Uma análise de I Timóteo 2.1-6

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1. A primeira exigência de Paulo é que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graça, em favor de todos os homens. Não é necessário forçar a exata distinção entre estes termos; seu objetivo é insistir na centralidade da oração mais do que oferecer uma análise sistemática dos seus tipos. A menção de ações de graças (Gr.eucharistias), no entanto merece ser notada. Como em 1 Co 14:16-17, devemos provavelmente ver aqui uma referência à eucaristia, que desde os tempos mais antigos era considerada como sendo, em essência, uma oração de bendizer e agradecer a Deus por toda a Sua bondade, desde a criação do mundo até o envio do Seu Filho para sofrer, morrer, e ressuscitar pela salvação dos homens.

A solicitude principal de Paulo é que a intercessão cristã deva ser em favor de todos os homens; este fato é confirmado pela sua lembrança enfática em 4 e 6 que Deus quer que todos os homens saibam a verdade, e que Cristo deu Sua vida por toda a humanidade. Devemos inferir que havia um espírito exclusivista nalgumas seções da comunidade de Éfeso, provavelmente em conexão com a tendência judaico-gnóstica no pensamento dos mestres do erro. Paulo toma claro que uma atitude estreita deste tipo é uma ofensa contra o evangelho de Cristo.

2. Em especial, os cristãos devem orar em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade. O primeiro teimo, reis, designava o imperador no oriente, e visto que é empregado aqui no plural, a inferência tem sido tirada que a carta deve datar de depois de 136, quando os imperadores tinham colegas associados com eles. A injunção é geral, no entanto, e o plural abrange não somente o imperador romano (no presente caso, Nero), como reis locais também. Os que se acham investidos de autoridade, também, é uma descrição geral para oficiais de destaque de quase qualquer tipo. O cristianismo logo teria bons motivos para hostilidade contra o estado, e o Apocalipse demonstra que tal atitude tornou-se comum nalguns círculos. Mas o N.T. testifica de considerável lealdade às autoridades imperiais e cívicas: e.g. Rm 13:1ss.; 1Pe 2:14, 17; Tt 3:1; Atos passim. No judaísmo, o sacrifício era regularmente oferecido no Templo e intercessão feita nas sinagogas pelo poder civil pagão: cf. LXX Jr 36:7; Bar. 1:10-13; Ed 6:10; 1 Mac. 7:33. O costume logo arraigou-se no cristianismo, e tais orações eram estabelecidas na liturgia já em fins do século I (1 Clem. lxi). De modo geral, no decurso das eras, o cristianismo tem inculcado respeito para com o poder civil, seja cristão, seja pagão, pelo menos até que começa a exercer uma tirania intolerável. A base teológica tem sido a convicção de que o poder e a autoridade terrestres têm seu lugar destinado na disposição providencial do mundo (cf. Rm 13:1ss.).

Duas razões são propostas para tais orações. A primeira (a segunda é dada em 3-6) é que, como resultado benéfico delas, os cristãos podem esperar que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda piedade e respeito. Noutras palavras, não sendo expostos à suspeita da deslealdade, terão licença de praticar sua religião sem medo de serem molestados, e de viver a vida moralmente séria apropriada a ela. Os dois termos traduzidos piedade (Gr. eusebeia) e respeito (Gr. semnotes) pertencem ao koiné superior; Paulo somente os emprega nas Pastorais, e fornecem mais uma ilustração do estilo distintivo delas. O primeiro (cf. 3:16; 4:7-8; 6:3, 5, 6, 11; 2Tm 3:5; Tt 1:1) designa a atitude religiosa no sentido mais profundo, a verdadeira reverência a Deus que advém do conhecimento dEle; o último (cf. 3:4; Tt 2:7) conota a seriedade moral, que afeta o comportamento externo bem como a intenção interior. Juntos, representam o equivalente helenístico das palavras hebraicas “santidade” (Gr. hosiotes) e “justiça” (Gr. dikaiosune) combinadas em Lc 1:75. Resumem, conforme frequentemente tem sido indicado, o ideal religioso das cartas, acentuando-se a piedade estabelecida que se expressa numa vida bem organizada, que muitos (ver a Introdução, págs. 24-25) acham difícil associar com Paulo. Do outro lado, (a) as palavras propriamente ditas podem ser devidas ao seu secretário; e (b) não podemos excluir a possibilidade de que a atitude de Paulo tivesse passado por uma mudança considerável como resultado do decorrer dos anos e das circunstâncias alteradas.

3-6. Paulo agora chega à sua segunda razão, mais profunda e teológica. Isto, declara ele, é bom e aceitável diante de Deus nosso Salvador. A intercessão geral, ele quer dizer, e a intercessão por autoridades em especial, é uma coisa boa em si mesma, mas, além disto, agrada a Deus, cuja natureza é salvar (para nosso Salvador, ver sobre 1:1). Embora seja realmente o Salvador de nós, os cristãos (esta é a força de nosso), também deseja que todos os homens sejam salvos, i.é, que escapem à ira divina no último dia, e, como um preliminar indispensável a isto, que cheguem ao pleno conhecimento da verdade. Esta última frase é usada por Paulo apenas nas Pastorais (2Tm 2:25; 3:7; Tt 1:1: cf. Hb 10:26), embora a palavra para conhecimento (Gr. epignosis) seja uma favorita dele, e ele fale da “verdade do evangelho” (Gl 2:5, 14) ou da “verdade” (Gl 5:7; Rm 2:8; 2Co 6:7). É mais um exemplo da dicção helenística das cartas. “Conhecimento” inclui, não somente a apreensão racional da parte do crente, como também a aceitação pela fé, ao passo que a “verdade” é a totalidade da revelação de Deus em Cristo; nas Pastorais, quase conota a ortodoxia cristã. A expressão inteira, chegar ao pleno conhecimento da verdade, tem um som distintivamente joanino, e é o equivalente de “ser convertido ao cristianismo.”

No decurso da história cristã esta frase tem provocado intenso esquadrinhar do coração e controvérsia. Como a vontade de Deus no sentido de salvar todos pode ser reconciliada com (a) a crença quase universal que nem todos na realidade são salvos, e (b) o ensino acerca da predestinação exposto pelo próprio Apóstolo noutros lugares (e.g. Rm 9)? O que fica claro acima de tudo é que todas as qualificações sutis que foram propostas (e.g. a sugestão de Tertuliano quetodos significa “todos quantos Ele adotou”, e a de Agostinho, que denota “todos os predestinados, porque todos os tipos da humanidade estão entre eles”) são artificiais e fora de lugar. O mesmo se aplica igualmente à distinção muito mais sensata, feita por pais como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia, e João Damasceno, feita entre a vontade geral e antecedente de Deus de que todos quantos criou devessem compartilhar da Sua bem-aventurança, e Sua vontade subsequente que todos quantos se recusam a aceitar Sua livre graça fossem castigados. A verdade é que todas as perguntas que a teologia posterior haveria de fazer estavam remotas da mente do Apóstolo. Ao afirmar o escopo universal da vontade de Deus para salvar estava provavelmente consciente de discordar (a) da crença judaica de que Deus determinou a destruição dos pecadores e a salvação dos justos somente, e (b) a teoria gnóstica de que a salvação pertencia somente a uma elite espiritual.

Para decidir seu argumento, Paulo encaixa, nos vv. 5 e 6, o que é quase certamente (cf. as quatro cláusulas, compactas, equilibradas e rítmicas) um extrato de uma fórmula catequética ou litúrgica que provavelmente já era familiar aos seus leitores. É do tipo com duas partes, conforme cita noutros lugares: cf. esp. 1Co 8:6. A primeira cláusula afirma a doutrina básica do judaísmo, repetida em cada culto na sinagoga e por judeus piedosos em todos os lugares (Dt 6:4-9),há um só Deus. A conjunção de ligação Porquanto demonstra que a declaração é feita para apoiar o que antecede, e é digno de nota que Paulo noutros lugares (e.g. Rm 3:29) faz da unicidade de Deus o fundamento da universalidade do evangelho. A segunda cláusula continua: e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem. Destarte, exclui, de um lado, as ideias judaicas de Moisés (G1 3:19) ou dos anjos (Hb 2:6ss.; Test. xii Patr., Dn 6) agindo como intermediários, e, do outro lado, todas as divindades intermediárias, eões gnósticos, etc., aceitos nos círculos pagãos. Cristo pode desempenhar este papel sem igual precisamente porque Ele mesmo é homem. Temos aqui, em forma resumida, o conceito do segundo Adão, o inaugurador de uma nova humanidade, redimida, que Paulo expõe em Rm 5:12ss.; 1Co 15:21-22; 45ss. Tem sido objetado que em nenhum outro lugar Paulo chama Cristo de Mediador, e que reserva esta descrição para Moisés (Gl 3:19), mas contra isto devemos notar (a) que estamos quase certamente tratando aqui com uma citação, e (b) que de qualquer maneira o ensino de Paulo acerca da redenção é essencialmente mediatório visto que, de acordo com ele, os seres humanos são restaurados à comunhão com Deus por meio de Cristo e da Sua obra por eles.

A confissão passa a definir esta obra: O qual a si mesmo se deu em resgate por todos. Esta é uma versão livre da declaração do próprio Cristo (Mc 10:45) que o Filho do Homem veio “para dar a sua vida em resgate por muitos.” Visto que Paulo não está expondo uma teoria da Expiação da parte dele mesmo, mas, sim, citando o que viera a ser um chavão teológico, é infrutífero especular acerca do complexo de ideias que o subjazem. As palavras importantes para ele eram por todos; é o fato de que Cristo morreu por todos os homens, sem qualquer tipo de favoritismo, que toma obrigatório para os cristãos orar por todos eles sem distinção.

A cláusula que se segue – testemunho que se deve prestar em tempos oportunos (“assim prestando testemunho no bom tempo de Deus”) – é enigmática; as variantes dos MSS demonstram quanta dificuldade os exegetas primitivos tinham com ela. Muitos entendem que faz parte da citação de Paulo, mas a fórmula é mais nítida sem nenhum acréscimo final; realmente, é difícil ver sua relevância. Muito mais provavelmente devemos entendê-la como um comentário do Apóstolo que fica em oposição frouxa (cf. Rm 12:1; 2Ts 1:5 para a construção) à declaração antecedente. O que Paulo está dizendo é que, ao morrer por toda a humanidade de acordo com o plano divino, Cristo deu testemunho esmagadoramente convincente ao desejo de Deus pela salvação de todos os homens. Ele o deu “no tempo oportuno de Deus,” i.é, no momento decisivo da história que Deus, na Sua providência, fixara para a realização do Seu propósito (cf. Rm 5:6; Gl 4:4). Esta interpretação é confirmada por Tt 1:3, mas visto que a expressão (Gr. kairois idiois) também pode ter uma referência futura (6:15: cf. 2Ts 2:6), alguns preferem este significado aqui. Explicam, assim, que o texto significa que o ato de Cristo de sacrificar-Se foi “o testemunho para tempos determinados vindouros,” sendo que o “tempo” especialmente em mira é o evento final da redenção. Duvida-se, no entanto, se o grego pode dar este sentido, e tendo em vista a menção da morte salvífica de Cristo uma referência ao passado parece ser, de qualquer maneira, mais apropriada.

Fonte: I e II Timóteo e Tito, pp. 64-68 – J. N. D. Kelly

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