Uma cosmovisão da eleição corporativa

vasos-oleiro

A visão arminiana/wesleyana da predestinação é uma visão corporativa. Ao invés de Deus selecionar uma pessoa na eternidade e escolhê-la para a salvação, Deus decide que um grupo, a Igreja, será salvo. Por “Igreja” (ekklesia)compreende-se a “totalidade dos cristãos dispersos por todo o mundo”[1]. Deus decidiu de antemão que aqueles que fizessem parte do Corpo de Cristo estariam predestinados à salvação, mas ele não escolheu individualmente quem faria parte deste Corpo. Em outras palavras, todos tem oportunidade de salvação e podem optar livremente por fazerem parte do Corpo ou não, e aqueles que decidem fazer parte do Corpo estão predestinados à salvação.

Assim sendo, a eleição é corporativa, e não individual. Uma pessoa pode ser considerada “eleita” somente se ela estiver em Cristo, na Igreja, como parte do Corpo de Cristo. Isso explica o porquê que sempre a palavra “predestinação” aparece na Bíblia no plural, em todas as quatro ocorrências do termo:

“Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou” (Romanos 8:29,30)

“E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade (…) Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade” (Efésios 1:5,11)

Portanto, um grupo (Israel no AT e a Igreja no NT) é eleito e predestinado. Assim sendo, todas as pessoas que morrem em Cristo tem a garantia da salvação, e todas as pessoas que estão hoje em Cristo tem a garantia de serem salvas se permanecerem nEle. O inverso também é verdadeiro. Aqueles que não estão em Cristo estão predestinados à morte eterna, se não se arrependerem de seus pecados. Deus não predestina individualmente quem vai crer e quem não vai crer, mas determina que aqueles que decidem crer estão predestinados à salvação, e que aqueles que decidem não crer estão predestinados à perdição.

É assim que podemos entender o texto de Pedro, que diz que “os que não crêem tropeçam, porque desobedecem à mensagem; para o que também foram destinados” (1Pe 2:8). Não é que Deus tenha predestinado uma pessoa individualmente à perdição, mas que todas as pessoas que desobedecem à mensagem estão destinadas a este fim, caso não se arrependam. É este o conceito bíblico simples e lógico da predestinação.

Uma analogia que pode elucidar a questão é a de um navio em alto mar que está predestinado a alcançar o outro lado, um local chamado Paraíso. Este navio se chama Igreja e seu comandante se chama Jesus. Todos aqueles que decidirem entrar neste navio estão predestinados a chegar a este Paraíso, porque o navio está designado a este lugar. Não há nada que possa impedir que este navio alcance o seu objetivo. Não há nada que possa afundar este navio.

Mas isso não significa que o comandante tenha também predestinado individualmente quem estaria no navio, nem significa que alguém que hoje está fora do navio não possa entrar nele, ou que alguém que hoje está nele não possa se jogar do navio e perecer em alto mar. Enquanto estamos em Cristo, sabemos que somos predestinados, porque Cristo foi predestinado e nós somos predestinados nEle. Nós somos eleitos no Filho. Mas Deus não escolheu individualmente quem estaria no Corpo e quem não estaria – o que o tornaria arbitrário e injusto.

Uma das provas mais fortes de que Paulo não cria em uma eleição individual, onde Deus escolhe a dedo quem seria salvo e quem não seria, é que o apóstolo, embora se incluísse no grupo dos predestinados pelo pronome nós, em momento nenhum assegurou que já estava salvo – o que ocorreria no caso de ele já ter garantida a sua salvação em função de ele ser um “eleito”. Ao contrário, vemos Paulo dizendo que, embora a sua consciência em nada o acusasse, nem por isso já se considerava justificado:

“Embora em nada minha consciência me acuse, nem por isso justifico a mim mesmo; o Senhor é quem me julga” (1ª Coríntios 4.4)

Ele também trabalhava com a hipótese de poder ser reprovado no futuro, depois de ter pregado o evangelho a muitos:

“Sendo assim, não corro como quem corre sem alvo, e não luto como quem esmurra o ar. Mas esmurro o meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado” (1ª Coríntios 10.26-27)

Ele ainda dizia que não havia alcançado o alvo:

“Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, Prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Filipenses 3.13-14)

Então, embora Paulo se incluísse entre os eleitos (porque ele era parte do Corpo – estava dentro do navio), ele não se considerava individualmente eleito à salvação, senão jamais iria trabalhar com a possibilidade de reprovação, de não alcançar o alvo ou de não ser justificado. Ele estava predestinado à salvação assim como todos os demais, pelo fato da eleição ser corporativa e ele fazer parte deste Corpo. Mas não há nada que indique que essa predestinação, que é incondicional em relação à Igreja (o navio), seja incondicional também em relação aos cristãos (tripulantes).

Em outras palavras, Deus não predestina quem vai estar no navio; Ele predestina aqueles que estão no navio. Ele não aponta para João e diz que ele vai estar no navio e para Pedro dizendo que não vai estar. Ele permite que João e Pedro decidam a quem servir, se entram ou não entram no navio, e predestina o navio ao outro lado, o Paraíso. Desta forma, se João decide entrar e Pedro rejeita o convite do comandante, João estará predestinado ao outro lado porque o navio está predestinado a chegar lá, assim como quando alguém que pega um avião do Brasil ao Japão está destinado a chegar ao Japão, se não voltar atrás ou se lançar pela janela.

É por isso que a Bíblia diz para consolidarmos a nossa eleição:

“Portanto, irmãos, empenhem-se ainda mais para consolidar o chamado e a eleição de vocês, pois se agirem dessa forma, jamais tropeçarão, e assim vocês estarão ricamente providos quando entrarem no Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2ª Pedro 1:10,11)

Por que temos que “consolidar” a nossa eleição? Porque ela não é “fixa”. A palavra utilizada no grego aqui é bebaios, que significa “estável, fixo, firme”[2]. Se temos que fazer firme a nossa eleição, é porque ela não é algo já fixo, estável ou imutável. É por isso que Pedro diz que, se agirmos assim, jamais tropeçaremos, passando nitidamente a ideia de que, se não consolidarmos nossa eleição, iremos tropeçar e não estaremos no “Reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”.

Portanto, embora o navio (Igreja) estava incondicionalmente predestinado a alcançar o outro lado (a glória), individualmente não há nada decidido. Todos são eleitos enquanto estão no navio, mas nem todos os que hoje estão irão continuar nele amanhã, assim como nem todos os que hoje estão fora irão permanecer do lado de fora, pois o arrependimento é possível a todos (At.17:30). Para entrar neste navio, há uma condição que é crer em Cristo e se arrepender dos pecados cometidos, de onde podemos dizer que, individualmente, essa eleição e a “consolidação” dela é condicional.

Embora Calvino reconhecesse que os judeus foram um povo escolhido por Deus[3] e a Igreja também[4], ele cria na predestinação como individual, com Deus escolhendo individualmente quem seria incondicionalmente salvo e quem incondicionalmente se perderia, e dessa eleição individual e arbitrária é que provinha a eleição corporativa, e não o contrário. Enquanto na Bíblia um grupo é eleito à salvação e cada indivíduo pode pessoalmente decidir se entra ou se não entra neste grupo, no calvinismo Deus escolhe quem entra e quem não entra e o destino deste grupo é mera consequencia da eleição individual.

A analogia do navio com a eleição corporativa também está presente na Bíblia de Estudo “Life in the Spirit”, que diz:

“Concernente à eleição e predestinação, podemos usar a analogia de um grande navio no seu caminho para o céu. O navio (a igreja) é escolhido por Deus para ser sua própria embarcação. Cristo é o Capitão e o Piloto desse navio. Todos os que desejam ser uma parte deste navio eleito e do seu Capitão, pode fazê-lo através de uma fé viva em Cristo, pela qual eles vêm a bordo no navio. Enquanto eles estão no navio, em companhia do Comandante do navio, estão entre os eleitos. Se eles escolherem abandonar o navio e o Capitão, eles deixam de fazer parte dos eleitos. A eleição sempre está em união com o Capitão e o seu navio. A predestinação nos diz sobre o destino do navio e o que Deus tem preparado para aqueles que permanecem nele. Deus convida a todos para entrar a bordo do navio eleito mediante a fé em Jesus Cristo”[5]

Philip Limborch resume a crença da predestinação à salvação e à perdição da seguinte maneira:

“A predestinação é aquele decreto pelo qual, antes de todos os mundos, ele decretou que os que cressem em seu filho Jesus Cristo fossem eleitos, adotados como filhos, justificados e, em sua perseverança na fé, fossem glorificados, e, por outro lado, que os descrentes e obstinados fossem reprovados, cegados, endurecidos, e, se continuassem impenitentes, fossem condenados eternamente”[6]

Que a eleição corporativa não implica na eleição incondicional de cada indivíduo, Laurence Vance prova ao traçar uma analogia com o povo israelita, que era a nação eleita de Deus, e onde, mesmo assim, muitos se desviaram e apostataram:

“Deus chamou Abraão para fazer uma grande nação (Gn 12.1-3). Por sua vez foi transmitido a Isaque (Gn 17.19) e Jacó (Gn 28.3-4). Jacó então desceu ao Egito onde seus filhos se tornaram uma grande nação (Ex 1.7). Depois que Israel foi escravizado, Deus se lembrou de sua aliança com Abraão, Isaque, e Jacó (Ex 2.24-25), declarando: ‘Israel é meu filho, meu primogênito’ (Ex 4.22). Deus escolheu Israel para ser um povo peculiar acima das outras nações (Dt 14.2). Era um caso raro de ‘eleição soberana’, como os calvinistas diriam. Mas a nação de Israel fez o que era mal desde sua juventude (Jr 32.30). Eles se rebelaram contra Deus (Dt 9.7), provocaram a ira de Deus (Dt 9.8), murmuraram (Ex 16.23), e se tornou um povo de dura cerviz (Ex 32.9); levando Deus a matar alguns pelo fogo (Nm 11.1), pela praga (Nm 32.10), e finalmente quase consumindo toda a nação (Ex 32.10). Israel foi comandado a não se contaminar com os costumes das outras nações (Lv 18.24), nem fazer qualquer aliança com eles (Ex 34.12), mas destrui-las completamente (Dt 7.2), demonstrando nenhuma piedade (Dt 7.16). Ao invés, os filhos de Israel ‘andaram segundo os costumes dessas nações’ (2Re 17.8) e fizeram ‘ainda pior do que as nações que o Senhor tinha destruído’ (2Cr 33.9). Deus finalmente os enviou ao cativeiro na Babilônia sob Nabucodonozor (Dn 1.1-2). E ainda que muitos judeus retornaram para sua terra natal sob Esdras e Neemias, eles nunca recuperaram sua proeminência sobre as nações. Quando seu Messias apareceu para livrá-los, eles o crucificaram e declararam: ‘O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos’ (Mt 27.25); por isso: ‘A ira caiu sobre eles afinal’ (1Ts 2.16)”[7]

William Klein é outro que discorre largamente sobre a eleição corporativa. Ele disse que “os escritores do Novo Testamento lidam com a eleição salvífica, primeiramente, se não exclusivamente, em termos cooperativos”[8]. Ele afirma também que “Deus escolheu a igreja como um corpo em vez de pessoas em específico que populam o corpo”[9], e que “exercer a fé em Cristo é entrar em seu corpo e tornar um dos ‘escolhidos’”[10]. Ele também declarou:

“Assim como Israel tornou-se o povo escolhido de Deus quando Deus escolheu Abraão e Abraão respondeu com fé, assim a igreja encontra sua eleição em unidade com Cristo, ou seja, em sua igreja e, assim, torna-se um eleito”[11]

Ainda que de forma discreta, Norman Geisler é outro que parece concordar com a visão da eleição corporativa. Em seu livro sobre eleição e livre-arbítrio, ele diz:

“A porta para a verdadeira Igreja está aberta a todos os que querem entrar e ser parte desse grupo especial que experimenta seu amor especial. Porque ‘Deus […] amou o mundo’ (Jo 3.16) e, assim, querendo que todos se tornem participantes do relacionamento que Cristo tem com sua noiva, ‘o Espírito e a noiva dizem: Vem! E todo aquele que ouvir diga: Vem! Quem tiver sede, venha; e quem quiser, beba de graça da água da vida’ (Ap 22.17)”[12]

O pastor Ciro Zibordi também explica a doutrina da eleição corporativa nas seguintes palavras:

“Deus elegeu a si um povo chamado Igreja, e não indivíduos, isoladamente. Somos predestinados porque somos parte da Igreja de Deus; não somos parte da Igreja porque fomos antes, individualmente, predestinados. Se, na Igreja, como Corpo de Cristo, alguém individualmente se desvia, e não volta, a eleição da Igreja não se altera. De igual modo foi a eleição de Israel. O Senhor elegeu aquele povo para si; não indivíduos. Tanto é que milhares de israelitas se desviaram, porém a eleição de Israel, como povo, prosseguiu”[13]

Ele também afirma:

“Eleição é o ato divino pelo qual Deus escolhe ou elege um povo para si, para salvá-lo (2 Ts 2.13). Predestinação é o ato de Deus determinar o futuro desse povo. No Novo Testamento, esse povo é a Igreja, o Corpo de Cristo, do qual – se somos salvos mesmo! – somos parte (Ef 1.22,23)”[14]

O autor arminiano Robert Shank resume a divergência entre calvinistas e arminianos neste ponto, dizendo:

“No calvinismo, a eleição para a salvação é particular de cada homem incondicionalmente, cada homem completa um grupo corporativo incidentemente. No arminianismo, a eleição é corporativa e compreende homens individuais somente em identificação e associação com o corpo eleito”[15]

De forma semelhante, o autor calvinista Manford Kober diz:

“O arminiano dirá que o homem é eleito porque ele crê. O calvinista afirma que o homem crê porque ele é um eleito”[16]

O filósofo, teólogo e doutor mundialmente reconhecido William Lane Craig concorda com a visão Arminiana/wesleyana corporativa da eleição e cita Shank várias vezes em defesa da adoção deste sistema como a crença mais plausível sobre a predestinação. Ele diz:

“Se e somente se a pessoa estiver em Cristo, ela está eleita e predestinada, como a passagem ensina. A eleição é essencialmente corporativa, antes que individual. Isto quer dizer que a eleição se dá em um corpo ou em um grupo de entidade corporativa que Deus elegeu. Se e somente se uma pessoa é uma parte deste grupo corporativo ou corpo, esta pessoa compartilha das bênçãos. Uma pessoa está em Cristo, e, portanto, é eleita e predestinada”[17]

Ele também traça uma interessante analogia que também nos ajuda a entender como funciona a eleição corporativa:

“Seria como dizer que nós teremos um grupo de pessoas que dirão: ‘Vá a uma excursão em Israel com Bryant Wright’. Qualquer um que quiser se inscrever poderá fazê-lo. Mas aqueles que forem na turnê estarão garantidos a visitar o Mar da Galileia, andar nos muros de Jerusalém, visitar o Jardim da Tumba e assim por diante, por isto é o que está planejado. Mas não existe garantia de quem estará no grupo”[18]

E ele complementa:

“Aqui Deus predestinou ou ordenou que esse grupo será justificado, santificado, glorificado e assim por diante, mas não garante quem estará no grupo. É primeiramente um sentido corporativo, e se torna num sentido individual somente secundariamente em virtude das pessoas adentrando no grupo”[19]

Creio que o leitor já deve ter captado a ideia do que os arminianos e wesleyanos entendem por predestinação e eleição.

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[1] De acordo com a Concordância de Strong, 1577.

[2] Concordância de Strong, 949.

[3] Institutas, 1.6.1.

[4] Institutas, 4.1.10.

[5] Life in the Spirit Study Bible, 1854-1855 pp.

[6] LIMBORCH, Philip., trad. William Jones. London: John Darby, 1713, p. 343.

[7] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.

[8] KLEIN, William. The New Chosen People (Eugene, OR; Wipf & Stock, 2001), p. 257.

[9] KLEIN, William. The New Chosen People (Eugene, OR; Wipf & Stock, 2001), p. 259.

[10] KLEIN, William. The New Chosen People (Eugene, OR; Wipf & Stock, 2001), p. 265.

[11] KLEIN, William. The New Chosen People (Eugene, OR; Wipf & Stock, 2001), p. 265.

[12] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 88.

[13] ZIBORDI, Ciro Sanches. Crer na predestinação e no livre-arbítrio não é um contra-senso (1). Disponível em: <http://cirozibordi.blogspot.com.br/2008/07/internauta-opina-14.html>

[14] ZIBORDI, Ciro Sanches. Que tipo de cristãos somos nós? Disponível em: <http://cirozibordi.blogspot.com.br/2009_07_01_archive.html>

[15] SHANK, Robert. Eleito no Filho, p. 48.

[16] Manford E. Kober, Divine Election or Human Effort? p. 44.

[17] CRAIG, William Lane. Doutrina da Salvação – Parte 3 – Arminianismo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NIshOGmcl5k#t=123>

[18] CRAIG, William Lane. Doutrina da Salvação – Parte 3 – Arminianismo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NIshOGmcl5k#t=123>

[19] CRAIG, William Lane. Doutrina da Salvação – Parte 3 – Arminianismo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NIshOGmcl5k#t=123>

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