Em síntese: A palavra Graal parece significar prato ou cuia, na qual se depositam alimentos. O Graal é dito santo, porque, conforme a lenda, foi o prato utilizado por Jesus em sua Última Ceia; José de Arimatéia teria recolhido nele gotas do sangue de Cristo deposto da Cruz.
A Idade Média, a partir do século XII, elaborou romances que exploraram a lenda do Santo Graal, fazendo convergir para esse núcleo o ideal do cavaleiro medieval e grande número de crenças, crendices e concepções folclóricas. Abstração feita das narrativas em prosa, contam-se 63.000 versos aproximadamente, dedicados ao Santo Graal na Idade Média.
Nos últimos tempos o mito do Santo Graal tem despertado novo interesse, pois parece corresponder à aspiração, inata em todo homem, de descobrir o paraíso… o paraíso que somente os puros e fortes podem atingir.
Ouve-se, por vezes, falar do Santo Graal, mas nem sempre com clareza. Tal expressão parece encobrir e revelar “mistérios e portentos” que ninguém conhece bem. Daí a oportunidade de abordarmos o assunto.
- Etimologia da expressão
A origem da palavra Graal é incerta. Há quem julgue que vem do termo latino cratalis, por sua vez derivado do grego kriter = taça para beber. Esta explicação é hipotética.
A palavra aparece em sua forma latina gradalis num documento catalão datado de 1010. Em 1150 ocorre em dialeto provençal do vocábulo grazal. Em 1170 aparece sob a sua forma atual graal em documentos da Iíngua francesa. Designa um recipiente no qual se podem colocar alimentos sólidos e líquidos. Não é, pois, um cálice propriamente dito; significa, antes, uma cuia ou um prato fundo.
A literatura medieval encarregou-se de configurar melhor o graal, atribuindo-lhe diversas serventias no enredo de estórias e romances diversos, como passamos a ver.
- Na literatura medieval: o Conte del Graal
O romance que introduziu na literatura da França o Santo Graal, deve-se a Chrétien de Troyes, que escreveu em 1182-3 aproximadamente o Perceval ou Conte del Graal. Eis o respectivo enredo:
Um gentil-homem gaulês, chamado Perceval, bastante simplório, penetra, no fim de um dia, num castelo, cujo senhor é o rico Rei Pescador, paralítico das pernas. Após cear com o castelão, Perceval assiste a um desfile, do qual constam uma lança cuja ponta sangra permanentemente, emitindo três gotas de sangue, e um aparato de louça, cuja peça principal é um graal ou um prato ornado de pedras preciosas, portador de uma hóstia; uma jovem leva essa hóstia a um santo ancião, que há quinze anos vive unicamente desse tipo de alimento. — Se Perceval tivesse perguntado por que a lança sangrava e quem era o personagem a quem se servia o graal, o Rei Pescador teria recuperado a saúde, e seu reino devastado se teria tornado próspero. Perceval, porém, preso pela timidez, deixou de fazer estas duas perguntas; por Isto foi, conforme a trama do romance, condenado a cinco anos de andanças sem rumo definido; viveria esquecido de Deus até uma sexta-feira santa, em que se reconciliaria com o Senhor mediante uma confissão geral.
Assim passou o romance de Chrétien de Troyes para a posteridade. Percebe-se aí algo de misterioso. A obra está inacabada, pois o autor foi arrebatado prematuramente pela morte.
Por conseguinte, ficou aberta para as gerações seguintes a pergunta: que significam a lança que sangra e o graal? — Uma numerosa série de escritos tentou interpretar o “mistério” e o enredo do romance ‘Conte del Graal’.
Dentre essas interpretações, destacam-se duas de maior relevo:
1) Alguns autores, impressionados por traços cristãos (canônicos ou apócrifos) do romance, entendem que o graal é uma relíquia da Paixão de Jesus (seria o prato da Última Ceia do Senhor) ou é um vaso eucarístico (cibório). O cortejo ou desfile que Perceval contemplou, seria o símbolo do mistério da Redenção; a mulher portadora do Graal representaria a Igreja.
2) Outros intérpretes se detêm mais nos traços ambíguos do romance. Este seria o remanejamento de uma lenda celta, a qual Chrétien de Troyes teria dado um colorido cristão, pensando nas características do cavaleiro medieval; assim a índole misteriosa ou mirabolante da estória primitiva teria sido mesclada com elementos cristãos.
Vejamos agora como na literatura posterior vários escritos tentaram terminar o romance de Perceval ou o Conte del Graal.
- Literatura medieval: as “Continuações”
Nos séculos subsequentes apareceram as chamadas “Continuações” do romance. A mais antiga destas é a Continuatlon Gauvain, anterior a 1200. Segundo esta obra, a lança que sangra é a que transpassou o lado de Jesus pendente da Cruz (ver Jo. 19.34); o Graal, porém, nada teria de cristão; seria uma taça que se deslocaria por si mesma para atender aos comensais de uma refeição.
A Continuação Perceval (antes de 1200) apresenta o Graal como sendo um vaso que recolheu o sangue de Cristo derramado no Calvário.
Na mesma época Roberto de Boron escreveu um Roman de l’estoire dou Graal. Não trata da lança; mas interessa-se pelo Graal (transformado em nome próprio); este seria o prato no qual Jesus comeu a sua última Páscoa; José de Arimatéia teria pedido a Pilatos que lhe doasse esse prato e nele teria recolhido o sangue que saiu das chagas de Cristo, quando O desceram da Cruz e O envolveram na santa mortalha. Conforme a lenda apócrifa (tirada do “Evangelho de Nicodemos”, que Roberto Boron utiliza), José de Arimatéia foi encarcerado; ora, diz Roberto de Boron, na prisão Jesus apareceu a José de Arimatéia, apresentando-lhe o Graal e pedindo-lhe que, uma vez libertado, zelasse pela conservação desse prato e fizesse dele o objeto de um culto secreto. — Tal romance repercutiu na piedade de muitos leitores: o Graal tornou-se, para eles, símbolo da presença de Deus; o Graal teria falado a José de Arimatéia ajoelhado; ao vê-lo, os puros de coração, sentados em torno do Graal, recebem diariamente o alimento para a alma e para o corpo; ao contrário, os impuros que ousem sentar-se à mesma mesa, são logo desmascarados e prostrados. Ainda conforme o romance, José de Arimatéia ficou na Palestina, ao passo que o Graal foi transportado para Avaron (Avalon-Glastonbury na Inglaterra); nesta nova sede, o Graal teria sido entregue aos cuidados de Alano, sobrinho de José de Arimatéia, e do filho de Alano (chamado Perceval?). — Assim a estória do Graal foi, de um lado, associada à história da Paixão de Cristo e, de outro lado, conjugada com as origens do Cristianismo na Inglaterra.
Ainda no começo do século XIII apareceu o romance Quête del Saint Graal (Procura do Santo Graal), que faz eco a Roberto de Boron. Os heróis desse novo romance são cavaleiros da corte do rei Artur, cuja estória é a seguinte: aos cavaleiros da corte do rei apareceu o Graal numa manhã de Pentecostes. Uma vez desaparecido, os cavaleiros resolveram partir à procura do mesmo. Os melhores deles compreenderam que o Graal é o símbolo da “Graça do Espírito Santo”, concedida àqueles que fazem penitência e sabem escapar das tentações do mundo; a estes homens, caracterizados pela humildade e a castidade, é dado conhecer os mistérios mais recônditos do Graal. Graal que não é outra coisa senão Deus visto face-a-face. Assim a estória do Graal tomou a índole de um itinerário de vida espiritual; nesse itinerário, apregoado por Quête aparecem eremitas e monges vestidos de branco que, utilizando as Escrituras Sagradas, os Incitam a passar da “Cavalaria terrena” à “Cavalaria celeste”.
Em 1225 aproximadamente, o romance Quête foi incorporado a um vasto ciclo de romances chamado Lancelot-Graal. Na abertura deste ciclo, o autor insinua que a estória da Quête ocorreu no século V.
- O Santo Graal: versão alemã medieval
A estória do Santo Graal, que teve origem em território francês, foi adotada e adaptada em outras literaturas (alemã, Inglesa, neerlandesa, espanhola, portuguesa). A obra mais conhecida dentre essas adaptações é o Parzival de Wolfram von Eschenbach, datado da primeira década do século XIII. Reassume os dados do Conte Del Graal de Chrétien de Troyes e da Continuation Gauvain; modifica-os, acentuando a índole misteriosa e patética do romance. O Graal toma então a configuração de uma pedra preciosa, que oferece alimento e bebida para o corpo e simboliza as alegrias do paraíso perdido. Foi trazido à terra pelos anjos, e possui eficácia milagrosa por causa de uma hóstia trazida do céu por uma pomba toda sexta-feira santa e depositada sobre o Santo Graal.
Este era, a princípio, guardado por anjos neutros, que foram projetados do céu sobre a terra por não terem tomado partido contra Lúcifer. Tais anjos, porém, acabaram precipitados no inferno, segundo o enredo do romance, e foram substituídos por cavaleiros escolhidos e puros: os Templários. Todavia o chefe desses guardas — Amfortas (do francês amférté, enfermidade) — é atormentado pela lança sangrenta, que o castiga por causa de sua vida pregressa, pouco digna. A contemplação do Graal o conserva vivo. A pedra sagrada o pode curar, mas para tanto requer-se que Parzival, um dos heróis do romance, compadecido, pergunte a Amfortas qual a causa do seu sofrimento.
- O Parsifal de R. Wagner (1882)
A estória do Santo Graal atravessou os séculos, levando consigo as suas notas misteriosas, obscuras e lacônicas. Uma das versões modernas mais significativas é a de Richard Wagner (1882).
Wagner inspirou-se na obra de Wolfram von Eschenbach, traduzida para o alemão moderno em 1842 por Simrok. Wagner concebe o Santo Graal como sendo o cálice da última ceia de Jesus doado por Pilatos a José de Arimatéia. Tira, porém, do Graal todo significado religioso propriamente dito, e vê no mesmo o símbolo humano da piedade ou da compaixão, que ajuda os homens atribulados. A humanidade sofredora é representada por Amfortas. O Salvador dessa humanidade é Parsifal; tal nome, porém, embora tenha semelhança com Perceval e Parzival, é derivado do árabe segundo a etimologia proposta por Görres; seria composto de parsi (= puro, em árabe) e fal (=louco, também em árabe); assim entendido, Parsifal seria um jovem dotado de profunda intuição do que é o sofrimento da humanidade; na base dessa intuição, ele estaria habilitado a proporcionar aos homens a cura dos males de que sofrem.
- Conclusão
As estórias do Santo Graal podem ser tidas como expressões de um mito medieval, talvez de origem celta; nesse mito fundiram-se elementos cristãos apócrifos, o ideal do cavaleiro medieval, os anseios de santidade ou perfeição espiritual do Cristianismo como também traços de alquimia e busca da pedra filosofal. A bibliografia atinente ao Santo Graal é enorme. Não levando em consideração os muitos relatos em prosa, contam-se aproximada-mente 63.000 versos relativos ao Santo Graal da Idade Média. A substância de tal mito carece de valor histórico, embora uma ou outra versão do mesmo possa referir-se a algum episódio de história.
Nos séculos XIX/XX reaparece o mito do Santo Graal, restaurado nas obras de W. Morris, T. S. Eliot, H. Hesse, Tolkien, Dan Brown. O Santo Graal vem a ser então o arquétipo dos objetos procurados ansiosamente, conforme a escola de C. G. Jung. A persistência desse mito e o poder de sedução que ele exerce até nossa época, se explicam pelo fato de que correspondem à profunda aspiração da psique humana: esta quer descobrir a via que leva ao paraíso, paraíso ao qual só pode chegar quem seja puro e corajoso.
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Fonte: site católico http://www.pr.gonet.biz/index-read.php?num=1777#_ftn1 – Texto assinado por Dom Estêvão Bettencourt.
Dom Estêvão Bettencourt (Rio de Janeiro, 16 de setembro de 1919 – 14 de abril de 2008), batizado Flávio Tavares Bettencourt, foi um dos mais destacados teólogos brasileiro do século XX. Foi também monge da Ordem dos Beneditinos do Mosteiro de São Bento, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.