Religião e Idolatria

A religião que oprime, escraviza, aliena e reforça os ídolos da corrupção política, social, eco­nômica e espiritual, ao invés de servir como instrumento de libertação torna-se um ídolo em si mesma, prejudi­cando a família cristã. Isso pode ser constatado quando surgem as dificuldades, as crises da vida: doença, de­semprego, infidelidade conjugal, desa­mor familiar, desobediência dos filhos aos pais, desrespeito e descuido dos pais pelos seus filhos. Se a família e a sua igreja não se prostrarem diante de Deus (2Cr 7.14), procurando ouvir aten­tamente a sua voz, a fim de que sejam adotadas medidas de comunhão e fraternidade cristã, conforme a forma­ção doutrinária da fé da família/igreja, jamais poderão pensar que estão sen­do fiéis a Deus.

Ora, não podemos “exigir” que lahweh se reduza de modo mágico aos estreitos espaços de orações mecânicas e citações bíblicas memorizadas; isto é atitude idolátrica.

Nosso Deus é vivo, dinâmico, sobe­rano e sua presença se manifesta sempre através da Palavra que ouvimos; enquan­to a atitude idolátrica se manifesta ape­nas através das imagens modeladas ou esculpidas pelas mãos e pelo espírito do próprio homem.

A IDOLATRIA PROMOVE INJUSTIÇA: A IMPORTÂNCIA DE SABER OUVIR

A luta de Israel contra outros povos, constituiu-se, sem dúvida, na luta de lahweh contra outros deuses. Nesse sentido, a idolatria pode ser considerada e combatida como problema de poder político, mesmo que seja tratado apenas no cenário religioso e eclesiástico (conscien­te ou inconscientemente), está aliada ao desejo de exercer o poder e acumular ri­quezas às custas dos pobres, dos fracos, dos oprimidos, dos analfabetos, desenca­deando, como consequência, as injusti­ças políticas: falta ou desvio de recursos para combater, ou melhor, evitar a fome, o desemprego, as enfermidades crônicas e incuráveis, a criminalidade, os presídios abarrotados de homens sem Deus (sepul­tados vivos), lares destruídos pela deses­perança da infidelidade conjugal, e crian­ças sem lar, expostas à prostituição, ao furto e à morte.

A esse respeito – ouvir para não cometer injustiças – o apóstolo Tiago nos exorta: “Sabeis estas coisas, meus ama­dos irmãos: Todo homem, pois, seja pron­to para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar. Por que a ira do homem não produz ajustiça de Deus (Tg 1.19-20.).

Tiago também nos faz o apelo que sejamos “rápidos para ouvir”. Não saber ouvir é uma atitude idolátrica. E importante que a nossa dignidade humana/cristã seja testemunhada pela capacidade de ouvir o nosso próximo. Deus nos fala também atra­vés de pessoas a quem ouvimos. Contudo, é de suma importância que a nossa pronti­dão auditiva (como um dos domínios das inteligências verbal e interpessoal) seja educada. (Cf. Gardner, 1994 Estruturas da Mente: a teoria das múltiplas inteligênci­as. Artes Médicas, pp. 57-71; 184-213.)

O cristão precisa ouvir seu próximo e a Deus, pois uma das verdades que mais distinguem o Deus da revelação bíblica é que ele é um Deus que fala. Ao contrário dos ídolos pagãos – que sendo mortos, são mudos e surdos – o Deus vivo falou a Adão e a Eva, falou a Noé, falou a Abraão, falou a Moisés, falou a Josué… e continua falando.

A insatisfação do coração de Deus, segundo as lamentações do profeta Jeremias e Isaías, “era por que o povo se recusa a ouvir as minhas palavras” (Jr 13.10; Is 30.9). Por amor [hesed] “o Senhor Deus falou [tem falado] ao seu povo, mas ele recusou-se [e ainda recusa-se] a ou­vir” (Cf. op.cit.p. 116).

A aprendizagem de “ouvir a Deus” começa na família, ouvindo uns aos ou­tros; amor familiar depende de diálogo; e comunhão eclesiástica depende de comu­nicação e, de respeito pelo irmão. Além disso, a necessidade de ouvir é imprescindível ao equilíbrio de cada esfera da vida humana cristã, principalmente no lar e na igreja. Temos na literatura sapiencial gran­des ensinamentos sobre o ouvir (Pv 12.15; 13.10; 15.12; 22.20; 18.1; 25.11; 31.8-9,26 cf. Ibid.,p. 19).

Ouvir é o ministério básico do cristão, “a melhor coisa é ouvir antes de falar, procurar penetrar no mundo das ideias e pensamen­tos da outra pessoa (….) é uma atividade de humidade, mas desafiadora, perspicaz, que pode ser chamada de inserção/ contextualização de fidelidade à cultura e à pessoa do próximo” (Cf. Idem,p. 123, passim).

Como “último” apelo ao “ouvir”, ouça os pobres e necessitados, pois “o que tapa o ouvido ao clamor do pobre também clamará e não será ouvido” (Pv 21.13). Todavia, antes de tudo, ouça a Deus (Is 30.9), como testemunho de amor e fideli­dade ao Deus que tem crido.

“Escutem-me, vocês, da casa de Jacó, tudo o que resta da casa de Israel, vocês, a quem eu carreguei desde o seio materno, a quem levei desde o berço. Até na sua velhice continuo o mesmo, até que vocês se cubram de cãs continuo a carregá-los. Eu criei vocês e eu os reconduzirei, eu carregarei e salvarei vocês” (Is 46.3,4).

PRÁTICAS IDOLÁTRICAS ENTRE OS CRISTÃOS CONTEMPORÂNEOS

Ainda queremos explicitar outras for­mas de idolatria na contemporaneidade:

1) Os cultos de “louvor e adoração” a Deus, que apenas consolam e emocionam, po­dem dissimular o sofrimento, mas não libertá-lo. Comete-se o pecado contra o poder do Deus verdadeiramente libertador (Cf. Caravrás, 1992, O Deus da Vida e os ídolos da Morte. Ed. Paulinas, p. 16, passim);

2) O Deus revelado na Bíblia Sa­grada não tolera o medo e, sim, a fidelidade ao Senhor. Ter medo é alienação, por opres­são, marginalização que, no mundo, é fra­queza de fé. O Deus que promete a felicidade, a paz e a liberdade é o único que poderá realizá-las. Duvidar consiste já em negara Deus e interiorizar essa negação, se torna idolatria, inclusive por “inviabilizar” por seu projeto de libertação;

3) Não à idolatria, em função dos deuses falsos, é um ato racional, inteligente e de fé, mas a idolatria possibilitada no próprio culto ao Deus verdadeiro é caracterizada pela deficiência ou falta de reverência à presentificação de Deus (tanto na família como na igreja) (Cf., Ibid. pp.16-17, passim;

4) A idolatria de Israel pela adoração ao “bezerro de ouro” simboliza o pecado do desespero e da desconfiança do homem a não realização imediata das promessas de Deus em sua vida. A consciência desse ato pecamino­so, maligno, é a recusa e negação do projeto salvífico de lahweh. Ser paciente faz parte da espiritualidade cristã (Rm 12.12; ICo 13.4;2Tm2.24;Tg5.7-8).

O bezerro de ouro, como todo o ídolo, é o símbolo do “deus” manipulado pela vontade e desejos dos homens, feita pelos homens que não têm esperança e nem fé no Deus da vida. Hoje, os ídolos mais frequentes e atuantes podem ser sacerdotes, pas­tores, líderes, educadores, cristãos e polí­ticos; o pecado deles situa-se exatamente na fraqueza da fé contra a onisciência do altíssimo Deus (Ex 32); e a simbologia do “deus” manipulado é o “ouro” nos dias atuais: os altos cargos, sem o menor sentido de ministério; sem disponibilidade para ouvir a pessoa humana crente ou não- crente nas suas desesperanças e necessi­dades; o pecado consiste no desvirtuamento da própria “Missio Dei”.

A idolatria, portanto, transforma o Deus transcendente-libertador num Deus prisio­neiro de acordo com o sistema político/ eclesiástico/religioso, muito semelhante ao que viveu o povo israelita no Egito. Assim, o sistema, principalmente no seu aspecto político, é legitimador da impossibilidade da liberdade do povo que tem na fragilidade da sua fé a confusão doutrinária de vários deuses e religiões (Ef 4.14; Hb 13.9).

O povo, os sacerdotes/pastores e políticos que praticam a idolatria, promo­vem sua autodestruição. lahweh, no Sinai, decidiu pelo extermínio de todos aqueles que se revoltaram contra ele e cultuaram outros deuses; lahweh é o mesmo Deus de ontem, hoje e de sempre, portanto tem o poder e a plenitude da liberdade para fazer as mesmas coisas em qualquer famí­lia e igreja, conforme nos diz o Apóstolo Paulo: “Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9).

A proibição bíblica das imagens e escul­turas exige crentes de fé, uma grande capa­cidade crítica e uma postura doutrinário- teológica firme, diante de toda imagem que é feita sobre Deus, seja ela física, intelectual ou espiritual. Israel foi eleito por Deus para ser povo santo, mas Josué tinha consciên­cia que aquele povo cometia idolatria. As únicas imagens, que realmente têm autenti­cidade espiritual, são as que Deus criou: 1) homem e mulher (a pessoa humana, Gn 1.26- 27); foram criados para adorarem e glorifica­rem o nome de Deus, como o único Deus; 2) a imagem perfeita do Pai, Jesus Cristo (Cl 1.15-17,19); e 3) os cristãos, imagens de Cristo (Rm 8.29; ICo 15.49;2Co3.18).

Josué, durante o percurso do êxodo, teve um lar peregrino durante 40 anos, que no ato da nova aliança, em Siquém, já com 80 anos, mostrou ao povo de Israel que estava plenamente identificado com a imagem de lahweh, o Senhor dos Exérci­tos (Js 5.13-15).

O DEUS QUE FALA E OS DEUSES MUDOS

A transcendência e soberania de Deus são ilimitadas e a presença dele se mani­festa, sempre, pela Palavra, enquanto os ídolos se “manifestam” através das mode­lagens das mãos dos homens e nelas está presente o espírito da carne (Rm 8.5a).

A mudez dos deuses tem como “ex­pressão” máxima os efeitos deformadores da injustiça, caracterizada por todo tipo de desordem da conduta do homem. Nesse sentido, a idolatria é considerada como um problema de ordem religiosa e política, porque está aliada ao desejo individualis­ta e egoísta de exercer o poder e acumular riquezas, desencadeando todo tipo de sofrimento moral, espiritual e físico.

Precisamos estar atentos em nosso viver cristão para nos afastar de qualquer espiritualidade ou prática religiosa que é um fim em si mesma, portanto, idolátrica, mas buscando um procedimento em que Deus seja Senhor, de fato, de nossa vida.

LUZINETE MENDONÇA, REVISTA COMPROMISSO –  3º TRIMESTRE DE 1998 – JUERP

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