Reportagem sobre estupro de freiras dentro da Igreja

Socióloga lança pesquisa que mostra como a Igreja Católica encobre os crimes sexuais cometidos por padres contra mulheres

A socióloga da religião Regina Soares Jurkewicz* é católica. Mas do tipo que provoca calafrios na ala conservadora. Ela passou os últimos dois anos e meio dedicando-se a investigar as estratégias usadas pela cúpula da Igreja para silenciar vítimas, proteger agressores e encobrir crimes sexuais cometidos por sacerdotes. A pesquisa, financiada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), é parte de sua tese de doutorado em Ciências da Religião desenvolvida na PUC de São Paulo. Ao se debruçar sobre 21 casos denunciados pela imprensa e esmiuçar dois deles em profundidade, Regina concluiu que a Igreja Católica no Brasil se coloca acima das leis do Estado ao tentar – e em geral conseguir – manter os casos de violência sexual dentro de suas sólidas paredes.

A pesquisa será lançada em evento na noite do dia 28, em São Paulo, no Espaço de Cidadania André Franco Montoro, no Pátio do Colégio, pela organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir, com o título Desvelando a Política do Silêncio: o Abuso Sexual de Mulheres por Padres no Brasil. No debate, estarão três feministas e pelo menos um padre, Ronaldo Zacharias, diretor do Campus Pio XI do Centro Universitário Salesiano de São Paulo. A socióloga recebeu ÉPOCA com exclusividade para a seguinte entrevista.

ÉPOCA – A senhora escolheu investigar a violência sexual de padres contra mulheres em vez concentrar a pesquisa na pedofilia, que é o tema mais em evidência. Acha mais difícil identificar e punir a violência contra mulheres?

Regina Soares Jurkewicz – É muito mais fácil, no senso comum, aceitar a criança como vítima. Mas quando se fala que uma mulher sofreu um abuso ou foi estuprada, a primeira idéia é de que ela seduziu o agressor. Quando as mulheres denunciam, acredita-se menos nelas, pior ainda se forem adultas. E muito pior se o agressor for um padre, um homem envolto em aura de santidade. De vítima ela vira culpada.

ÉPOCA – No início do mês, a diocese de Covington, nos Estados Unidos, criou um fundo de US$ 120 milhões para compensar cem vítimas. Isso já aconteceu antes com outras dioceses americanas. Há mais padres abusadores lá do que aqui ou trata-se de uma diferença de política da Igreja?

Regina – Tenho certeza de que aqui há tantos abusadores quanto lá. Mas lá a consciência de cidadania é muito mais avançada, as vítimas criam redes de sobreviventes. Desde que o escândalo da batina estourou nos EUA, em 2002, aumentaram as denúncias em outros países, inclusive no Brasil. Mas lá as assimetrias são muito menores, existe muito menos diferença social, econômica e cultural entre os padres e as vítimas. Aqui as mulheres violentadas são empregadas domésticas, secretárias da paróquia ou apenas meninas pobres da comunidade. Expressam-se com dificuldade, não têm nenhuma consciência de direitos, estão desprotegidas. Tanto que nunca houve aqui um caso de pedido de indenização de uma mulher violentada ou que tenha sofrido abuso por um padre. Em nenhum dos processos que pesquisamos houve condenação, embora alguns ainda estejam em andamento. No Brasil, a maioria dos casos permanece encoberta, protegida pelo silêncio imposto pela cúpula católica. Nos dois anos e meio em que pesquisamos, em cada lugar aonde íamos pessoas ligadas às pastorais, freiras etc. sempre nos contavam algum caso que nunca se tornara público. Mas ninguém queria fazer a denúncia.

ÉPOCA – A senhora diz que a Igreja brasileira usa estratégias para encobrir crimes e criminosos, colocando-se acima do Estado. Como é isso?

Regina – O padre que abusa tem uma proteção institucional que os outros homens não têm. Homens não-padres estão mais sujeitos às leis civis. O padre também está, porque antes de ser padre é um cidadão. Mas o que acontece na prática é que a Igreja brasileira fez a escolha do silêncio. E, assim, acoberta fortemente o sacerdote. O bispo ou superior se preocupam em conversar com ele, mas é uma conversa no sentido de compreendê-lo, de saber se está disposto a pedir perdão a Deus e se reconciliar. Dificilmente ele será afastado do sacerdócio. Todos os esforços da cúpula são para que o caso não saia das paredes da instituição. Uma das vítimas com quem conversei contou o crime ao superior do sacerdote que a violentou. O superior lhe disse que era sabido que o padre em questão tinha problemas com as mulheres, mas que na Igreja há uma orientação para que os problemas sejam resolvidos internamente. Em suas palavras, ”irmão tem de acolher irmão”. Então era preciso evitar a denúncia e o escândalo. A pesquisa mostrou que esse é o procedimento-padrão. O escândalo é o grande medo. A Igreja quer ter o privilégio de não se submeter às leis do Estado. E consegue.

ÉPOCA – Nessa lógica, os superiores seriam cúmplices de um crime e poderiam ser processados…

Regina – Num dos casos o bispo chegou a ser processado por uma tentativa de subornar as vítimas. Teria oferecido dinheiro para que retirassem a queixa. Mas foi assessorado por um bom advogado e o caso foi encerrado. Esse bispo foi promovido e hoje tem um cargo importante na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Legalmente, não há problema, já que ele foi absolvido pela Justiça. Encontramos outros casos de promoção. Faz parte da estratégia de proteção seguida pela Igreja quando o caso se torna público. A cúpula homenageia o agressor, ele assume um cargo que o qualifica mais e, portanto, protege-o mais. Em outro caso, o agressor foi promovido a reitor de um seminário. A promoção é um reforço, um prestígio social que torna o abusador ainda mais imune à acusação.

ÉPOCA – A senhora pesquisou 21 casos. O que as vítimas têm em comum?

Regina – Quase todas são mulheres e adolescentes pobres. Sempre próximas aos agressores, ou porque eram membros da comunidade, ou porque trabalhavam na paróquia. Nesse sentido, é uma escolha pela facilidade. As mulheres pobres são mais vulneráveis porque precisam da cesta básica, recebem o apoio da paróquia para arrumar a casa, se a cidade é pequena a igreja é o espaço de encontro. Que sacerdote vai mexer com uma mulher ou uma adolescente que tenham um padrão social melhor e quem as proteja? Num dos casos, por exemplo, as vítimas contaram que o padre se sentia mais protegido porque elas ainda não tinham menstruado e, portanto, não poderiam engravidar. Quem denunciou foi a mãe de uma delas, aí apareceram outras. Ao final, havia 21 vítimas, mas com a pressão poucas sustentaram a acusação.

ÉPOCA – Neste caso específico, o que aconteceu?

Regina – As vítimas foram desqualificadas e destruídas, tiveram de se mudar da cidade porque ficaram marcadas e não conseguiam trabalho. Essa é outra estratégia da Igreja: desqualificar as vítimas e valorizar o agressor, lembrar dos bons serviços que ele sempre prestou àquela comunidade, de como sempre foi caridoso e, portanto, incapaz de ter cometido tal delito. As meninas saíam à rua e eram chamadas de prostitutas. Uma delas foi literalmente apedrejada. O padre foi preso por pouco tempo, mas o advogado alegou que tinha a saúde debilitada e conseguiu liberá-lo. Esse tratamento tão diferenciado, que desacredita a vítima e dificulta a apuração, é uma forma de fazer com que o caso não siga adiante. Embora não seja essa a intenção da Igreja, é uma forma também de colaborar para que outras mulheres sejam violentadas.

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