Textos Bíblicos e o sinergismo ortodoxo

Jesus misericordia de Deus

Mas a Bíblia dá mesmo respaldo para algum tipo de cooperação humana que podemos chamar de “sinergismo”? Há diversas passagens que indicam que sim, e que dificilmente podem ser explicadas pela ótica monergista, onde o homem é um agente completamente passivo[1]. Tiago, por exemplo, nos diz:

“Aproximem-se de Deus, e ele se aproximará de vocês” (Tiago 4:8)

Há uma parte nossa – “aproximem-se de Deus” – e há uma parte de Deus – “e ele se aproximará de vocês”. Se a relação entre Deus e o homem fosse completamente monergística, não haveria uma “parte do homem”. Tudo seria somente da “parte de Deus”. Quem Deus aproximasse dele, estaria aproximado dele. O versículo deixa claro que existe uma relação sinergista entre Deus e o homem. Em Jeremias, o próprio Deus também deixa este conceito evidente, ao dizer:

“Então me invocareis, e ireis, e orareis a mim, e eu vos ouvirei. E buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes com todo o vosso coração. E serei achado de vós, diz o Senhor” (Jeremias 29:12-14)

É por isso que podemos ser chamados de “cooperadores de Deus”:

“Como cooperadores de Deus, insistimos com vocês para não receberem em vão a graça de Deus” (2ª Coríntios 6:1)

É impossível ler um versículo que diz que nós somos cooperadores de Deus e ainda dizer que Deus opera tudo de forma unilateral, independentemente das atitudes ou escolhas humanas. Paulo repete o mesmo parecer em 1ª Coríntios 3:9, quando diz que “nós somos cooperadores de Deus” (1Co.3:9). Isso, é claro, não significa que o homem possa se orgulhar de alguma coisa, porque a nossa capacidade vem de Deus:

“Não que possamos reivindicar qualquer coisa com base em nossos próprios méritos, mas a nossa capacidade vem de Deus” (2ª Coríntios 3:5)

Tudo o que o homem faz de bom, é porque Deus o capacitou a isso. “O poder com o qual alguém coopera com a graça é da própria graça”. É como disse Paulo:

“Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fazia crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento. O que planta e o que rega têm um só propósito, e cada um será recompensado de acordo com o seu próprio trabalho” (1ª Coríntios 3:6-8)

Até mesmo o versículo mais usado pelos calvinistas, que diz que “Deus opera em vós o querer e o realizar” (Fp.2:13), é claramente sinergista diante do contexto, que imediatamente antes diz: “operai a vossa salvação com temor e tremor” (Fp.2:12). Então, vemos que dentro de dois versículos Paulo diz que nós operamos a nossa salvação e que Deus opera a nossa salvação[2]. Estaria o apóstolo sendo contraditório, ou estaria ele refutando a si mesmo no verso 12?

É claro que não. As duas coisas são verdadeiras. É Deus que opera em nós a salvação, mas isso não ocorre de forma independente das atitudes humanas. O homem pode resistir a Deus, e, consequentemente, rejeitar a operação de Deus na sua vida, igual fizeram os fariseus, que “rejeitaram o propósito de Deus para eles” (Lc.7:30).

Portanto, Deus opera através do homem, e este, por sua vez, pode resistir à operação de Deus em sua vida e rejeitar o propósito para ele. É somente deste jeito que podemos entender dois versos aparentemente contraditórios, onde a operação é declarada ser tanto do homem como de Deus. É somente assim que podemos dar algum sentido à parte em que Paulo exorta os homens a operarem a própria salvação. É como disse Olson:

“Se as pessoas estiverem operando sua salvação, do início ao fim, é apenas porque ‘Deus está trabalhando’ nelas (…) Mas não faria sentido algum para Paulo exortar seus leitores para que operassem sua salvação com temor e tremor se Deus estivesse fazendo tudo e eles sequer tivessem de cooperar permitindo que a graça de Deus trabalhasse neles”[3]

Comentando o verso de Mateus 19:24, onde Cristo diz que“é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt.19:24), ele também assevera:

“Jesus está dizendo que é mais difícil para Deus salvar um rico do que um pobre? Como pode isso? Se todos, sem exceção, apenas entram no reino de Deus pela obra de Deus apenas sem nenhuma cooperação exigida da parte da pessoa, então a fala de Jesus não faz sentido algum”[4]

Lemke é outro que fez observações sobre este versículo. Ele diz:

“Claro, se Jesus fosse calvinista Ele jamais teria sugerido que é mais difícil para os ricos serem salvos pela graça irresistível de Deus do que os pobres. Suas vontades teriam sido mudadas imediata e invencivelmente no momento da chamada eficaz de Deus. Não seria mais difícil para um rico ser salvo pela chamada monergista e irresistível de Deus do que seria para qualquer outro pecador. Mas o Jesus real estava sugerindo que a salvação das pessoas estava, em certa medida, atrelada a sua resposta e compromisso com Sua chamada”[5]

Ainda há outros problemas para os proponentes da tese monergista. Sabemos que os “eleitos” continuam pecando mesmo depois de alcançarem a salvação. Se o livre-arbítrio não existe e o processo é totalmente monergista, deveríamos chegar à infeliz conclusão de que é Deus quem manda os seus “eleitos” pecarem de vez em quando. Isso é obviamente absurdo, pois macula o caráter de santidade de Deus. A relação sinergista entre Deus e o homem é necessária, ou, senão, os pecados não seriam resultado de uma operação humana, e sim de uma operação divina. O homem não seria pecador: Deus é que seria.

Por fim, há uma parábola que eu creio que expressa bem a relação sinergista entre Deus e o homem – a parábola dos talentos. Nela, Jesus diz:

“A um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um; a cada um de acordo com a sua capacidade. Em seguida partiu de viagem. O que havia recebido cinco talentos saiu imediatamente, aplicou-os, e ganhou mais cinco. Também o que tinha dois talentos ganhou mais dois. Mas o que tinha recebido um talento saiu, cavou um buraco no chão e escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de muito tempo o senhor daqueles servos voltou e acertou contas com eles. O que tinha recebido cinco talentos trouxe os outros cinco e disse: ‘O senhor me confiou cinco talentos; veja, eu ganhei mais cinco’. O senhor respondeu: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco; eu o porei sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu senhor!’ Veio também o que tinha recebido dois talentos e disse: ‘O senhor me confiou dois talentos; veja, eu ganhei mais dois’. O senhor respondeu: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco; eu o porei sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu senhor!’ Por fim veio o que tinha recebido um talento e disse: ‘Eu sabia que o senhor é um homem severo, que colhe onde não plantou e junta onde não semeou. Por isso, tive medo, saí e escondi o seu talento no chão. Veja, aqui está o que lhe pertence’. O senhor respondeu: ‘Servo mau e negligente! Você sabia que eu colho onde não plantei e junto onde não semeei? Então você devia ter confiado o meu dinheiro aos banqueiros, para que, quando eu voltasse, o recebesse de volta com juros. ‘Tirem o talento dele e entreguem-no ao que tem dez. Pois a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado. E lancem fora o servo inútil, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes’” (Mateus 25:15-30)

Em primeiro lugar, a parábola mostra que quem distribui os talentos é Deus. Os talentos são dádivas de Deus, não são autoproduzidos pelo homem. Em segundo lugar, a parábola mostra que todos receberam pelo menos algum talento. Ela não diz que Deus escolheu alguém para não receber talento nenhum. Em terceiro, ela nos mostra a parte do homem. Deus dá o talento e a capacitação de multiplicar esse talento, mas o homem mesmo assim pode “esconder” o talento, rejeitando a vontade de Deus e a operação dEle.

A parábola também não teria sentido nenhum caso tudo fosse uma relação monergista. Se o talento é multiplicado ou dividido apenas de acordo com a vontade arbitrária de Deus para com cada um, então Deus estaria culpando aquele homem que escondeu os talentos sendo que foi ele mesmo que impediu que os talentos fossem multiplicados. Em outras palavras, Deus estaria condenando aquele homem ao inferno por algo que Ele próprio fez, monergisticamente, unilateralmente, sem qualquer influência de qualquer ação humana.

Dentro da visão sinergista, a parábola tem sentido. Todos os talentos vêm de Deus e são dádivas dele. Ninguém fica sem receber nenhum talento. Ninguém é “abandonado” por Deus, como cria Calvino. Porém, é possível que alguém resista ao Espírito Santo e, por sua própria obstinação e resistência, tornar-se culpado por ter impedido a ação de Deus, que poderia ter multiplicado aqueles talentos da mesma forma que fez com os demais. Aquele homem é culpado por algo que ele deixou de fazer e que ele poderia ter feito. Deus permanece justo, o homem permanece responsável, e o processo permanece sinergista.

[1] Passarei aqui apenas citações que ainda não foram mostradas no livro, porque muitas delas que falam do livre-arbítrio e da graça resistível também se aplicam perfeitamente aqui, as quais já foram abordadas em capítulos anteriores.

[2] É realmente impressionante a quantidade de vezes que Calvino citou o verso 13 (que fala de Deus operando a salvação), sempre omitindo o verso 12 (que fala do homem operando a salvação). De longe, asseguro que o verso 13 foi citado, pelo menos, uma cem vezes, enquanto o verso 12 não foi citado nem uma única vez, como se não existisse. Ou na Bíblia de Calvino inexistia o verso 12, ou ele era extremamente tendencioso em suas interpretações.

[3] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 268.

[4] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 258.

[5] Lemke, “A Biblical and Theological Critique of Irresistible Grace”, in Whosoever Will: A Biblical-Theological Critique of Five-Point Calvinism, ed. David L. Allen and Steve W. Lemke (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2010), p. 121.

Extraído do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?”, cedido pela comunidade de arminianos do Facebook

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