguinte, se alguém fosse separado de Cristo, parte de Cristo seria separada de si mesmo!”[18]
Sim, todos os crentes estão em Cristo, e são parte de seu corpo. Isso é fato. O que não é fato e que é fruto de pura especulação é que, ao alguém ser separado de Cristo, partes do corpo de Cristo se separem de si mesmo. Isso é tão absurdo e patético quanto seria caso afirmássemos que, quando um novo convertido passa a crer e é salvo, uma nova parte corporal é inserida ao corpo de Cristo em um lugar que não existia antes. Isso, além de trazer ao campo literal algo originalmente alegórico, ainda consiste no mais puro método de eisegese conhecido pelo homem, levando uma argumentação boba para o campo do reductio ad absurdum, como se isso constituísse um argumento.
Calvinistas também costumam citar o texto de 1ª João 2:18-19, que diz:
“Filhinhos, esta é a última hora; e, assim como vocês ouviram que o anticristo está vindo, já agora muitos anticristos têm surgido. Por isso sabemos que esta é a última hora. Eles saíram do nosso meio, mas na realidade não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; o fato de terem saído mostra que nenhum deles era dos nossos” (1ª João 2:18-19)
Porém, da premissa de que aqueles indivíduos não eram verdadeiros cristãos e deixaram a Igreja não segue a conclusão de que todos os que deixam a Igreja nunca foram verdadeiros convertidos. João nem ao menos estava falando de todas as pessoas, mas de um grupo específico, os “anticristos” (v.18), que, naquele contexto, se aplicava aos gnósticos que se infiltravam entre os cristãos passando-se por cristãos, quando descriam nos pontos mais fundamentais da fé. Nem de longe é um texto universal, que se aplica a qualquer pessoa que não permanece na Igreja.
Outro texto citado por eles é o de Romanos 8:38-39, que diz:
“Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 8:38-39)
Novamente a lente de aumento calvinista entra em ação e onde o texto diz que nada nos separará do amor de Deus eles colocam como sendo “nada nos separará de Deus”. Isso não é mais do que uma adulteração no texto bíblico. Logicamente, nada nos pode separar do amor de Deus. O amor de Deus é infinito e universal, é para todos e incondicional, é eterno e ilimitado. Nada poderá nos separar do amor dele por nós. Mesmo se perdermos a salvação e ainda que caiamos em recorrentes pecados, Deus continuará nos amando, da mesma forma que ele ama o mundo todo (Jo.3:16), até mesmo aqueles que não são “eleitos”. Do amor de Cristo, nada os separa. De uma correta interpretação, o calvinismo os separa.
John Feinberg é outro que defende que o crente não pode perder a salvação, e ainda diz que encontra “abundante evidência bíblica” para isso, citando versículos clichês que em absolutamente nada indicam isso, a não ser sob a ótica da eisegese calvinista, onde se aumenta um texto e inclui nele inferências que o calvinista quer encontrar ali. Ele afirma:
“Encontro abundante evidência bíblica segundo a qual a apostasia é impossível. Passagens como João 6:37-39: 10:28-30: Romanos 8:28-30; 1ª Coríntios 1:8-9; Filipenses 1:6; e 1ª Pedro 1:5-9 parecem suportar a doutrina da segurança do crente”[19]
Para não dizer que não citamos os textos mencionados por Feinberg, comecemos pelo trecho citado do evangelho de João:
“Todo o que o Pai me der virá a mim, e quem vier a mim eu jamais rejeitarei. Pois desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum dos que ele me deu, mas os ressuscite no último dia” (João 6:37-39)
São tantas as inferências calvinistas neste texto que podemos até traçar um quadro comparativo entre o que a Bíblia diz e como o calvinista lê:
O QUE O TEXTO DIZ | COMO O ARMINIANO LÊ | COMO O CALVINISTA LÊ |
Deus jamais rejeita quem vem a ele | Deus jamais rejeita quem vem a ele | Deus jamais rejeita quem vem a ele, e o homem também jamais pode rejeitar a Deus |
Deus não quer que ninguém que veio a ele se perca | Deus não quer que ninguém que veio a ele se perca | Deus não quer que ninguém que veio a ele se perca, e ninguém que veio a ele se perderá |
É necessário acrescentar que nenhum arminiano crê que Deus quer que alguém que veio a Cristo se perca. Jesus estava plenamente certo quando disse que Deus não quer que ninguém se perca. Mas daí não se segue a conclusão de que efetivamente ninguém se perde. Isso é concluir no vazio, sem o apoio de premissas básicas de fundamento. O testemunho bíblico unânime é que pessoas se perdem, mesmo sem ser da vontade de Deus:
“Desejaria eu, de qualquer maneira a morte do ímpio? Diz o Senhor Jeová; não desejo, antes, que se converta dos seus caminhos e viva?” (Ezequiel 18:23)
“Pois não me agrada a morte de ninguém; palavra do Soberano Senhor. Arrependam-se e vivam!” (Ezequiel 18:32)
“Deus não quer a morte do pecador, mas, antes, que se converta e viva” (Ezequiel 33:11)
“O Senhor não demora em cumprir a sua promessa, como julgam alguns. Pelo contrário, ele é paciente com vocês, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2ª Pedro 3:9)
“Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1ª Timóteo 2:3,4)
Em síntese, da premissa que diz que Deus não quer que alguém se perca não se segue a conclusão de que tal pessoa não irá se perder. Jesus também não queria que Jerusalém fosse destruída (Mt.23:37). Ele chegou até a chorar sobre ela (Lc.19:41). Mas ela foi destruída assim mesmo (Mt.23:38).
Feinberg também citou o texto de João 10:28-29, que diz:
“Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as pode arrancar da mão de meu Pai” (João 10:28-29)
Mais uma vez, o problema do calvinista é enxergar neste texto a impossibilidade de que as próprias pessoas, por livre e espontânea vontade, o abandonem. O texto diz que ninguém poderá tirá-las do Pai, não fala nada sobre se aquelas próprias pessoas podem ou não deixá-lo. A conclusão de que as próprias pessoas também não podem deixá-lo fica por conta da especulação calvinista, e não do texto bíblico. O fato de ninguém poder tirar algo da mão de alguém de modo algum implica em este algo não poder fazer nada.
Suponhamos que eu carregue um labrador no colo e diga a todo mundo que ninguém pode tirá-lo de mim. Isso significa que nenhuma outra pessoa pode vir até mim e arrancá-lo da minha mão. Mas isso não significa que eu estou impedindo o labrador de, por si mesmo e por livre e espontânea vontade, sair do meu colo. Se eu fizesse isso, não estaria cuidando dele, mas dominando-o. Deus não é um ditador celestial que impede que seus filhos saiam de seus braços, e sim um pai amável que os protege das ameaças externas, mas que respeita a livre decisão de cada filho.
Quando alguém deixa os braços de Cristo, não é porque outra pessoa a arrancou das mãos do Pai, mas porque o próprio indivíduo optou pelo outro caminho. É digno de nota que neste mesmo Evangelho de João, poucos capítulos adiante, vemos Jesus dizendo isso:
“Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em mim, não dá fruto, ele corta; e todo que dá fruto ele poda, para que dê mais fruto ainda. Vocês já estão limpos, pela palavra que lhes tenho falado. Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim. “Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma. Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido” (João 15:1-7)
“…todo ramo que estando em mim não dá fruto, ele corta”
“…permaneçam em mim e eu permanecerei em vocês”
“…vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim”
“…se alguém permanecer em mim”
“…se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora”
“…tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados”
Assim, o próprio Senhor Jesus esclareceu que, embora ninguém de fora possa arrebatar dele as suas ovelhas, as ovelhas podem se separar de Cristo por sua própria conta, não permanecendo nele e sendo por fim queimadas. Como no exemplo do navio, ninguém de outro navio pode entrar no navio de Cristo para tirar à força os crentes que ali estão e lançá-los ao mar, mas os próprios crentes podem por sua própria conta e liberdade se lançarem e se perderem. É como disse o pastor Ciro Zibordi:
“Quem quiser pode ‘navegar’ em outras ‘embarcações’ ou ‘canoas furadas’. Contudo, é melhor permanecer no ‘navio da salvação’, em Cristo, pois a segurança da salvação é para quem nEle permanecer (Jo 10.28). Ninguém pode arrebatar, raptar, o crente da mão de Jesus, a menos que o próprio crente negue a sua fé, seguindo a falsos doutores (2 Tm 4.1-5)”[20]
Outro texto mencionado por Feinberg foi o de 1ª Pedro 1:8-9, que diz:
“Mesmo não o tendo visto, vocês o amam; e apesar de não o verem agora, crêem nele e exultam com alegria indizível e gloriosa, pois vocês estão alcançando o alvo da sua fé, a salvação das suas almas” (1ª Pedro 1:8-9)
Não sei onde Feinberg viu neste texto a garantia de que a salvação não pode ser perdida, ainda mais quando o texto diz que eles “estão alcançando” o alvo da fé, e não que “já alcançaram”. Todos os versículos que mostramos anteriormente provam que a finalização deste processo não é incondicional, e que o homem pode perder a salvação, caso não persevere até o fim.
Feinberg também fez menção ao texto de Filipenses 1:6, que diz:
“Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo” (Filipenses 1:6)
Presumir a fidelidade e perseverança incondicional do homem à luz de um texto que meramente diz que é Deus quem começa e aperfeiçoa a obra é desonestidade intelectual. Paulo estava dizendo que a glória e o mérito é todo de Deus, é ele quem inicia a salvação e é ele quem nos aperfeiçoa. Ele não garante que o homem não possa rejeitar a Deus ou recusar a obra dele em sua vida. Vimos no capítulo 5 que a graça não é irresistível e que o homem pode resistir a Deus[21]. O texto garante a parte de Deus, não garante a parte do homem.
Por fim, o último texto citado por Feinberg na defesa de seu calvinismo de cinco pontos foi o de 1ª Coríntios 1:8-9, que, semelhante à construção do texto anterior, diz:
“Ele os manterá firmes até o fim, de modo que vocês serão irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é Deus, o qual os chamou à comunhão com seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1ª Coríntios 1:8-9)
O erro na interpretação deste texto é o mesmo do anterior. O texto diz que “fiel é Deus” (v.9), e não que o homem é fiel. A fidelidade de Deus não presume a fidelidade do homem. É Deus que nos mantém firmes, mas o homem não é um robô passivo, ele pode resistir a Deus. Se o homem permanece firme é por causa da fidelidade de Deus, e se ele não permanece firme é por culpa de sua própria infidelidade. Do início ao fim é por Deus que estamos firmes, e não por nós mesmos.
Isso, obviamente, não significa que nós não possamos ser infieis mesmo em vista da fidelidade de Deus. É isso o que Paulo diz em 2ª Timóteo 2:12-13:
“Se o negamos, ele também nos negará; se somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode negar-se a si mesmo” (2ª Timóteo 2:12-13)
O homem que se aparta de Deus é infiel, mas o próprio Deus permanece fiel. A culpa da separação não foi de Deus, foi do homem. Deus permaneceu fiel o tempo todo, mesmo vendo a infidelidade do homem. Paulo diz que Deus permanece fiel mesmo com os que se tornaram infieis, e que ele, exatamente por ter sido fiel, nos negará, porque nós o negamos. Deus não pode ser infiel a quem é infiel com ele, mas ele pode negar a quem o nega, e quem o nega é quem é infiel.
Desta forma, vemos que a fidelidade de Deus não implica na fidelidade do homem. O homem pode ser infiel mesmo com Deus permanecendo fiel, e, ao tornar-se infiel, nega a Deus e é negado por ele, tendo por fim a condenação. Este é o mesmo princípio que o Senhor Jesus revelou em Mateus 10:33, ao dizer:
“Mas aquele que me negar diante dos homens, eu também o negarei diante do meu Pai que está nos céus” (Mateus 10:33)
Desde o Antigo Testamento este conceito já era vigente. Azarias já dizia:
“Escutem-me, Asa e todo o povo de Judá e de Benjamim. O Senhor está com vocês quando vocês estão com ele. Se o buscarem, ele deixará que o encontrem, mas, se o abandonarem, ele os abandonará” (2ª Crônicas 15:2)
Deus é sempre fiel, mas o homem pode se tornar infiel e abandonar ao Senhor, sendo, por isso, abandonado por ele. Este abandono divino não é infidelidade, mas é uma consequencia do pecado. A infidelidade, que é o “divórcio”, foi praticada pelo homem. Deus apenas respeita a decisão do homem e permite que ele viva longe dele, se assim é o desejo do homem, que deverá pagar as consequencias naturais de suas próprias escolhas, por ter abandonado a Deus.
O Espírito Santo é o penhor (garantia) de que Deus será fiel conosco. Ele é o selo da nossa redenção (Ef.4:30). Mesmo assim, podemos entristecer (Ef.4:30) e até mesmo extinguir o Espírito Santo das nossas vidas (1Ts.5:19). O selo garante as promessas de Deus a respeito do homem, e não a resposta do homem às promessas de Deus. Como já foi dito, Deus é poderoso para cumprir tudo aquilo que ele promete aos seus santos e para guardar o galardão até aquele dia, mas o homem pode tornar-se infiel mesmo com Deus sendo fiel para com ele.
Infelizmente, calvinistas moldam as passagens que falam da fidelidade da parte de Deus para tentar incluir nelas a ideia de que os homens também serão fieis. Deus não prometeu cumprir a sua parte e forçar o homem a cumprir a dele. Se fosse assim, seria impossível alguém se tornar infiel, como Paulo disse (2Tm.2:12-13). Deus cumpre a parte dele, mantém sua palavra e fidelidade, mas o homem continua livre para aceitar ou rejeitar a operação de Deus em sua vida, para se arrepender ou resistir ao arrependimento (Ap.2:3-5; 2:16; 2:21-22; 3:3), para ser fiel ou infiel (2Tm.2:12-13), para perseverar ou cair (Hb.6:4-6; Gl.5:4).
• A perda da salvação implica em salvação pelas obras?
Um argumento final dado pelos calvinistas na tentativa de refutar o ensinamento bíblico da perda da salvação é que, se a salvação é perdida quando alguém cai em pecados deliberados e recorrentes, ela estaria dependente das obras, e, consequentemente, a salvação seria por obras e não pela fé. Se é a fé que nos salva, então o pecado ou a falta de boas obras não podem ocasionar a perda da salvação, segundo o raciocínio deles.
O problema com essa lógica calvinista é que o que determina a perda da salvação não é a perda das obras, mas a perda da fé, que ocasiona a perda das obras. Da mesma forma que é a fé que nos salva, mas essa fé gera frutos (obras) de nossa parte (Tg.2:14-26), senão é uma fé morta (Tg.2:17), aquele que volta aos vícios e ao estado de pecados deliberados e recorrentes[22] faz isso em função da perda da fé, que, consequentemente, gerou a perda das obras.
O fator determinante e causativo em primeira instância para a perda da salvação não foi, portanto, a perda das obras, mas a perda da fé. A perda das obras é meramente uma consequencia natural da perda da fé. Se a fé genuína é a fé que gera obras e sem essa fé com obras o homem não é salvo (Tg.2:14-26), então a perda das obras significa que o homem perdeu a fé. Em termos práticos, a fé é a causa e as obras o efeito. Tendo a fé verdadeira (causa), temos as obras (efeito) que provém da fé. Mas, quando as obras (efeito) se vão, é porque a fé (causa) não está mais operando. É assim que entendemos o texto de Tiago, que disse:
“Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta. Mas alguém dirá: ‘Você tem fé; eu tenho obras’. Mostre-me a sua fé sem obras, e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras” (Tiago 2:17-18)
Tiago não estava pregando a salvação por obras, mas a salvação pela fé genuína que gera obras. Mas, se as obras são geradas pela fé, a consequencia lógica da perda do efeito é a inoperância da causa. Não é à toa que Jesus disse que o amor de muitos se esfriaria (Mt.24:12). É possível que uma fé “quente” se torne uma fé “fria”, até o ponto de desaparecer, como disse Paulo:
“Mantendo a fé e a boa consciência que alguns rejeitaram e, por isso, naufragaram na fé” (1ª Timóteo 1:19)
Desta forma, vemos que é possível manter a fé ou não manter a fé, que significa rejeitar a fé. É por isso que temos que ter “cuidado para que nenhum de vocês tenha coração perverso e incrédulo, que se afaste do Deus vivo” (Hb.3:12). Se é possível esfriar e perder a fé, tornando-se “incrédulo”, a consequencia será a perda daquilo que era gerado pela fé, no que se refere à santidade e às obras. É por isso que a Bíblia diz que “sem santidade ninguém verá ao Senhor” (Hb.12:14).
Não é que a santidade salve, mas que ela mostra quando alguém tem a fé genuína que produz santidade e quando alguém tem uma fé morta que não produz nada, e que mantém o homem nos mesmos pecados de antes. Assim sendo, sem santidade ninguém será salvo, não porque a santidade salve, mas porque a falta dela mostra que alguém não tem fé. A fé, no sentido bíblico real, não é uma simples convicção intelectual de que Deus existe (como creem alguns), pois esse tipo de fé até os demônios tem:
“Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem – e tremem! Insensato! Quer certificar-se de que a fé sem obras é inútil?” (Tiago 2:19-20)
A fé verdadeira não é um “sentimento” ou uma convicção intelectual, mas algo tão profundo que nos leva a amar a Deus de tal maneira e de tal modo que venhamos a buscá-lo e a corresponder neste amor. Da mesma forma que um marido que realmente ama sua esposa fará questão de demonstrar isso sendo fiel, mas aquele que trai está demonstrando que não ama da forma que amava antes, quem ama a Deus demonstra este amor com atitudes, e a falta dessas atitudes mostram que o primeiro amor se esfriou.
O mecanismo não funciona tendo as obras como o fundamento, mas com a fé sendo a base de tudo. É a fé que nos justifica (Ef.2:8), e a justiça do Evangelho é “do princípio ao fim pela fé” (Rm.1:17). Da mesma forma que é pela fé que somos salvos, é pela falta dela que perdemos a salvação. A consequencia desta perda da fé será o pecado deliberado e a falta das obras do primeiro amor. Elas são aquilo que mostra que o homem está em declínio espiritual, prestes a cair por completo (Ap.2:5).
• Últimas considerações
Queiram ou não, a perda da salvação à luz da Bíblia é algo claro e indiscutível. As tentativas de remendar textos bíblicos que objetivamente mostram o homem caindo da graça tem se demonstrado fracas e ineficazes, mostrando quase que um desespero em encaixar uma teologia dentro da Bíblia, ao invés de extrair da Bíblia a verdadeira teologia. Da mesma forma, as tentativas calvinistas em argumentar em cima da perda da salvação como uma zombaria, tentando amedontrar os arminianos na incerteza da salvação, tem se mostrado débeis ao extremo, pois o mesmo volta ainda com mais força contra eles.
Se é verdade que nenhum arminiano pode ter absoluta convicção de sua salvação final, pois a possibilidade da apostasia existe, também é verdade que nenhum calvinista pode ter absoluta convicção de que é um “escolhido”, pois nenhum deles tem acesso ao livro da vida. O próprio Calvino rejeitou a ideia daqueles que tentam “buscar fora do caminho, digo, quando um mísero homem tenta irromper pelos recônditos recessos da divina sabedoria e, para que saiba o que foi a seu respeito estabelecido no tribunal de Deus, tenta penetrar até a suma eternidade”[23].
Agostinho, que provavelmente podemos considerar o “primeiro calvinista”, também admitia isso:
“Pois quem da multidão de crentes pode presumir, enquanto vivendo neste estado mortal, que ele está entre o número dos predestinados?”[24]
- C. Ryle também é claro em afirmar que “não sabemos quem são os eleitos de Deus”[25], que “não temos como descobrir os planos eternos de Deus nem podemos ler o livro da vida”[26] e que “chamar alguém que vive em pecado de eleito não passa de asneira e blasfêmia”[27]. O simples fato de alguém parecer estar firme na fé não significa necessariamente que essa pessoa é eleita, pois, como diz Geisler, “Calvino mesmo fala de ‘uma falsa obra da graça’, e Sproul assevera que podemos pensar que temos fé quando de fato não temos fé”[28].
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[1] Institutas, 3.24.6.
[2] Institutas, 3.21.7.
[3] Conferência de Remonstrantes, 11/7.
[4] Embora Calvino tenha defendido que uma vez salvo é para sempre salvo, ele nunca refutou os textos bíblicos que dizem o contrário (aqueles que são hoje usados pelos arminianos). Por essa razão, as objeções que serão refutadas neste capítulo não serão as do próprio Calvino (que não fez nenhuma), mas sim a de outros autores calvinistas ou arminianos de quatro pontos.
[5] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 146.
[6] SPROUL, Robert Charles. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã: 1998, p. 137.
[7] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 145.
[8] SPROUL, Robert Charles. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã: 1998, p. 135.
[9] De acordo com nota de rodapé da Nova Versão Internacional em Atos 21:17, p. 1900.
[10] De acordo com a Concordância de Strong, 2758.
[11] De acordo com a Concordância de Strong, 4570.
[12] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 148.
[13] Mais uma vez é preciso fazer a distinção entre a Igreja visível e a Igreja invisível. A Igreja visível é formada por diversas denominações onde pessoas se reúnem para adorar a Deus, e é constituída por crentes fieis e infieis, pelo joio e pelo trigo, por cristãos verdadeiros e por cristãos falsos. A Igreja invisível, contudo, é a reunião espiritual de todo o trigo, isto é, de todos aqueles que, em qualquer igreja física e em qualquer parte do mundo, adoram a Deus em espírito e em verdade. São esses verdadeiros crentes que estão no “navio”, a Igreja, que caminha à salvação. Não é uma denominação em especial que caminha à vida eterna, mas todo o Corpo místico de Cristo. Portanto, para alguém “naufragar na fé”, é preciso que tenha estado em algum momento salvo no navio da salvação, a Igreja invisível. E, se eles naufragaram, é porque deixaram este navio, e, consequentemente, a salvação.
[14] De acordo com a Concordância de Strong, 868.
[15] Jeremias 17:13 transmite o mesmo conceito.
[16] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 143.
[17] Embora provavelmente seja.
[18] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 210.
[19] FEINBERG, John Samuel. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 52.
[20] ZIBORDI, Ciro Sanches. Calvinismo, Arminianismo ou a Bíblia? (5). Disponível em: <http://cirozibordi.blogspot.com.br/2008/07/calvinismo-arminianismo-ou-bblia-5.html>
[21] Não entrarei em mais detalhes nesta parte porque, como foi dito, este assunto já foi exaustivamente tratado no capítulo 5, de modo que, se alguém discorda que o homem pode resistir a Deus, é recomendada a leitura daquele capítulo primeiro, e somente depois a leitura deste.
[22] Há uma distinção que deve ser feita entre pecado deliberado e pecado não-deliberado. O pecado deliberado é o pecado consciente onde a pessoa planeja o pecado, depois peca e não se arrepende verdadeiramente do pecado cometido. Em outras palavras, ela peca porque quer pecar. Este é o tipo de pecado mencionado em Hebreus 10:26. O pecado não-deliberado é o pecado por fraqueza, quando um cristão, mesmo sem querer pecar, peca. Em um momento de fraqueza, a tentação vem e você, mesmo lutando contra aquele desejo, não consegue resistir e peca, se arrependendo verdadeiramente pelo pecado cometido. Este é o tipo de pecado mencionado em Romanos 7:15-23. O pecado que pode tirar a salvação é o pecado deliberado, e não o não-deliberado. Embora ambos sejam pecados e ambos tenham suas consequencias no mundo espiritual, é o pecado consciente que coloca o homem em uma condição em que ele diz “não” a Deus e “sim” ao pecado.
[23] Institutas, 3.24.4.
[24] Agostinho, On Rebuke and Grace, 40.
[25] J. C. Ryle, “Eleição”. Disponível em: < http://www.projetospurgeon.com.br/wp-content/uploads/2012/07/Elei%C3%A7%C3%A3o-J.C.Ryle_.pdf>
[26] J. C. Ryle, “Eleição”. Disponível em: < http://www.projetospurgeon.com.br/wp-content/uploads/2012/07/Elei%C3%A7%C3%A3o-J.C.Ryle_.pdf>
[27] J. C. Ryle, “Eleição”. Disponível em: <http://www.projetospurgeon.com.br/wp-content/uploads/2012/07/Elei%C3%A7%C3%A3o-J.C.Ryle_.pdf>
[28] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 115.
Extraído do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?”, Banzoli, cedido pela comunidade de arminianos do Facebook