Proskynéo: Adorar ou Reverenciar?

Talvez nenhuma doutrina cristã tenha sido tão duramente atacada pelas Testemunhas de Jeová como a divindade de Cristo. O argumento delas é que Jesus não é Deus e como tal, não deve ser adorado. É exatamente isso que o livro Raciocínio à Base das Escrituras, editado em 1985, diz: “Em Hebreus 1.6, os anjos são instruídos a ‘adorar’ a Jesus, de acordo com as traduções ALA, BJ, CBC, BV. A Tradução Novo Mundo, diz ‘lhe prestem homenagem’ ( pp 215,216). Aqui as testemunhas de Jeová observam que várias traduções protestantes e católicas usam o termo ‘adorar’ em relação a Jesus Cristo, exceto a Tradução Novo Mundo (NM) editada por elas que traduz como ‘prestar homenagem’”.

Temos uma dificuldade aqui: elas disseram que a Tradução Novo Mundo é a única a não usar a palavra “adorar” em hebreus 1.6 em relação a Cristo, todavia esqueceram de precisar a data a partir da qual isso se deu. Por que digo isso? Porque essa mesma Tradução Novo Mundo nas suas edições de 1953, 1960, 1961 e 1970, dizia que Jesus Cristo deveria ser adorado e não apenas homenageado! Foi somente a partir da edição 1971 que elas mudaram o termo “adorar” pelo vocábulo “reverenciar”. Isso nos leva a um raciocínio interessante: as Testemunhas de Jeová que viveram antes de 1971, acreditavam que Jesus Cristo devia receber adoração dos anjos.

Observa-se ainda o comentário que a obra Raciocínio à Base tias Escrituras fez acerca da palavra ‘adorar’:

A palavra grega traduzida “adorar” proskynéo, e cita o Léxico Grego — Inglês do Novo Testamento e Outras Literaturas Cristãs que diz: “também usada para indicar o costume de prostrar-se diante duma pessoa e beijar-lhe os pés, a orla da sua veste, o chão”. Continuando o seu comentário, acrescenta: “Este é o termo usado em Mateus 14.33 para expressar o que os discípulos fizeram com Jesus; em Hebreus 1.6. para indicar o que os anjos devem fazer com Jesus (…). Em Mateus 4.10, Jesus disse: “Ao Senhor teu Deus adorarás (proskynéo), e só a ele servirás” (Dt 6.13, donde Jesus está evidentemente citando aqui, aparece o nome pessoal de Deus, Tetragrama.) Em harmonia com isso, devemos entender que é proskynéo, com atitude especial do coração e da mente, que se deve prestar unicamente a Deus” (p. 216).

Vamos ver se entendi bem o raciocínio acima: quando o termo grego proskynéo é usado em relação a Jesus Cristo e a outras pessoas, então ele tem o significado de “reverenciar”. E que esse tipo de “reverência” era traduzido pelo “costume de prostrar-se diante duma pessoa e beijar-lhe os pés, a orla de sua veste, o chão”, não havendo nada de mal nessa prática já que era um costume da época usado para homenagear ou reverenciar alguém. Não era uma adoração. Por outro lado quando esse mesmo termo é usado em relação a Deus, então o seu significado é “adorar”.

Basta uma olhada em algumas das sessenta ocorrências do uso de proskynéo no texto do Novo Testamento Grego para verificarmos que essa tese não se sustenta. Observemos, por exemplo, o texto de Atos 10.25,26:

“E aconteceu que, entrando Pedro, saiu Cornélio a recebê-lo e, prostrando-se a seus pés. o adorou (proskynéo). Mas Pedro o levantou, dizendo: levanta-te, que também sou homem”.

  1. Se o uso de proskynéo quando usado em relação às pessoas refletia um cos­tume da época, não havendo nada de mal na prática de uma pessoa reverenciar ou homenagear a outra, então por que o apóstolo Pedro neste texto rejeitou terminantemente a “homenagem” ou “reverência” (proskynéo) de Cornélio quando esse prostrou-se aos seus pés? Não era afinal de contas um costume da época?

  2. Observemos mais dois textos bíblicos (ambos já citados em seus co­mentários): “E os que estavam no barco o adoraram (proskynéo), dizendo: És Verdadeiramente o Filho de Deus!” (Mt 14.33); “Ao Senhor teu Deus ado­rarás, e só a ele darás culto” (Mt 4.10). Se o comentário feito pelas Testemu­nhas de Jeová anteriormente, que diz proskynéo, “se deve prestar unicamente a Deus”, não deveria o Senhor Jesus Cristo ter lembrado aos seus discípulos esse importante detalhe em Mateus 14.33 quando prostram-se aos seus pés? Não são as mesmas palavras usadas em ambos os textos?

  3. Comparando ainda Mateus 14.33 com Atos 10.25,26, não é lógico concluir que o apóstolo Pedro rejeitou adoração (proskynéo) por ser de apenas um ‘homem?’, c o Senhor Jesus Cristo aceitou essa mesma adoração (proskynéo) por ser Ele Deus, exatamente como diz João 1.1: “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus?”

Uma coisa leva a outra. Ao citar esta última referência bíblica (Jo 1.1), aca­bei por lembrar-me de que as Testemunhas de Jeová rejeitam veementemente a ideia de que a divindade de Cristo seja defendida neste texto. Em razão desse fato, a Tradução Novo Mundo tratou de traduzir essa mesma referência da seguinte forma: “E a Palavra (Jesus Cristo) era um deus!”

As Testemunhas de Jeová grafaram “um deus”. Um deus com ‘d minús­culo assim como Satanás também o é? Há dois problemas que eu vejo como insuperáveis nessa sua tradução:

1º) Há dois deuses, um com ‘D’ maiúsculo, o ‘Deus verdadeiro’ e um deus com ’d‘ minúsculo, que é o Senhor Jesus Cristo. Se isso é verdade, então não há como negar que as testemunhas de Jeová são politeístas, creem em mais de um Deus!

2°) Se elas argumentam que Satanás também é chamado de ‘deus’ em 2 Coríntios 4.4, assim mesmo a analogia não se aplica a esse caso. Por que? Porque mesmo dentro de sua lógica. Satanás seria um deus do mal, do reino das trevas, enquanto Jesus Cristo seria um deus do bem, pertencente ao reino da luz juntamente com o ‘Deus verdadeiro’. Baseado nessa lógica, então nós teríamos dois deuses no reino do bem, um Deus (que elas chamam de Jeo­vá) e Jesus Cristo (que das chamam de ‘um deus’). Não são dois deuses, um maior que se escreve com letra maiúscula e um outro menor escrito com letra minúscula?

As testemunhas de Jeová alegam que a tradução em João 1.1 deve ser ‘um deus’, devido ao fato de que não existe no original grego o artigo definido antes da palavra Theós (Deus).

O que esses tradutores veem no texto grego que induz alguns deles a refrear-se de dizer que o ‘Verbo (Palavra) era Deus?’ O artigo definido (o) aparece na frente da primeira ocorrência de Theós (Deus), mas não na frente da segunda ocorrência. A construção articular (quando o artigo aparece) do nome indica identidade, personalidade, ao passo que um nome predicativo, no singular, sem artigo e anteposto ao verbo (como está construída a sentença no grego) indica qualidade de urna pessoa, portanto, o texto não diz que a Palavra (Jesus) era o mesmo que o Deus com quem estava, mas, antes, que o Verbo (a Palavra) era semelhante a um deus, era divino, era um deus (Raciocínios à Base das Escrituras p. 213).

Concordo que isso seja um raciocínio, mas discordo que seja baseado nas Escrituras, pois, além de contradizê-la, as Testemunhas de Jeová reve­lam ignorância acerca da gramática grega. O que disseram acerca do artigo grego na citação anterior é que na língua grega só existe o artigo definido, e quando não aparece o artigo definido diante de uma palavra, então ela é indefinida. Dessa forma, o artigo definido serve para definir ou determinar, enquanto a ausência desse artigo demonstra indeterminação. Em palavras mais simples, quando Thêos vem acompanhado de artigo, então a referência é ao ‘Deus verdadeiro’, quando esta mesma palavra não vem acompanhada de artigo, então a referência não é ao ‘Deus verdadeiro’ (Jeová), mas a um “deus” com ‘d’ minúsculo já que ele não vem determinado. Foi exatamente esse o procedimento adotado pela Tradução Novo Mundo na referência de João 1.1. quando traduziu a primeira referência de Theós como “Deus” e a segunda como ‘deus’.

Qualquer pessoa com um pouco de conhecimento da gramática grega sabe que o grego não tem artigo indefinido. Mas dizer que a palavra grega Theós (Deus) quando vem de forma anarta, isto é, desacompanhada do uso de artigo, deve ser traduzida como um ‘deus’, é revelar um completo desconhecimento do texto do Novo Testamento Grego. Veja por exemplo o que disse A.T. Robertson, considerado mundialmente como a maior autoridade em língua grega (Robert­son é citado até mesmo pelas Testemunhas de Jeová). Ao falar acerca do uso do artigo com a palavra Theós, Robertson ressalta: “A palavra Theós (Deus), como um nome próprio, é frequentemente usada com ou sem artigo” (A Grammar of the Greek New Tatament in the light Histórical Research, p. 795). Vou citar apenas três exemplos do Novo Testamento Grego que confirmam essas palavras de Robertson e contrariam a tese das Testemunhas de Jeová:

Em todos esses textos a referência clara é a pessoa de Deus, o Deus ver­dadeiro, o criador de todas as coisas. Não há problema algum em se entender isso. O problema aparece se formos adotar a regra das Testemunhas de Jeová, pois, nenhuma das três referencias (Theós) no texto grego vem acompanhada de artigo. O que nos levaria a traduzir Theós como ‘um deus’. A propósito, por que a Tradução Novo Mundo não adotou o princípio defendido no livreto Raciocínios à Base das Escrituras sobre a ausência do artigo diante de Theós (Deus) nestas passagens? Por que traduziu a palavra Theós com ‘D’ maiúsculo e não com ‘d’ minúsculo, já que a mesma não vem acompanhada do uso de artigo no grego? Não foi dito que quando Theós vem acompanhado de artigo deve ser traduzido |o] Deus, e que quando não vem acompanhado de artigo deve ser traduzido [um| deus? E se Theós se referisse à pessoa do Senhor Je­sus Cristo nestas passagens, a versão Novo Mundo das Testemunhas de Jeová traduziria ‘Deus’ com um ‘D’ maiúsculo ou com um ’d‘ minúsculo como fez em João 1.1?

Para finalizar, eu não entendo o porquê de toda essa celeuma por parte das atuais Testemunhas de Jeová do século XXI em torno da divindade de Cristo, já que as primeiras Testemunhas de Jeová, que viveram no final do século XIX, adoraram ao Senhor Jesus Cristo. É bem verdade que as publicações mais mo­dernas combatem veementemente qualquer adoração ao Senhor Jesus Cristo como a edição da Sentinela de janeiro de 1954, que diz: “nenhuma adoração distinta deve ser dedicada a Jesus Cristo agora glorificado no céu” (p. 31). No entanto, nessa mesma revista Sentinela na edição de 15 de julho de 1889, está escrito: “Foi ele realmente adorado, ou é falha de tradução? Sim, cremos que nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto esteve na terra foi realmente adorado e assim corretamente procedido” (p. 216). Só gostaria de saber por que as Tes­temunhas de Jeová que viveram no final do século XIX adoravam ao Senhor Jesus Cristo e as que vivem no início do século XXI não adoram mais?

Acredito que cem anos apenas é muito pouco para se mudar uma doutrina tão importante como essa!

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LIVRO: DEFENDENDO O VERDADEIRO EVANGELHO, JOSÉ GONÇALVES – CPAD

 

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