Retirada dos EUA ameaça conquistas de mulheres afegãs

Numa manhã no final dos anos 1990, Kobra Dastgirzada fazia compras no centro de Cabul quando foi abordada por um policial Taleban. O barbudo de turbante exigiu que mostrasse a mão. Kobra estendeu o braço para fora da burca, desvendando unhas pintadas -um atestado de prostituição aos olhos do então regime afegão. “Vou chicotear seus dedos”, sentenciou o agente.

Pela prática vigente, o castigo só acabaria quando as mãos estivessem em carne viva. Mas, ao ver Kobra implorar clemência em pashtun, idioma oficial do Taleban num país rachado por etnias rivais, o policial pensou estar, talvez, diante de uma parente distante. Sem enxergar seu rosto coberto, decidiu deixá-la ir embora.

Uma década após a queda do Taleban, elas chegaram ao parlamento, estudam, trabalham e dirigem

A maioria das afegãs não teve a mesma sorte. Nas trevas da era Taleban, o governo mantinha as mulheres num abismo de violência física e moral. Maiores vítimas de um Estado miserável e desconectado do mundo, elas eram trancafiadas, espancadas, apedrejadas, estupradas, vendidas e banidas de qualquer tipo de ensino e da maioria dos hospitais.

O calvário durou até 2001, quando tropas americanas e aliadas invadiram o país para erradicar bases da Al Qaeda de Bin Laden e acabar com o regime Taleban que lhe dava abrigo. Da ocupação nasceu um governo pró-ocidental comprometido, ao menos em tese, com a igualdade de gêneros.

Kobra, que trocou a burca pelo “hijab”, simples lenço sobre o cabelo, tornou-se símbolo dos novos tempos. Hoje, com 43 anos, ela dirige, viaja sozinha e, completando a lista de atividades vetadas para mulheres no antigo regime, toca a própria empresa, voltada justamente para o público feminino.

Kobra emprega 20 pessoas num complexo que oferece aulas de idiomas, religião, informática, costura, ginástica e direção. “As afegãs estão mais independentes e livres, e meus negócios vão muito bem”, sorri a empresária, que neste ano foi aos EUA –sem o marido– fazer um curso de gestão bancado pelo governo americano.

MODERNA

Uma década após o Taleban, o protagonismo feminino espalha-se pela vida pública. A Constituição reserva 68 das 249 das cadeiras do Parlamento para deputadas. O Afeganistão tem hoje uma representação parlamentar feminina maior do que Brasil, EUA e Israel.

Mulheres também ocupam cargos no Executivo e no Judiciário. Em 2009, a magistrada Maria Bashir tornou-se a primeira procuradora-geral na história do Afeganistão. Dois anos depois, ela apareceu na lista das cem pessoas mais influentes do mundo segundo a revista “Time”, num ranking que inclui Dilma Rousseff.

Kobra Dastgirzda abriu uma escola para dar aulas de direção, idiomas, religião, informática, costura e ginástica

Nas Forças Armadas, a primeira geração de mulheres oficiais já participa de combates contra rebeldes Taleban. A mão de obra feminina ajuda a mover agricultura e alfaiataria.

Mulheres ao volante são raras, mas o vendedor de carros Hasan Saeed garante já ter uma clientela feminina, reflexo da classe média surgida dos bilhões de dólares em ajuda estrangeira injetada no país.

“Elas vêm acompanhadas do marido ou do irmão, mas, observando como escolhem o modelo e a cor, fica evidente que a compra se destina a elas.”

Emissoras de TV dão espaço a apresentadoras que tratam de temas outrora tabus, como divórcio e violência doméstica.

No mundo idealizado da propaganda, a mulher afegã é moderna e extrovertida. Em campanhas publicitárias que trazem cor à paisagem empoeirada de Cabul, moças com longos cabelos descobertos sorriem ao apresentar roupas e celulares.

Mas quase não se vê o cabelo das afegãs em locais públicos, apesar de o véu não ser obrigatório. O que se nota, ao menos na capital, é um recuo da burca em favor do ‘hijab’, que deixa o rosto à mostra e, por isso, tende a ser usado por crianças, jovens vestidas à moda ocidental e mulheres que trabalham.

O PIOR LUGAR DO MUNDO

Funcionária de uma empresa de telecomunicação, Fawzia Kamal, 39, ecoa o sentimento de muitas afegãs: “Sou muçulmana e o islã diz que devemos cobrir o cabelo, por isso, uso o ‘hijab’. Usaria mesmo se estivesse na Europa”.

“Há outros motivos de preocupação. O maior é a fragilidade dos avanços”, diz Afifa Azim, 51, diretora da ONG feminista Afghan Women Network, criada em 1995.

O temor de Afifa é que o presidente Hamid Karzai recue nos direitos da mulher como concessão ao Taleban nas negociações para reintegrar grupos rebeldes à política e pacificar o país antes da retirada americana, em 2014.

Karzai endossou, em março, um “código de conduta” que permite aos maridos bater nas mulheres e incentiva a segregação de gênero.
Mesmo sem valor legal, o texto é um claro aceno aos conservadores.

“Se as mulheres sacrificarem seus direitos pela paz, não haverá paz”, prevê Afifa.

Por mais palpáveis que sejam, as conquistas femininas encolhem quando expostas à realidade de um país em guerra que cultiva valores rurais mais rígidos do que a religião.

“Os avanços são exagerados. Fora de Cabul, tudo continua como antes”, afirma a deputada Arian Youn, 43.

Em 2009, aos 18 anos, Bibi teve o nariz arrancado pelo marido e pelo sogro por ter abandonado o lar, onde era espancada e violentada. Sua foto, com um buraco no meio do rosto, rodou o mundo.

Em dezembro passado, a polícia descobriu Sahar, então com 13 anos, trancada havia seis meses no porão da casa dos sogros por ter se recusado a se prostituir para sustentar a família, que a havia comprado dos pais com essa intenção.

A pressão social trava o acesso à educação. Somente 14% das afegãs são alfabetizadas. A expectativa de vida feminina não chega a 42 anos. O Afeganistão segue como o pior lugar do mundo para quem nasce mulher, segundo dados da Fundação Thomson Reuters.

O maior de todos os obstáculos talvez seja a mentalidade masculina. Quase todos os homens ouvidos pela reportagem demonstraram algum ceticismo acerca dos direitos da mulher.

Até o guia do repórter, um homem de 27 anos, esclarecido e acostumado com ocidentais, irritou-se ao ver uma linda afegã sem véu, funcionária de um hotel para estrangeiros, tocar no braço de um colega ao conversar com ele.

“Essa moça age feito ocidental, contraria nossos costumes. São coisas assim que chegam aos ouvidos do Taleban e alimentam o ódio aos estrangeiros.”

Fonte: Folha.com.br

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