Uma resposta a Leandro Quadros sobre Colossenses 2.16
A análise histórica seletiva da epístola aos Colossenses, segundo Leandro Quadros
Impossível não perceber a seletividade com que o senhor Leandro Quadros analisa a heresia colossense. Todo o peso de sua evidência parece recair nas tendências meramente gnósticas dos falsos mestres em Colossos. Em nenhum momento, pelo menos neste artigo, ele abre a possibilidade de que tais heresias poderiam estar atreladas também ao judaísmo, senão o tradicional, pelo menos o de outras facções.
Evidências de influências judaizantes na heresia colossense
Concordo com o senhor Leandro Quadros quando afirma que há dificuldades para se identificar o que seria a “heresia colossense”, ou quem eram “os falsos mestres” que estavam introduzindo tais heresias. Não obstante, é quase impossível não ver uma infiltração de práticas judaizantes na igreja de Colossos. Nessa região, Antíoco III instalou, cerca de 210 a.C., uma colônia militar judaica de 2.000 famílias, o que é atestado por Flávio Josefo em “Antiguidades Judaicas, XII, 147-153” e também por Cícero (Pro Flacco 28) que, na época, constava aproximadamente de 66.000 mil judeus. A influência de práticas judaicas é inegável e muito compreensível, visto que os judeus se fixaram de longa data na região e formavam uma comunidade influente.
O famoso Comentário Bíblico Moody afirma:
“A heresia colossense combinou elementos judeus e helenistas. Observâncias dietéticas e a guarda do sábado, o rito da circuncisão, e provavelmente a função mediatória dos anjos são reminiscências da prática e crença judias…” (Comentário Bíblico Moody. Vol 5 Romanos a Apocalipse. Ed. Batista Regular, 2001, p. 203)
Mas se admitirmos a teoria do judaísmo resta saber que tipo de judaísmo era esse. Um judaísmo ortodoxo ou um judaísmo helênico sincretista?
A erudição se divide em duas correntes de pensamento: a gnóstica e a judaica. Uma terceira via acata que ambas estão presentes.
Assinalemos primeiro as práticas que caracterizam a heresia e como elas podem se encaixar numa posição que incorpora a teoria judaica. Vejamos:
(2.3,4,8,9) Negação da divindade de Cristo – desde a época de Jesus que os judeus negavam esse atributo a Ele, e o judaísmo posterior continuou fazendo (Jo 5.18; 10.33);
(2.8) Filosofias – caracterizada como simples paradosis, tradição humana, é a mesma palavra usada para identificar a reprimenda de Jesus às tradições dos judeus em Mt. 15.2,3,6. Essa filosofia dizia respeito aos stoicheia tou kosmou, ou seja, os elementos do mundo. Salta aos olhos de qualquer estudante bíblico que está se referindo à mesma palavra que Paulo usou em Gl 4.3,9 para denominar de forma depreciativa as práticas do judaísmo.
Não precisamos pensar que o termo filosofia se restringe pura e simplesmente ao movimento gnóstico. O judaísmo helenista também possuía sua filosofia como nos informa o estudioso Enéas Tognini:
“O Período Interbíblico também colaborou para a formação da filosofia e da teologia judaicas. A própria expressão ‘filosofia judaico-alexandrina’ já nos remete à influência grega no pensamento judaico […] Empolgados pela filosofia de Platão, mas presos a Moisés, tentaram fundir as duas ‘filosofias’ — a essa tentativa de harmonia entre Moisés e Platão dá-se o nome de ‘filosofia judaico-alexandrina’.” (Tognini, Enéas. O período interbíblico: 400 anos de silêncio profético. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 81).
(2.16) Alimentos e calendários das festas – aqui atinge em cheio as práticas judaicas com todos os seus tabus e leis dietéticas (Lv 23.2-6; Nm 28.3-11; 1 Cro 23.29-31; Mc 7.19; At 10.13,14). Em Jubileus 50.8-12, o preparo de alimentos e as relações conjugais são proibidos no sábado.
(2.18) Culto aos anjos – não devemos ignorar que o papel dos anjos era de suma importância na literatura judaica apocalíptica (cf. Livro de Daniel, Enoc, Assunção de Moisés, etc.). O papel dos anjos – guardiães da lei – revive concepções judaicas. Pois, segundo tais concepções, os anjos haviam participado da promulgação da lei no Sinai (cf. At. 7.38,53 e Gl. 3.19). O Concilio de Laodiceia (cidade vizinha de Colossos), em meados do século IV, vai anatematizar os cristãos que ainda veneravam estes seres. Isto é uma prova histórica de que esta prática ainda estava fortemente arraigada na Ásia Menor.
(1.19) Termos gnósticos – Paulo usou alguns termos que mais tarde iriam ser encontrados nos sistemas gnósticos do século II (cf. Evangelho de Tomé) e que foram veementemente refutados por apologistas como Irineu (Contra Heresias I, 11,1). São eles: gnose (conhecimento) Cl 1.9-10,27-28; 2.2-3; 3.16 e pleroma (plenitude) Cl 1.19; 2.2,9,10. Isto fez alguns suporem que a heresia colossense era uma mistura de gnosticismo com judaísmo essênio.
Como vimos, pelo menos em tese, quase todos os elementos atribuídos ao gnosticismo podem em maior ou menor grau ser aplicados também ao judaísmo.
Mas parece que o senhor Leandro Quadros preferiu esconder seu comentário num reducionismo histórico, puramente gnóstico, para despistar as evidências que apontam para uma influência judaica com o cancelamento completo do sistema judaico da lei.
Todavia, as evidências parecem apontar para o fato de que a “heresia colossense” era uma mistura de práticas judaicas e pagãs. Havia na cidade de Colossos as religiões de “mistérios” (Cl 1.27), como o culto a Cibele e o mitraísmo. Apesar disso é impossível acreditar que Paulo esteja condenando apenas doutrinas gnósticas. Uma objeção muitas vezes levantada é a de que a palavra “lei” não se encontra na carta, portanto, Paulo não estaria tratando de coisas referentes ao judaísmo. Mas apesar de a palavra “lei” não constar explicitamente na carta, indubitavelmente, o conteúdo aponta para controvérsias em torno dela. Havia basicamente três coisas que separavam os judeus dos outros povos e, consequentemente, trazia o escárnio destes sobre aqueles, são elas: a circuncisão, o sábado e as dietas alimentares, o que era exatamente o pivô das cartas de Paulo. O apóstolo alertava os cristãos dizendo que não estavam mais sujeitos a dias santos, a comidas ou circuncisões. Este é o assunto de Romanos 2,14; Gálatas 3, 4,5 e Colossenses 2.
Daí que, como diz o eminente comentarista F.F Bruce: “Referências à circuncisão, às regras alimentares, ao sábado e outros decretos legais indicam que era fundamentalmente judaica, mas não o judaísmo que havia atormentado os gálatas. Em Colossenses, temos referência a uma doutrina sincretista, fundida com alguns aspectos elementares do gnosticismo…” (Bruce, F. F. Comentário Bíblico N V I: Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2008, p. 2017)
Outra autoridade atesta que “A existência desses indivíduos torna-se provável pela refutação paulina do que é geralmente considerado uma espécie de gnosticismo judaico na Igreja colossense. Em Colossos havia, inquestionavelmente, uma versão de cristianismo caracterizada pela circuncisão, pela ascese, pela observância do calendário, pelo misticismo e pelo culto aos anjos (Cl 2,8-23).” (Gerald F. Hawthorne, Ralph P. Martin e Daniel G. Reid.. Dicionário de Paulo e suas cartas. Loyola; Paulus, Vida Nova, 2008, p.43)
Um famoso comentário católico corrobora com esse ponto de vista dizendo: “A maioria dos pesquisadores vincula, de alguma forma, o erro ao judaísmo, já que inclusive os elementos que podem estar ligados aos cultos pagãos, as religiões de mistério, a filosofia helenística ou ao ‘gnosticismo incipiente’ também se encontram no diversificado judaísmo da época, como o evidenciam os escritos tardios do AT, escritos apocalípticos judaicos, literatura sapiencial, os manuscritos do Mar Morto e outros escritos intertestamentais. Em 1875, muito antes da descoberta dos manuscritos do Mar Morto, J. B. Lightfoot sugeriu que os adversários colossenses tinham alguma conexão com o essenismo. De fato, há pontos de contato entre a literatura de Qumran e aquilo que pode ser inferido de Cl sobre os opositores: regras sobre alimentos, preocupação com o calendário, festas e o sábado.” (Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus / Editores: Raymond E. Brown, Joseph A. Fitzmyer e Roland E. Murphy, 2011, p. 608)
E por fim, o velho Calvino arremata: “Em primeiro lugar, é sobejamente evidente, à luz das palavras de Paulo, que aqueles degenerados tencionavam isto – para que pudessem confundir com Moisés e reter as sombras da lei juntamente com o evangelho. Daí ser provável que fossem judeus” (Calvino, João. Série comentários bíblicos – Colossenses. Ed. Fiel, 2010, p. 9)
Poderia aumentar ainda mais as citações, mas creio que tais depoimentos sejam suficientes e fortes o bastante para remover os últimos vestígios de dúvidas sobre se a famigerada “heresia colossense” incorporava ou não práticas judaicas. A evidência positiva é esmagadora, somente o pré-conceito do senhor Leandro Quadros é que não o deixa enxergar.
Que Colossenses 2.16 está fazendo menção também de práticas judaicas é evidente, resta agora saber a identidade destes rituais judaicos e o mais importante: ele incorporava o sábado semanal?
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