Soberania é sinônimo de determinismo?

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Uma tática muito usada por calvinistas é igualar determinismo com soberania, como se a tese determinista deles fosse a única que realmente aceitasse a soberania de Deus. Assim, a coisa mais comum do mundo é vermos calvinistas, de forma astuta e sagaz, trocando o termo determinismo por soberania, para fazer parecer seu determinismo algo mais “bíblico”. Outros, igualmente ardilosos, usam os termos determinismo e soberania em paralelismo, como sinônimos.

O objetivo deste truque é um só: indicar que todos aqueles que não são deterministas não creem na soberania de Deus. E como a soberania de Deus é biblicamente indiscutível, muitos são levados a crer no determinismo, por serem ludibriados por tais pregadores sagazes que lhes convencem que determinismo e soberania é a mesma coisa, e que qualquer coisa que difira de determinismo diminui ou exclui a soberania divina. Por conseguinte, eles creem que os arminianos e todos os outros grupos não-deterministas são também contra a soberania.

Contra essa tática engenhosa e farsante, é necessário dizer, antes de tudo, que arminianos creem na soberania de Deus tão ou mais fortemente quanto calvinistas creem. Também é necessário dizer que soberania nunca, em momento nenhum, foi sinônimo de determinismo. Determinismo é uma coisa, soberania é outra[1].

Tanto o determinismo quanto o indeterminismo são formas plausíveis de honrar a soberania divina. O calvinista crê que Deus é soberano porque determina todas as coisas. O arminiano crê que Deus é soberano porque tem todas as coisas sob seu controle. Ambos creem que Deus é o único e verdadeiro soberano da criação. Nenhum crê em um Deus deísta, que cria tudo e depois senta de braços cruzados e deixa tudo para o acaso decidir.

A diferença é que, “para os arminianos, as duas coisas – a glória de Deus e o amor de Deus – não podem ser divididas”[2]. Consequentemente, uma doutrina da soberania de Deus que faz dele o autor do pecado e do mal e que o transforma em um ser pior que o diabo não pode ser tolerada. Embora tanto o determinismo como o indeterminismo honrem teoricamente o sentido lógico de soberania, apenas o indeterminismo faz jus também aos outros atributos de Deus, dentre eles o amor. Uma doutrina da soberania que afoga os outros atributos é simplesmente absurda e não pode ser considerada.

Algum calvinista poderia contestar, dizendo que no indeterminismo Deus realmente não é soberano, e que Deus só é soberano se Ele determina todas as coisas. Em resposta a isso, deve ser observado que “Deus exerce controle absoluto e total sobre toda parte da criação sem determinar tudo”[3]. Ninguém precisa determinar cada ação para ser considerado soberano. Os monarcas soberanos não determinam cada ação humana, mas estabelecem leis gerais e mantém sob seu controle e domínio as atitudes de seus súditos. Eles não são menos soberanos por não determinarem cada ação humana!

Deus é soberano porque “nada, em toda a criação, está oculto aos olhos de Deus; tudo está descoberto e exposto diante dos olhos daquele a quem havemos de prestar contas” (Hb.4:13). Deus é onisciente e presciente, de forma que nunca é pego de “surpresa” em algo. Deus também é soberano porque é a autoridade máxima sobre todos. Ninguém está em um patamar igual ou maior que Deus. Ele exerce um senhorio absoluto, é o “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap.19:16; 1Tm.6:15). Por isso, a Sua glória não pode ser dividida com nenhum outro (Is.42:8).

Deus também é soberano porque nada acontece sem a permissão dele. Embora ele não determine tudo, nada acontece sem a sua permissão. Se as coisas acontecessem sem a permissão de Deus, então o diabo já teria tomado o controle há muito tempo e destruído este planeta. Neste caso, Deus teria perdido o controle da sua criação. Mas isso não aconteceu justamente porque ele é soberano, e nada acontece sem que ele saiba ou permita. Como já foi dito, as pessoas podem rejeitar o plano individual de Deus na vida delas, mas ninguém pode tirar de Deus o controle sobre a sua criação ou o governo do mundo.

Se soberania fosse o mesmo que determinismo, então teríamos que supor que isso seria realidade na vida humana também. Mas, como diz Olson:

“Quem foi que disse que soberania necessariamente inclui controle absoluto ou governo meticuloso em exclusão da contingência real e livre-arbítrio? A soberania implica estes significados na vida humana? Os regentes soberanos ditam todos os detalhes das vidas de seus subordinados ou eles supervisionam e governam de uma maneira mais geral?”[4]

Se soberania não inclui nenhum significado determinista em nosso cotidiano, então é óbvio que soberania não implica em determinismo nem é sinônimo dele. Roger Olson também nos conta uma história divertida de um diálogo entre ele e um pastor calvinista revoltado por achar que ele descria na soberania de Deus por não ser calvinista. Ele diz:

“Certo dia estava trabalhando em meu escritório quando o telefone tocou. Era um pastor que havia lido no jornal estudantil acerca de minha rejeição ao calvinismo. Ele exigiu saber: ‘Como você pode não acreditar na soberania de Deus?’ Eu lhe perguntei o que ele queria dizer com soberania de Deus e ele respondeu: ‘Quero dizer, ao fato de Deus controlar tudo o que acontece’. Eu lhe respondi com uma pergunta: ‘Essa soberania inclui o pecado e o mal?’ Ele pausou: ‘Não’. Então, perguntei: ‘Você realmente acredita na soberania de Deus?’ Ele pediu desculpas e desligou o telefone”[5]

De fato, Deus poderia escolher ser soberano determinando tudo, tanto quanto poderia decidir ser soberano sem determinar tudo, mas tendo tudo sob o seu controle. Dizer que somente se Deus determina tudo é que ele pode ser considerado soberano é limitar Deus a tal ponto que ele não poderia ser capaz de criar seres livres e permanecer sendo soberano. Assim sendo, a acusação de nossos oponentes volta-se contra eles mesmos com muito mais força. Se Deus não pode criar seres livres e continuar sendo soberano, então ele não é soberano, mesmo determinando tudo. Mas ele tanto pode como fez, porque soberania não implica em determinar cada ação do homem.

Devemos ressaltar também a diferença entre um soberano e um romancista. Bruce Reichenbach é perfeito sobre isso:

“É preciso máxima clareza para distinguir um soberano de um romancista. Este cria seus próprios personagens, o enredo, a ambientação e o desenrolar da história. Todos os participantes da novela fazem exatamente aquilo que o autor determinou. Todos eles possuem traços predeterminados, não tendo existência à parte: são o produto do autor. O enredo encaminha-se inexoravelmente para o fim determinado pelo autor. Ocorre apenas aquilo que ele quis que acontecesse, com precisão; não pode haver variação. Deus, em Sua função de soberano, freqüentemente tem sido confundido com um autor de novelas. Tem-se afirmado que Deus tem a habilidade privativa de determinar as pessoas que serão criadas, de que modo o serão, o que farão, o que falarão, qual será o

enredo em detalhes, de que maneira os fatos acontecerão, e não de modo geral, mas em particular, para cada indivíduo”[6]

E ele completa:

“Conseqüentemente, a criação transforma-se numa novela muito bem coordenada, mas bastante enganadora, visto dar a ilusão de livre-arbítrio, ao invés de ser a história da soberania divina sobre criaturas responsáveis, capazes de comunicar-se”[7]

Por fim, se pelo termo “soberania” está incluída necessariamente a determinação de cada ação humana sem exceção, então os calvinistas (até mesmo os moderados) teriam que dizer que Deus não é soberano a não ser que ele determine todo o pecado e todo o mal que há no mundo – coisa que nem todos os calvinistas estão dispostos a aceitar.

Pois se não há soberania a não ser onde exista determinismo, então dizer que Deus não determina o pecado é o mesmo que dizer que Deus não é soberano sobre tudo. Ou, em outras palavras, é dizer que ou Deus é soberano, ou ele é pecador. Algo absurdo, obviamente, já que soberania não é sinônimo de determinismo. Clark Pinnock também discorre sobre isso, dizendo:

“Eles até mesmo evitam dizer que Deus apenas ‘permite’ algumas atrocidades como o Holocausto (morticínio de 6 milhões de judeus, durante a segunda guerra mundial, também conhecido como genocídio nazista), como fazem alguns calvinistas menos duros, mas inconsistentemente, visto que tal opinião sugeriria que o fato originou-se fora da soberana vontade de Deus. Longe dos calvinistas negar a Deus a glória de causar todas as coisas!”[8]

Em resumo, tanto calvinistas como arminianos creem firmemente na soberania de Deus, mas de forma diferente. O calvinista limita a Deus a um ponto onde ele não pode criar seres livres e continuar sendo soberano, pois crê que só há soberania se há determinismo. Por esta linha, Deus só é soberano se determina o pecado.

O arminiano, ao contrário, crê na soberania de Deus, por Ele ter todas as coisas sob seu controle, e por nada acontecer a não ser sob a sua permissão. Assim sendo, Deus pode determinar algo soberanamente da mesma forma que pode permitir atos livres e permanecer sendo soberano, e Deus pode ser soberano mesmo sem ser pecador. Uma visão que, ao meu ver, parece ser muito mais lógica e bíblica.

[1] Há duas palavras gregas comumente traduzidas por “soberano” no Novo Testamento. Uma é dunastes, que, de acordo com a Concordância de Strong, significa: “príncipe, potentado; cortesão, alto oficial, ministro real de grande autoridade” (1414), e a outra é despotes, que significa: “mestre, Senhor” (1203). É digno de nota que não há nenhum léxico que inclua determinar cada ação como um sinônimo ou mesmo um atributo necessário para essa soberania. São coisas diferentes. Ser soberano é ser senhor sobre tudo, é ter controle e domínio sobre todas as coisas; determinismo, por outro lado, é determinar cada ato do indivíduo, o que vai muito além do conceito básico de soberania.

[2] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 67.

[3] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 172.

[4] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 150.

[5] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 113.

[6] REICHENBACH, Bruce R. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 135.

[7] REICHENBACH, Bruce R. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 136.

[8] PINNOCK, Clark H. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 78.

Extraído do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?”, Biazoli, cedido pela comunidade de arminianos do Facebook

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