Romanos 9.13-15: Deus é Injusto?

judeus

Deus é justo? Ele nos trata injustamente? Estas perguntas humanas naturais são apenas reforçadas quando lemos passagens como “Amei a Jacó, e odiei a Esaú” (Rm 9.13). Todavia, o próprio Paulo encarou precisamente esta pergunta quando refletia sobre a rejeição de Cristo pelo Judaísmo à luz das passagens do Antigo Testamento. O que estas passagens, abordadas por Paulo, parecem revelar é uma arbitrariedade soberana de Deus no trato com os seres humanos. Afirmações como “Amei a Jacó, e odiei a Esaú” provocam em nós a pergunta: Mas por quê? O que eles fizeram para merecer o amor ou o ódio de Deus? Nosso senso de injustiça aqui aumenta quando lemos em 9.11 que as decisões sobre Jacó e Esaú foram feitas “não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal”.

A “dureza” deste texto surge, pelo menos em parte, tanto de suposições que tendemos a levar para ele quanto de nossa negligência do fluxo e conteúdo do contexto.

Paulo antecipa a resposta do leitor à aparente injustiça de Deus. Com palavras que lembram aquelas atribuídas a Jó (Jó 9.12; 40.2), ele começa questionando a propriedade de até mesmo levantar tais questões (Rm 9.20). Então ele enfatiza o caso citando Isaías 29.16 e 45.9: “Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: ‘Por que me fizeste assim?’” (Rm 9.20-21).

O ponto de Paulo é, obviamente, que a pergunta “Deus é injusto?” surge de nossa tendência humana de medir e criticar os caminhos de Deus em nossos termos. Até mesmo levantar a questão de injustiça assume que sabemos com o que a justiça em seu sentido final e absoluto se parece. Isto é audácia da criatura. Visto que não conhecemos a mente de Deus nem podemos penetrar seus caminhos (Rm 11.33-34), não estamos numa muito boa posição para julgarmos os propósitos de Deus. Nós vemos e experimentamos somente pedaços; vemos apenas pobres reflexões em um espelho e conhecemos apenas em parte (1Co 13.12); percebemos a revelação de Deus no contexto de nossos vasos de barro (2Co 4.7). Somente Deus vê o todo, e dessa perspectiva o que pode parecer-nos “injusto” será finalmente revelado como a graça salvadora de Deus.

Levamos outra suposição a este texto que inclina os nossos ouvidos numa direção particular. Por causa de certas tradições teológicas herdadas, tendemos a ouvir este texto em termos de predestinação e destino eterno. Esta tradição teológica sustenta que nosso destino eterno foi predeterminado. A questão inevitável para tal posição é aquela que o leitor hipotético de Paulo pergunta: “Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem tem resistido à sua vontade?” (Rm 9.19).

Esta pergunta tem validade somente se Paulo aqui estiver de fato preocupado com a questão do destino eterno dos indivíduos. Numa leitura cuidadosa da passagem, entretanto, torna-se claro que ele não está falando de salvação e destino eterno, mas sobre o chamado de Deus de indivíduos e povos para serviço, e o uso de Deus de eventos e pessoas no cumprimento de seus propósitos redentores, a saber, a salvação de judeus e gentios.

Vamos tentar ouvir o argumento de Paulo claramente. Ele começa sua consideração do destino de seu próprio povo recordando tudo que Deus tinha feito e dado a eles (Rm 9.1-5). O propósito do chamado de Israel é ser um veículo para a realização da “promessa” (Rm 9.4, 8-9) – a promessa feita a Abraão de que através de seus descendentes “serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.1-3). Paulo viu esta promessa se cumprindo em Cristo (veja Gl 3.15-18), por cuja morte tanto o judeu quanto o gentio seria trazido para a família de Deus (Gl 3.28-29).

Todavia, a realidade que Paulo, e com ele todos os cristãos judeus, enfrentava era a rejeição de Jesus pelo povo de Israel como um todo. A palavra de Deus falhou? (Rm 9.6). Ao responder esta pergunta, Paulo mostra, recitando eventos do Antigo Testamento, que Deus escolhe caminhos e meios para cumprir seus propósitos redentores, e que até mesmo a presente rejeição do Messias por Israel é usada por Deus para esse fim. Nem todos os filhos de Abraão são parte da linha que leva a Cristo. Isaque, o filho prometido a Sara, torna-se o veículo (Rm 9.6-9). Jacó, e não Esaú, é usado por Deus para seguir rumo ao cumprimento da promessa (Rm 9.10-13). As escolhas de Deus nada têm a ver com o mérito humano, status ou realização (Rm 9.11-12). Isaque não era melhor que seu irmão Ismael; Jacó não era melhor que seu irmão Esaú. Em outras palavras, eles não eram “mais dignos”. De fato, em termos puramente humanos, o engano de Jacó teria feito dele menos digno (Gn 25, 27).

Neste ponto, Paulo cita a palavra profética a respeito dos gêmeos ainda não nascidos de Rebeca: “O maior servirá ao menor” (Gn 25.23). Esta não é uma afirmação tanto de predestinação como de preconhecimento profético. O registro histórico revela que Edom frequentemente foi dominado por Israel e forçado a pagar tributo (2Sm 8.13; 1Re 11.14-22). Para Paulo, a confirmação desta profecia a respeito do futuro de Jacó e Esaú (e seus descendentes) é encontrada em Malaquias 1.2-3, que ele cita em Romanos 9.13.

No uso desta palavra de Malaquias sobre o amor de Deus por Jacó e ódio por Esaú, duas coisas devem ser observadas. Primeiro, é preocupação do profeta demonstrar o amor de Deus por Israel (os descendentes de Jacó) a fim de continuar e mostrar que sua injustiça merece o julgamento de Deus. Os edomitas (Ml 1.4) são os descendentes de Esaú, que se encontram em relação de inimizade com Israel. Conforme Malaquias 1.3-4, eles aparentemente sofreram uma derrota militar, e o profeta vê isto como evidência do julgamento de Deus (1.4-5). Visto que Deus está usando Israel para cumprir seu propósito – a despeito de suas frequentes rebeliões – a inimizade de Edom o coloca justamente contra os propósitos de Deus.

A expressão “Amei a Jacó, e odiei a Esaú” deve ser entendida neste contexto histórico. Em contraste com o óbvio amor de Deus por Israel, a situação de Edom poderia somente ser interpretada como evidência de menor consideração de Deus por ele. A forte expressão “odiei a Esaú” deve ser vista como um típico exempo de hipérbole oriental, que expressa as coisas em termos de extremos. Além disso, na língua hebraica “amar” geralmente significa “favorecer”, e “odiar” pode significar “favorecer ou amar menos”. Observe, por exemplo, que em Gênesis 29.21, 33, a RSV traduz a palavra hebraica odiar literalmente, enquanto a NIV traduz a palavra como “não amada”. Essa versão reconhece, à luz de Gênesis 29.30, que Jacó amava Lia menos do que Raquel; ele não a “odiava”. (Veja também Dt 21.15-17, onde a palavra hebraica para odiada é traduzida “não amada” na NIV e “desprezada” na RSV.)

Nem em Malaquias nem no uso de Paulo da palavra há algum fundamento para a ideia que Deus determinou de antemão os destinos eternos do povo de Israel ou do povo de Edom. As situações históricas das duas nações, sua “eleição” ou “rejeição”, são apenas evidências temporárias da liberdade soberana de Deus com a qual ele conduz a história em direção aos seus propósitos redentores. “Deus amou o mundo de tal maneira” (Jo 3.16), incluindo Jacó e Esaú, Israel e Edom, judeu e gentio.

Este propósito redentor é fortemente salientado pela citação de Paulo de Êxodo 33.19 em Romanos 9.15. A misericórdia e compaixão de Deus são absolutamente livres e estão ao seu soberano dispor. Ninguém pode obtê-las em troca de alguma coisa; ninguém as merece. Até o endurecimento do coração do Faraó, ao qual Paulo faz referência em Romanos 9.17-18, deve ser classificado sob a atividade da misericórdia e compaixão de Deus para sua criação arruinada. Pois seu propósito é que o nome de Deus “seja anunciado em toda a terra” (Rm 9.17). Desta forma, o que de uma perspectiva limitada de nossa observação humana parece “injusta” é de fato somente um mal entendido das misteriosas operações da misericórdia de Deus.

Fonte: Walter C. Kaiser Jr., Peter H. Davids, F. F. Bruce e Manfred T. Brauch, Hard Sayings of the Bible

Tradução: Paulo Cesar Antunes

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