É muito comum entre alguns kardecistas a idéia de que o espiritismo deve ser encarado somente como uma filosofia de vida e não como uma religião.
Na verdade, não estão corretas as declarações dos que assim pensam, especialmente quando alegam que o próprio Allan Kardec teria afirmado, sucessivamente, que o espiritismo sempre foi uma filosofia. O contrário é que é verdadeiro. Ou seja, Allan Kardec sempre afirmou que o espiritismo era uma religião, e fez isso de modo enfático, segundo consta em seus livros.
Naturalmente, se existe dúvida quanto à finalidade do espiritismo, não é porque Allan Kardec não foi claro ao expor seu posicionamento. O que ocorre é que é conveniente aos espíritas manter as duas posições, segundo seus interesses em ganhar novos adeptos nos diversos meios em que se estabelece.
Em certos lugares, de classe média ou alta da sociedade, o espiritismo procura se expressar com a idéia e conceitos de uma filosofia, isto é, filosoficamente. E, como filosofia, pode envolver, sem grandes obstáculos, o eventual adepto que já possui uma religião.
Na maioria das vezes, especialmente no Brasil, os católicos, quando interrogados, confessam ser tradicionais, porém, não muito familiarizados com os dogmas romanos, não tendo, portanto, muita compreensão das incompatibilidades doutrinárias entre sua religião e o espiritismo. Assim, com facilidade, o espiritismo se introduz na vida de muitos “católicos romanos” como se fosse apenas uma filosofia de vida.
Quando o espiritismo kardecista adquire a confiança do novo adepto já conquistado, então seus arautos apregoam abertamente que se trata de uma religião, e se ufanam de seguir a terceira revelação de Deus aos homens. Não é sem razão que Jaci Régis, um dos representantes do grupo, afirma que o Brasil, atualmente, é o país que concentra o maior número de espíritas no mundo.
Pelo censo do IBGE de 2000, os espíritas brasileiros somam três milhões. E, segundo Jaci Régis, noventa por cento deles adotam a doutrina como religião, não como filosofia.
Contradições de Allan Kardec
Como ocorre com outras organizações religiosas que não querem assumir seu caráter religioso, o espiritismo, a princípio, nega sua condição.
Falando por um lado da boca, Allan Kardec afirma: “O espiritismo é, antes de tudo, uma ciência, e não cuida de questões dogmáticas. Melhor observado, depois que se generalizou, o espiritismo vem derramar luz sobre um grande número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro caráter é, portanto, o de uma ciência e não de uma religião”. 1
Contudo, falando pelo outro lado da boca, declara: “O espiritismo foi chamado a desempenhar um papel imenso na terra. Reformará a legislação tantas vezes contrária às leis divinas; retificará os erros da História; restaurará a religião do Cristo, que nas mãos dos clérigos se transformou em comércio e tráfico vil; instituirá a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai direto a Deus, sem se deter às abas de uma sotaina ou nos degraus de um altar” . 2
Enfatizando a condição de religião do espiritismo, Kardec expressa: “Aproxima-se a hora em que terás de declarar abertamente o que é o espiritismo e mostrar a todos onde está a verdadeira doutrina ensinada pelo Cristo. A hora em que, à face do céu e da terra, deverás proclamar o espiritismo como única tradição realmente cristã, a única instituição verdadeiramente divina e humana” . 3
Portanto, Allan Kardec, inegavelmente, reivindicou ser o espiritismo uma religião. Afirmou ser a verdadeira religião, superior a todas as outras, ainda que alguns de seus adeptos insistam em alegar que o espiritismo seja somente uma filosofia ou ciência.
A terceira revelação de Deus
Na condição de religião, o espiritismo apela para uma suposta autenticidade de suas revelações, considerando-se a terceira e definitiva revelação de Deus aos homens. Allan Kardec diz que a primeira revelação de Deus aos homens se deu no Antigo Testamento; a segunda, no Novo Testamento; e a terceira, por meio do Espiritismo.
“A Lei do Antigo Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento a teve no Cristo. O espiritismo é a Terceira Revelação da Lei de Deus, mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado, não por um homem, mas pelos espíritos, que são as vozes do céu, em todos os pontos da terra, com o concurso de uma legião inumerável de intermediários” . 4
Outra assertiva semelhante diz: “A primeira revelação era personificada em Moisés; a segunda, no Cristo; a terceira não o é em indivíduo algum. As duas primeiras são individuais; a terceira, coletiva; aí está uma característica essencial e de grande importância”. 5
Como um sistema de doutrinas reveladas por entidades espirituais e com a proposta de atualizar revelações de outras duas religiões precedentes (judaísmo, Antigo Testamento; cristianismo, Novo Testamento) pode não ser uma religião?
Cristianismo e espiritismo
O cristianismo tem seus fundamentos históricos e doutrinários baseados na Bíblia. Qualquer movimento religioso que se diz cristão deve ter seus ensinos confrontados com a Palavra de Deus para se verificar sua veracidade e, dessa forma, serem considerados verdadeiramente cristãos.
Mas a doutrina espírita, segundo seus próprios advogados, “nos ensina a praticar o cristianismo em sua forma mais pura e simples. Assim, o espírita kardecista procura ser um bom cristão. Ele sente que precisa combater seus próprios defeitos e praticar os ensinamentos de Jesus”. 6
Diante disso, para atingir seu objetivo, o espiritismo elogia Jesus Cristo com muitas palavras: “Qual o tipo mais perfeito que Deus ofereceu ao homem para lhe servir de guia e modelo? […] Jesus é para o homem o tipo de perfeição moral a que pode aspirar a humanidade na terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que Ele ensinou é a mais pura expressão de sua lei, porque Ele estava animado pelo Espírito divino e foi o ser mais puro que já apareceu na terra”. 7
Qual é o cristão que não concordaria com essas declarações sobre Jesus e seus ensinos? Isso lemos na Bíblia, com frequência (Hb 4.15; 7.26). Mas, segundo os próprios espíritas, eles são os únicos que apregoam os verdadeiros ensinos dados por Jesus.
Allan Kardec perguntou aos espíritos o seguinte: “Se Jesus ensinou as verdadeiras leis de Deus, que utilidade têm os ensinamentos dos espíritos? Poderão eles ensinar alguma coisa além do que ensinou Jesus?”.
E a resposta foi: “Os ensinamentos de Jesus eram frequentemente alegóricos e na forma de parábolas, dado que Ele falava de acordo com a época e os lugares. Hoje, é preciso que a verdade seja inteligível a todos, razão pela qual é preciso explicar e desenvolver esses ensinamentos, porque tão poucos são os que os compreendem e ainda menos os que o praticam. Consiste nossa missão em abrir os olhos e os ouvidos a todos, para confundir os orgulhosos e desmascarar os hipócritas, esses que exteriormente se revestem das aparências da virtude e da religião para melhor ocultarem suas torpezas”. 8
Com essa explicação dada pelos espíritos, Allan Kardec acha que tem o direito de remover da Bíblia tudo quanto ela afirma contra as práticas e os ensinos do espiritismo. A partir desse posicionamento, tudo o que for contra o espiritismo, pode-se alegar, com muita propriedade, que faz parte dos ensinos parabólicos ou alegóricos de Jesus e que não devem ser considerados para os nossos dias.
Embora haja um abismo entre o ensino espírita e o cristianismo, Allan Kardec procura misturar os fundamentos e chega a afirmar que “o cristianismo e o espiritismo ensinam a mesma coisa”. 9
Mas se realmente o espiritismo ensinasse as mesmas doutrinas do cristianismo, seria de se esperar que os seus ensinamentos concordassem com as palavras de Jesus e dos apóstolos. E a melhor maneira de conferir essa afirmação é confrontando o que diz o espiritismo com o que ensina a Bíblia, que é o livro-base do cristianismo.
Uma religião que subtrai a autoridade bíblica
Allan Kardec declara que, na Bíblia, encontramos apenas comentários ou apreciações, reflexos de opiniões pessoais, muitas vezes contraditórias, que não poderiam, em caso algum, ter a autoridade de um relato dos que haviam recebido as instruções diretamente do Mestre.
“A Bíblia contém evidentemente fatos que a razão, desenvolvida pela ciência, não pode hoje aceitar, e outros que parecem singulares e que repugnam, por se ligarem a costumes que não são mais os nossos. A ciência, levando as suas investigações desde as entranhas da terra até as profundezas do céu, demonstrou, inquestionavelmente, os erros da gênese mosaica, tomada ao pé da letra, e a impossibilidade material de que as coisas se passassem conforme o modo pelo qual estão aí textualmente narradas, dando por essa forma profundo golpe nas crenças seculares”. 10
O eminente espírita Carlos Embassahy assim se pronuncia sobre a Bíblia: “Nem a Bíblia prova coisa nenhuma, nem temos a Bíblia como probante. [O espiritismo] não rodopia junto à Bíblia. Mas a nossa base é o ensino dos espíritos, daí o nome”. 11
Diante disso, fica evidente que o espiritismo, ao mesmo tempo em que alega ser cristão, nega a Palavra de Deus, a base do cristianismo. Além disso, prova que os expositores e defensores do espiritismo ora apelam para a Bíblia, em busca de apoio, ora negam firmemente que ela tenha valor para sua fé.
Como lemos, o espiritismo, por meio de duas de suas maiores autoridades, nega a revelação divina das Escrituras, considerando-a uma mera compilação de fatos históricos e lendários. Os espíritas kardecistas, quando querem dizer que são cristãos, usam as Escrituras, citando-as seletivamente, como lhes convêm, para apoiar suas teorias.
A Bíblia passa a ser então apenas obra de consulta, não faz diferença se é ou não a Palavra de Deus, desde que possam usá-la como desejam. Mas e quanto a nós, cristãos? Temos a Bíblia como regra de fé e conduta para a vida e o caráter do cristão. É isso o que as próprias Escrituras afirmam: “Por isso também damos, sem cessar, graças a Deus, pois, havendo recebido de nós a palavra da pregação de Deus, a recebestes, não como palavra de homens, mas (segundo é, na verdade), como palavra de Deus, a qual também opera em vós, os que crestes” (I Ts 2.13).
Considerações finais
Reiterando nossas conclusões, desqualificamos a apresentação estratégica do espiritismo como simples filosofia. Somente quem não conhece a produção literária espírita poderia insistir em negar a condição religiosa do espiritismo. É impossível ser, a um só tempo, cristão e espírita, pois entre ambos os caminhos há uma grande incompatibilidade doutrinária. Devemos ter cuidado para não tomarmos a religião espírita por mera filosofia de vida, porque esse ponto de vista abriria margem para um flerte interditado e condenado pelas Escrituras Sagradas.
NOTAS1 KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 294, 1985.
2 KARDEC, Allan. Obras póstumas. In: Obras Completas. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 1206, 1985.
3 Ibid., p. 1210.
4 KARDEC, Allan. Evangelho segundo o espiritismo. In: Obras Completas. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 534, 1985.
5 KARDEC, Allan. A gênese. In: Obras Completas. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 888, 1985.
6 BARROS, Homero Moraes. O espiritismo em linguagem fácil. São Paulo: Casa Editora O Clarim, p.61.
7 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. In: Obras Completas. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 171, 1985.
8 Ibid., p.172.
9 KARDEC, Allan. Evangelho segundo o espiritismo. In: Obras Completas. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 1178, 1985.
10 KARDEC, Allan. A gênese. In: Obras Completas. 2ª edição especial. São Paulo: Opus Editora, p. 911, 1985.
11 EMBASSAHY, Carlos. À margem do espiritismo. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, p. 214, 227. SF
Matéria publicada pela revista SABER E FÉ – sf n. 2