Minhas observações às objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira a meu artigo na revista Obreiro (Parte IV)
Hoje, segue a quarta parte da minha série de artigos com observações às objeções do irmão Franklin Ferreira ao meu texto Em Defesa do Arminianismo, publicado na revista Obreiro Aprovado (CPAD), edição 68 (janeiro/março-2015).
Antes de prosseguir, porém, quero responder rapidamente a um email que recebi recentemente de um irmão em Cristo simpatizante do calvinismo (avisei ao referido irmão que responderia por aqui). Ele tem dois questionamentos sobre o que falei nos últimos artigos. As colocações desse amado irmão são, em síntese, as seguintes: (1) Se a doutrina do pecado original só foi elaborada por Agostinho, não seria melhor desconsiderarmos, nessa questão da mecânica da Salvação, a opinião dos Pais da Igreja que o antecederam? Além disso, (2) o que nós conhecemos como arminianismo só teria surgido no século 17, porque o que reinou na igreja nos seus primeiros séculos foi o semipelagianismo, logo o que ficaria conhecido como calvinismo seria muito mais antigo, porque surgiu ainda no século 5 d.C.
Ora, em primeiro lugar, conquanto Agostinho tenha sido o primeiro a ter se preocupado – por razões óbvias (a questão do batismo dos infantes e o pelagianismo) – em desenvolver a doutrina do pecado original (termo que aparece pela primeira vez em Orígenes), antes dele havia, entre alguns Pais da Igreja, declarações alinhadas com o conceito. Antes de Agostinho, você encontra tanto Pais da Igreja – a minoria – com posicionamentos semelhantes ao dele nesse sentido, em declarações isoladas aqui e ali (essas passagens costumam ser enfatizadas tanto por teólogos católicos quanto por protestantes), quanto Pais da Igreja que defendiam o que posteriormente seria chamado pelos teólogos da Igreja Ortodoxa de “pecado ancestral”, e que eram a grande maioria.
Logo, uma vez que você não vai encontrar, antes de Agostinho, nenhum dos Pais da Igreja defendendo predestinação incondicional, expiação limitada, graça irresistível e impossibilidade de um crente cair da graça, mas vai encontrar ou Pais da Igreja defendendo o conceito que seria denominado depois de “pecado original” ou Pais da Igreja defendendo o que depois seria designado como “pecado ancestral”, podemos afirmar que, tecnicamente, os Pais da Igreja antes de Agostinho esposavam ou aquilo que seria posteriormente chamado de semipelagianismo ou aquilo que posteriormente seria designado como arminianismo. A única diferença é que os termos semipelagianismo e arminianismo só seriam cunhados no século 17, mas, como pensamento, eles já existiam desde o período mais primevo da Igreja. O calvinismo, por sua vez, que surgiu como nomenclatura em fins do século 16, surgiu, como pensamento, pelo menos em essência, no século 5 com Agostinho.
Em segundo lugar, uma vez que, logo após Agostinho, os Sínodos de Arles e Lião em 473 condenaram a predestinação dupla, a predestinação incondicional, a graça irresistível, a expiação limitada e a impossibilidade de um salvo em Cristo cair da graça; e o Sínodo de Orange, que condenou outra vez a dupla predestinação, condenou, do ensino de João Cassiano e seus discípulos, apenas a crença de que, em alguns casos, o initium fidei poderia ser do homem, não condenando o ensino de João Cassiano e seus discípulos de que a predestinação é só em relação aos crentes, nem o ensino destes de que a predestinação se dá com base na presciência, nem o ensino destes de que a graça pode ser resistida, nem o ensino destes de que a expiação é ilimitada, e muito menos o ensino destes de que é possível o crente cair da graça, logo a doutrina bíblica que resta de Arles, Lião e Orange é o que tecnicamente seria chamado séculos depois de arminianismo. Porém, isso não significa dizer que a Igreja Medieval era arminiana; apesar das decisões desses conclaves oficiais, ela acabou se tornando, na prática, como já disse nos outros artigos, majoritariamente semipelagiana. E no final da Idade Média e início da Era Moderna, pela influência das visões ockhamista, averroísta e scotista da mecânica da salvação, além do contexto de idolatria, simonia e supersticiosidade popular dentro da Igreja Católica nesse período, ela se tornou, na prática, mais pelagiana que semipelagiana, o que provocou a Reforma Protestante.
Portanto, como defendi em meu artigo em Obreiro Aprovado, o arminianismo clássico é “o que melhor representa o posicionamento da Igreja sobre a questão soteriológica ao longo da história”.
Aproveitando, vai aqui uma reflexão importante sobre o semipelagianismo: embora seja indubitavelmente um equívoco doutrinário, ele não é um equívoco tão grave, como afirmam muitos calvinistas, uma vez que João Cassiano ensinava que mesmo quando era o homem que dava o initium fidei (possibilidade que tanto os arminianos quanto os calvinistas rejeitam à luz do texto sagrado), ainda assim este dependia do auxílio divino, sem a qual a Salvação seria impossível (Conferências XIII, capítulos 10, 11 e 12); e durante a história e ainda hoje, os irmãos semipelagianos têm crido dessa forma. Ademais, se o semipelagianismo fosse um equívoco doutrinário tão grave, a maioria esmagadora dos crentes genuínos de hoje e de todas as épocas estaria perdida, porque a grande massa de cristãos sinceros durante a história tem sido, ou por convicção ou – na maioria dos casos – por falta de um melhor entendimento do ensino bíblico acerca da mecânica da Salvação, semipelagianos. E como escrevi em meu artigo de Obreiro Aprovado, ninguém é salvo pelo entendimento perfeito da mecânica da salvação, mas pela aceitação do método e da mensagem da salvação.
No Céu, este arminiano que vos escreve e os demais irmãos que perseverarem até o fim iremos encontrar, com certeza, um grande número de salvos em Cristo que, em relação à compreensão da mecânica da Salvação, eram, na Terra, semipelagianos.
Mas, vamos agora ao quinto tópico das objeções.
5) Escreve o irmão Franklin: “O mais surpreendente é quando o autor afirma que Lutero abrandou a posição afirmada em seu tratado ‘Da vontade cativa’, e que passou a crer na possibilidade de se cair da graça (lendo erroneamente os Artigos de Esmacalde III.42-45, que, na verdade, refutava distorções anabatistas). Ao tratar de uma mudança de ênfase na teologia de Lutero, ele cita Herman Bavinck como fonte, mas não mencionou que este autor também afirmou que Lutero ‘nunca reverteu sua posição sobre predestinação’, e que os ‘verdadeiros luteranos’ rejeitaram o sinergismo de Filipe Melanchthon (‘Teologia Sistemática’, v. 2, p. 364)”.
Em primeiro lugar, não sou eu apenas que afirmo isso: vários teólogos luteranos e não-luteranos reconhecem, como este escriba, que Lutero abrandou a sua posição afirmada emDe servo arbítrio e que o texto da seção III.42-45 dos Artigos de Esmalcade é claro quanto à crença de Lutero na possibilidade de um cristão genuíno cair da graça. Ademais, não apenas esse trecho dos Artigos de Esmalcade comprovam isso.
Em segundo lugar, ao citar Bavinck, eu não afirmei em nenhum momento que Lutero abandonou sua posição específica sobre o ponto “predestinação”, mas, sim, que Lutero, como reconhece o próprio Bavinck, logo depois de escrever Da Vontade Cativa (“De servo arbítrio”), “evitou progressivamente a doutrina especulativa da predestinação”. E na sequência, eu é que acrescentei que, nessa segunda fase de sua vida, Lutero não parou por aí, mas foi mais além, se opondo, ao final de sua vida, “a 3 ensinos que se tornariam depois 3 dos 5 pontos da Tulip calvinista”.
Outro detalhe: no texto original que tive de diminuir, eu citava vários autores que falam das mudanças de Lutero ao final de sua vida em relação ao tema da mecânica da Salvação, mas, como precisava cortar texto para que o artigo pudesse entrar na revista, deixei propositadamente apenas aquela passagem de Bavinck, justamente para ressaltar, aos meus leitores que eventualmente simpatizam com o calvinismo e conhecem esse célebre autor calvinista, que embora seja comum vermos calvinistas dizendo insistentemente – e equivocadamente – que “Lutero foi mais calvinista do que o próprio Calvino”, até mesmo teólogos calvinistas como Bavinck reconhecem, mesmo que relutantemente, que Lutero não foi “mais calvinista do que o próprio Calvino”, pois, no final de sua vida, o reformador alemão colocou em detrimento a doutrina da predestinação. O problema apenas é que teólogos calvinistas como Bavinck geralmente só mencionam esse fato, silenciando totalmente para o fato também de que Lutero foi muito mais além do que isso. Mesmo nunca tendo revertido oficialmente sua posição sobre a predestinação, ele não apenas colocou essa doutrina como a entendia em detrimento dentro do seu ensino, como também terminou sua vida, como informei em meu artigo, negando 3 dos chamados 5 pontos do calvinismo.
Entre os muitos teólogos que ressaltam claramente a mudança do pensamento de Lutero sobre a mecânica da Salvação estão, por exemplo, entre os mais antigos, o pastor e teólogo luterano Teodósio von Harnack (1817-1889), o pastor e teólogo luterano Emil Brunner (1889-1966), o pastor e teólogo metodista Albert Nash (1828-1893), o historiador Kaspar Brandt (1653-1696) e até mesmo – embora timidamente – o teólogo calvinista Louis Berkhof (1873-1957), sem falar do próprio Philip Melanchthon; e entre os mais recentes, temos, por exemplo, o pastor e teólogo luterano canadense Bart Eriksson; o teólogo luterano Douglas A. Sweeney, professor e chefe do Departamento de História da Igreja e História do Pensamento Cristão do Trinity Evangelical Divinity School; o pastor luterano Don Matzat, articulista da revista Modern Reformation; o pastor batista John Arkenberg, mestre em História da Igreja e História do Pensamento Cristão; e o teólogo John Weldon, doutor em Religião Comparada e mestre em Apologética Cristã.
Em sua obra Luthers Theologie (“A Teologia de Lutero”), volume I, pp. 148 a 190, Teodósio von Harnack, que era considerado um dos maiores especialistas sobre a Teologia de Martinho Lutero no século 19 e não deve ser confundido com seu filho Adolf von Harnack, assevera, citando vários textos do próprio Lutero, a mudança clara de pensamento do reformador alemão sobre a questão da mecânica da Salvação no final da sua vida. Emil Brunner, que cita T. von Harnack em sua célebre Dogmática, volume I, assevera o mesmo. Mais precisamente, logo depois de afirmar que, após Agostinho, apenas o monge Gottschalk, o tomista Bradwardine e Wycliff pregaram realmente a predestinação agostiniana (embora, como eu já disse, Bradwardine negava outros pontos caros para o agostinianismo e o calvinismo no que concerne ao entendimento da mecânica da Salvação – ver meu primeiro artigo desta série), Brunner afirma, na sequência, a respeito do pensamento de Lutero sobre o assunto (os grifos são meus):
“Lutero, também, em sua obra De servo arbitrio, argumentou o determinismo estrito de Bradwardine até suas últimas consequências, com extrema, para não dizer brutal, lógica. Entretanto, no ensino de Lutero, esta não foi a sua última palavra [sobre o assunto]. Esse determinismo predestinarianista foi posteriormente desmentido por sua nova compreensão da Eleição, adquirida a partir de uma nova visão sobre o Novo Testamento. Lutero, é verdade, não revogou o que ele disse em De servo arbitrio; mas, a partir de 1525 em diante, o seu ensino era diferente. Ele tinha se libertado da formulação agostiniana desse problema e também do raciocínio causal de Agostinho. Ele viu que essa doutrina da predestinação era teologia natural especulativa, e entendeu a ideia bíblica da Eleição em e através de Jesus Cristo”.
“[…] Se, antes de 1525, e especialmente em De servo arbitrio, Lutero nega explicitamente o universalismo da vontade divina da salvação, agora ele enfatiza a verdade de que Deus em Cristo nos oferece, como seu único arbítrio, o Evangelho da Graça – ‘Nee est praetur hunc Christum alius Deus aui aliqua Dei voluntas quarenda’ – e para isso ele acrescenta que quem especula sobre a vontade de Deus fora de Cristo perde a Deus (40, I, 256). Em Cristo, o Crucificado, ‘tu conheces a esperança certa da misericórdia de Deus para ti e toda a raça humana’ (ibid., 255). Ele agora faz uma distinção explícita entre o universalismo da promessa e o particularismo da maneira em que o mundo vai acabar: ‘Porque o Evangelho oferece a todos os homens, é verdade, o perdão dos pecados e a vida eterna por meio de Cristo, mas nem todos os homens aceitam a promessa do Evangelho, e o fato de todos os homens não aceitarem a Cristo é culpa deles mesmos… ‘Interim manet sententia Dei et promissio universalis’ [‘Nesse meio tempo, ele {o Evangelho} continua a ser uma sentença de Deus e uma promessa universal’]… Pois é a vontade de Deus que Cristo deve ser um ‘communis omnium thesaurus’ [‘Um tesouro comum a todos’]… Mas os incrédulos resistem a essa vontade graciosa de Deus’(Erl. Ed., 26, 300)”.
“Assim, doravante, ele faz uma distinção entre o universalismo da vontade divina da salvação e o particularismo no Juízo Final, e toda a culpa pela ruína do homem é colocada na própria conta deste: ‘Non culpa verbi quod sanctum est et vitam offert, sed sua culpa quod hanc salutem quae offertur rejiciunt’ (40, 2, 273). É no fato da incredulidade do homem que a doutrina da dupla predestinação começa, pois é dito que a causa da incredulidade do homem é derivada da vontade de Deus e, portanto, se dá a partir do ‘decreto’ de Deus. Aqui, no entanto, segue-se o ponto de virada decisivo no pensamento de Lutero. De 1525 em diante, ele adverte a seus ouvintes contra a busca de um decreto divino escondido desse tipo. Em tons exaltados, ele exorta os seus alunos, em suas palestras sobre Gênesis: ‘Vos igitur qui nunc me auditis, memineritis me hoc docuisse, non esse inquirendum de praedestinatione Dei absconditi. Sed ea aquiescendum esse quae revelatur per vocationem et per ministerium verbi. Ibi enim potes de fide et salute tua certus esse’. A graça de Deus em Jesus Cristo – este é o verdadeiro ‘beneplacitum Dei Patris’ [‘O prazer de Deus, o Pai’]’ (43, 463)”.
“Lutero percebe que a questão da predestinação está fora da esfera da revelação cristã e da fé, e que é uma questão de teologia natural especulativa. É a teologia escolástica especulativa que faz a distinção entre uma ‘voluntas signi’ (‘a vontade revelada’) e uma ‘voluntas beneplaciti’, a eleição divina insondável ou rejeição. […] Em tudo isso Lutero percebeu duas verdades: em primeiro lugar, que a doutrina tradicional da predestinação, como ele mesmo tinha tomado de Agostinho, é uma teologia especulativa e, portanto, não cria um verdadeiro conhecimento de Deus, mas, pelo contrário, leva os homens ao desespero; e, por outro lado, que a verdadeira doutrina da predestinação é simplesmente o conhecimento da eleição em Jesus Cristo através da fé. Assim, neste ponto, como em tantos outros, Lutero libertou o Evangelho do fardo da tradição que tinha quase totalmente obscurecido-o, e ele mais uma vez baseia a verdade teológica sobre a revelação de Deus em Jesus Cristo” (BRUNNER, Emil, Dogmatic, volume I, The Christian Doctrine of God, The Westminster Press, pp. 342- 345).
Além de T. von Harnack e Brunner, o pastor e teólogo metodista Albert Nash (1828-1893), em sua obra “Perseverance and Apostasy”, de 1870, assevera: “Na parte inicial de sua carreira, Lutero aparece favorecendo algumas das mais estritas visões de Agostinho, porém, mais tarde em sua vida, adotou sentimentos em harmonia com o ensino subsequente de Arminius. O mesmo deve ser dito de Melanchthon” (NASH, Albert, Perseverance and Apostasy: being a argument in proof of the Arminian Doctrine, N. Tibbals & Son, Nova Iorque, 1871, pp. 5 e 6).
E além de T. von Harnack, Brunner e Nash, o próprio teólogo calvinista Louis Berkhof admite essa mudança em Lutero, embora o faça timidamente.
Na página 101 de sua Teologia Sistemática (Cultura Cristã), Louis Berkhof começa afirmando que “todos os reformadores do século 16 defenderam a mais estrita doutrina da predestinação” (grifos meus). Aí, na frase seguinte, ele mesmo começa a relativizar o que disse. Ele mal começa o parágrafo e já se contradiz. Diz Berkhof na sequência: “Esta afirmação é verdadeira mesmo quanto a Melanchthon em seu período inicial”. Sim, ele está certo ao afirmar que Melanchthon começou defendendo “a mais estrita doutrina da predestinação”; entretanto, uma vez que o reformador alemão mudou muito cedo sua visão inicial sobre esse assunto, e estamos falando aqui ainda do século 16, Berkhof deveria, só por isso, já retificar o que disse na frase anterior, afirmando em seu lugar: “Ainda no século 16, nem todos os reformadores mantiveram a mais estrita doutrina da predestinação”.
Mas, para piorar, Melanchthon mudou de pensamento juntamente com Lutero e com a concordância deste (Veremos isso daqui a pouco). Aliás, o próprio Berkhof, na frase subsequente, reconhece a mudança em Lutero, ao afirmar que “Lutero aceitava a doutrina da predestinação, se bem que a convicção de que Deus queria que todos os homens fossem salvos o levou a enfraquecer um tanto a doutrina da predestinação nos últimos tempos de sua existência” (grifos meus). Ou seja, Berkhof admite que não foi simplesmente Melanchthon que mudou de posição: o próprio Lutero mudou.
A verdade é que, quando a Reforma Protestante não tinha nem chegado aos seus 20 anos de existência, Lutero, o pai da Reforma, já enfraquecera a doutrina da predestinação nos moldes que seriam chamados posteriormente de calvinistas, e isso é simplesmente a primeira metade do século 16. Portanto, mais certo ainda seria o irmão Berkhof gravar em sua obra: “Ainda no século 16, nem todos os reformadores mantiveram a mais estrita doutrina da predestinação, a começar do pai da Reforma: Lutero”.
Berkhof continua: “Ela [a doutrina da predestinação nos moldes agostinianos] foi desaparecendo gradativamente da teologia luterana, que agora a considera, total ou parcialmente (reprovação),como condicional. Calvino [ao contrário] sustentou firmemente a doutrina agostiniana da predestinação dupla e absoluta” (grifos meus). Correto. Faltou só dizer que esse “gradativamente” foi ainda na primeira metade do século 16, antes mesmo de a Reforma chegar a 20 anos de existência, e com seu fundador – Lutero – vivo, ativo e aquiescendo.
Mas, como adiantei no início, não são apenas esses teólogos mais antigos que asseveram o que afirmei. John Arkenberg e John Weldon, por exemplo, na nota 2-3 de sua bem conhecida obra Catholics and Protestants: Do They Now Agree?, elogiada e recomendada por calvinistas como R. C. Sproul, John McArthur Jr e D. James Kennedy, e lançada originalmente em 1995, ressaltam igualmente a mudança de pensamento de Lutero, citando especificamente a questão do cair da graça. Frisam eles (os grifos são meus): “Embora Lutero concordasse que os méritos de Cristo eram a única base da justificação de um homem, e que esta não dependia de forma alguma de ações do homem, Lutero ainda pensava que um homem pode perder a sua justificação se ele, finalmente e totalmente, se afastar de Cristo.Uma vez que o dom do perdão dos pecados e a vida eterna dados por Deus são apropriados pela fé, se um homem decidir não descansar mais seu destino eterno em Cristo e totalmente voltar-se contra Ele, Lutero acreditava que só assim este homempoderia perder a sua salvação.Em outras palavras, o único pecado que Lutero pensou que poderia causar a perda da salvação é o pecado da apostasia sem arrependimento”.
Sobre esse mesmo assunto, o pastor e teólogo luterano canadense Bart Eriksson escreve (os grifos são meus): “Um tema que encontramos […] [nos escritos de Lutero] é a possibilidade de cristãos perderem a sua salvação, de caírem para longe da graça. O pensamento luterano ao longo dos anos tem sublinhado que é possível cair para longe da salvação, e Lutero acreditava dessa forma. Os teólogos luteranos dos primeiros duzentos anos após Lutero – um período normalmente referido como a era da ‘Ortodoxia Luterana’ – também ensinaram que era possível para os cristãos perderem a sua salvação (SCHMID, H., The Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church, 5ª edição, The Lutheran Bookstore, 1876, pp. 459 e 482). A ideia de que os cristãos podem perder a sua salvação também mostra-se em uma série de lugares nas confissões luteranas (Luther’s own Smalcad Articles, pp. 308, 310 e 315, e na Formula of Concord Epitome, artigo IV, seção 19, p. 477, no The Book of Concord [“O Livro de Concórdia”], edição e tradução de Theodore G. Tappert, Fortress Press, 1959)”.
Prossegue Eriksson: “Aqui está uma das declarações dos Artigos de Esmalcade de Lutero [Eriksson passa a citar, então, um trecho da seção III, artigos 42-45]: ‘É, portanto, necessário conhecer e ensinar que quando pessoas santas (…) caem em pecado aberto – como Davi caiu em adultério, homicídio e blasfêmia –, a fé e o Espírito retirou-se delas’. Agora, os teólogos luteranos não retiram essa noção de algum chapéu. A ideia que podemos perder a nossa salvação é retirada diretamente dos ensinamentos do apóstolo Paulo. […] Lutero reflete sobre esses ensinamentos de Paulo em seu comentário à Epístola aos Gálatas de 1535, quando ele escreve que ‘aos que pecam por causa da sua fraqueza, mesmo que o façam muitas vezes, não lhes será negado o perdão, desde que se levantem novamente e não persistam em seus pecados, porque resistir ao pecado é o pior de tudo’ (Ibid., p. 80). Ele, então, continua a dizer, a respeito de Gálatas 5.19: ‘Diferentes pessoas são tentadas de maneiras diferentes, de acordo com a diversidade de sua constituição e atitude. Uma pessoa está sujeita a sentimentos mais burilados, outra para (…) mais óbvios, tais como o desejo sexual, a raiva ou o ódio. Mas aqui Paulo exige de nós que andemos no Espírito e resistamos a carne. Qualquer um que cede à carne e persiste na presunçosa gratificação de seus desejos deve saber que não pertence mais a Cristo; embora ele possa orgulhar-se muito e sempre do título de ‘cristão’, ele está apenas enganando a si mesmo’ (Luther’s Work, volume 27, p. 81)”.
Continua Eriksson: “As citações de Lutero sobre esse assunto estão em perfeito acordo com o que vemos nas Escrituras e nas Confissões Luteranas que juramos pregar. Vale a pena lembrar que durante as nossas cerimônias de ordenação de pastores luteranos somos conclamados a não dar ‘alguma ocasião para a falsa segurança ou a esperança ilusória’ (Occassional Services, Augsburg Publishing House, 1995, p. 194). Se formos fieis às Escrituras, às Confissões Luteranas e aos ensinamentos de Lutero, que concorda com todos esses outros documentos, temos de reconhecer que a persistência deliberada no pecado não é uma questão trivial. Além de prejudicar a nós mesmos e aos outros, o pecado deliberado e persistente pode causar uma brecha no nosso relacionamento com Deus, uma queda da graça. […] Lutero e nossas confissões afirmam que pode-se perder a salvação se houver persistência no pecado” (ERIKSSON, Bart, Luther on Sin and Salvation: Implications for the Homossexuality Debate, Sínodo de Alberta, Canadá, junho de 2005, no site da Igreja Evangélica Luterana do Canadá – www.elcic.ca).
O pastor luterano norte-americano Don Matzav, por sua vez, escreve sobre o pensamento de Lutero: “Ao lidar com a questão da eleição e da predestinação, Lutero compreendeu o impasse em que se chega ao manter ao mesmo tempo a depravação total do homem, a graça universal e a eleição de indivíduos por Deus, mas ele nunca tentou harmonizar esses ensinamentos. Ele temia que seria forçado a fazer concessões que violam a verdade bíblica. Lutero acreditava que a eleição divina era a causa da nossa salvação e que essa doutrina era para o conforto do crente. […] [Entretanto,] apesar de aceitar a eleição divina, Lutero se recusou a abraçar as conclusões lógicas que levavam a uma expiação limitada para os eleitos e à graça irresistível. Ele manteve a graça universal e o poder do homem de resistir e rejeitar o Evangelho. Para Lutero, era um mistério. No que diz respeito a investigar essa doutrina, ele escreveu: ‘Não estamos autorizados a investigar, e mesmo que você investigue muito, você nunca irá descobrir’. A doutrina da predestinação não foi central na teologia de Lutero. A substância da ‘sola gratia’ ou ‘somente a graça’ não estava na doutrina da eleição, mas na cruz de Jesus Cristo” (MATZAV, Don, Martin Luther and the Doctrine of Predestination, revista Issues, Etc, outubro de 1996, volume 1, número 8).
Quanto à afirmação de Bavinck de que os “verdadeiros luteranos” rejeitaram o sinergismo de Melanchthon, trata-se de uma tremenda distorção da história.
Ainda no século 16, luteranos e calvinistas divergiram profundamente devido não apenas à questão da Santa Ceia, mas também devido à clara diferença de visão entre eles sobre a mecânica da Salvação à luz da Bíblia. Brunner, na página 345 do volume I de sua obra supracitada, lembra que a controvérsia entre luteranos e calvinistas na segunda metade do século 16 não foi apenas por causa da visão diferente sobre a Santa Ceia, embora esse tenha sido o ponto mais em destaque, mas também porque aqueles “seguiram osensinamentos posteriores de Lutero” que eram contrários aos ensinos calvinistas sobre a mecânica da Salvação (Ibid., p. 345).
Um dos resultados diretos dessa divergência entre luteranos e calvinistas no século 16 foram os Artigos Saxões de Visitação anexados ao Livro de Concórdia em 1593, elaborado pelos luteranos W. Mamphrasiu, A. Hunnius, J. Löner, M. Mirus, G. Mylius, dentre outros, para organizar e esclarecer a fé luterana em oposição exatamente ao ensino calvinista de seus dias (Veja-o AQUI). Lá, lemos, no artigo IV:
“Da Predestinação e da Providência Eterna de Deus – A doutrina pura e verdadeira das nossas Igrejas neste artigo:
“1) Que Cristo morreu por todos os homens e, como o Cordeiro de Deus, levou os pecados do mundo inteiro”.
“2) Que Deus não criou homem algum para a condenação, mas quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Ele, portanto, chama a todos para ouvir a Cristo, seu Filho, no Evangelho; e promete, por sua audição, a virtude e a operação do Espírito Santo para a conversão e salvação”.
“3) Que muitos homens, por sua própria culpa, perecem: alguns, que não vão ouvir o evangelho a respeito de Cristo; alguns, que novamente caem da graça, seja por erro fundamental ou por pecados contra a consciência”.
“4) Que todos os pecadores que se arrependem serão recebidos em favor; e ninguém será excluído, apesar de seus pecados serem vermelhos como sangue; uma vez que a misericórdia de Deus é maior do que os pecados do mundo inteiro, e Deus se compadece em todas as suas obras”.
“[…] Da falsa e errada doutrinas dos calvinistas sobre a predestinação e a Providência de Deus:
“1) Que Cristo não morreu por todos os homens, mas apenas para os eleitos”.
“2) Que Deus criou a maior parte da humanidade para a condenação eterna, e não é da sua vontade que a maior parte se converta e viva”.
“3) Que o eleito e regenerado não pode perder a fé e o Espírito Santo, ou ser condenado, embora eles cometem grandes pecados e crimes de toda espécie”.
“4) Que aqueles que não são eleitos estão necessariamente condenados, e não podem chegar à salvação, ainda que sejam batizados mil vezes, e recebam a eucaristia todos os dias, e levem uma vida irrepreensível como sempre pode ser conduzido”.
Os teólogos do período chamado (não por acaso) de “Ortodoxia Luterana” – Leonhard Hutter (1563-1616), Johann Gerhard (1582-1637), Johann Quensteldt (1617-1688), David Hollaz (1646-1713) etc –, defenderam a posição luterana contra a minoria simpática ao calvinismo. Em meio a esse combate, dois deles – Quensteldt e Hollaz – chegaram até mesmo a ir além das mudanças empreendidas por Melanchthon e Lutero, ensinando também a predestinação com base na presciência divina. Enfim, fato é que, desde o início das divergências, os luteranos influenciados pelo calvinismo foram minoria. Como informa o teólogo luterano Douglas A. Sweeney, “os luteranos se inclinaram mais para os arminianos do que para os calvinistas sobre algumas das questões doutrinárias que dividiam os dois grupos” (AQUI). Mas, segundo a versão calvinista, a esmagadora maioria – ou seja, a “Ortodoxia Luterana”, que era anticalvinista – é que representava os “falsos luteranos”; e a minúscula minoria, que era criptocalvinista e foi voz vencida, é que representava os “verdadeiros luteranos”. Essa é uma leitura completamente equivocada dos fatos.
Ademais, não é verdade que entre os reformadores no século 16 só havia diferenças sutis no que diz respeito à doutrina da mecânica da Salvação. J. I. Packer costuma dizer que o calvinismo, como definido no Sínodo de Dort, que traz a posição que ele esposa pessoalmente sobre como funciona a mecânica da Salvação, é um círculo fechado: não há como você negar um dos cinco pontos e sustentar os demais. Se Packer está certo, então não se pode considerar diferenças sutis aquelas esposadas entre os reformadores do século 16 no que diz respeito à mecânica da Salvação.
Albert Nash, na sua obra supracitada, citando os escritos de Simão Espicopius (1583-1643), o mais fiel discípulo de Arminius, ressalta que (grifos meus) “nos dias de Calvino, alguns teólogos [protestantes] recusaram receber as doutrinas ensinadas por ele. Alguns letrados e piedosos homens objetaram suas visões como novidades perigosas, e em alguns lugares tumultos foram criados por estas novidades” (NASH, Ibid., p. 6). Friso: Episcopius, nascido menos de 20 anos depois da morte de Calvino, tendo vivido como criança e adolescente ainda no século 16, sublinhava que, ainda “nos dias de Calvino”, houve divergências quanto ao ensino deste entre os teólogos protestantes. E ele não estava aludindo apenas aos luteranos.
Diferentemente do que diz Berkhof, “todos os reformadores” não defenderam “a mais estritadoutrina da predestinação”. Não se pode falar de “mais estrita”, uma vez que, por exemplo, eram contra a predestinação dupla, contra o supralapsiarianismo e esposavam a doutrina bíblica da expiação ilimitada os mártires protestantes ingleses Hugh Latimer e Thomas Cranmer, bem como Heinrich Bullinger (1504-1575), sucessor de Zwinglius na Suíça, e seu sucessor Rudolf Gwalther (1519-1586), além dos reformadores Wolfgang Musculus (1497-1563), Erasmus Sarcerius (1501-1559) e Myles Covardale (1488-1569).
Só quanto ao tópico Expiação Limitada, e só no século 16, eram contrários Lutero, Melanchthon, William Tyndale, Oecolampadius (Ecolampádio), Bullinger, Wolfgang Musculus, Pierre Viret, Peter Martyr Vermigli, Hugh Latimer, Thomas Cranmer, Myles Coverdale, Erasmus Sarcerius, Heinrich Bullinger, Rudolf Gwalther, Zachary Ursinus, Jacob Kimedoncius, David Paraeus, Robert Rollock, William Bucanus, Batholomaeus Keckermann, dentre outros menos ilustres. E lembremo-nos mais uma vez que os luteranos, de forma geral, não divergiam só quanto a isso.
Todos essas pessoas e grupos representavam, simplesmente, a maioria dos pensadores protestantes do século 16. E olha que nem estou incluindo nessa história os radicais anabatistas, que surgiram bem no início da Reforma e por razões óbvias não são contados aqui (embora entenda que possa haver quem conteste essa minha omissão).
E o que dizer do reformador holandês Joannes Anastasius Veluanus (1520-1570)? Propositalmente, cito-o à parte, para ressaltar a injustiça cometida quanto à sua memória durante muito tempo. Ele foi perseguido, preso e torturado pela Inquisição católica, mas saiu da masmorra para continuar pregando o Evangelho, tendo a sua obra The Layman’s Guide, de 1554, se tornado uma das obras protestantes mais lidas em toda a Holanda na segunda metade do século 16. Nela, Veluanus, além de pregar contra a justificação pelas obras, contra a veneração dos santos, contra o papado, contra a confissão auricular, contra a doutrina da transubstanciação (sua posição, nessa questão, era similar à de Zwinglius), também ensinou, décadas antes de Arminius, o que seria chamado posteriormente de arminianismo. Mesmo assim, Veluanus é praticamente desconhecido pelo grande público. Por quê? Porque seu nome foi rapidamente enterrado dentro da história do protestantismo holandês pelos calvinistas daquele país logo quando estourou a controvérsia entre arminianos e calvinistas no início do século 17.
Fizeram isso logo com um dos nomes mais importantes da história da Igreja Reformada da Holanda, apenas porque, décadas depois de sua morte, ele se tornaria um exemplo contundente e inconveniente de oposição à predestinação calvinista dentro do movimento reformado holandês ainda em seu início.
Na controvérsia entre arminianos e calvinistas no início do século 17, os seguidores de Arminius lembravam a seus opositores que Veluanus já ensinara o que eles defendiam, e que este sempre fora, até aquela época, uma figura respeitada por todos os protestantes holandeses. Bastou que isso acontecesse para que, após o Sínodo de Dort, o nome de Veluanus, antes tão respeitado, fosse propositada e completamente enterrado na história da Igreja Reformada Holandesa, até que, em 1912, a Igreja Reformada Holandesa, reconhecendo a injustiça cometida contra um de seus principais nomes, prestou uma homenagem de mea culpa a Veluanus. E em 1994, ainda foi erigida uma estátua em homenagem ao reformador holandês em frente à Igreja Reformada Holandesa de Garderen (Veja AQUI).
Portanto, é equivocado o que alguns calvinistas afirmam de que a posição de Calvino sobre a mecânica da Salvação era aceita por Lutero e todos os demais reformadores com apenas divergências praticamente irrelevantes entre eles. Essa é uma lenda que os dados históricos desmentem.
O próprio pensamento arminiano surgiu dentro do calvinismo ainda no século 16, e só pôde surgir porque já havia, bem no início do calvinismo, divergências internas entre os seus adeptos no que concerne a algumas questões relativas à mecânica da Salvação. Só foi possível o pensamento arminiano aflorar dentro do protestantismo porque não havia unanimidade dentro do protestantismo desde seu início sobre a predestinação em moldes estritos como ensinada por Calvino – não havia naquela época e, até mesmo dentro do calvinismo, se formos criteriosos, nunca houve em época alguma.
O arminianismo é a consequência natural e inevitável desses questionamentos advindos desde o início da Reforma. E ele foi tão forte no início do século 17 que os calvinistas tiveram que se mobilizar e conquistar apoio político para combater a “ameaça”. Com o supralapsariano fanático do Gomarus levando às últimas consequências sua divergência com Arminius e a questão política entrando no meio mais à frente, a coisa se tornou uma crise (Sim, a questão política estava no meio, e mostrarei isso documentalmente no próximo artigo). No final, porém, apesar da perseguição aos arminianos imposta pelo Sínodo de Dort, historicamente o arminianismo venceu: há mais arminianos no mundo hoje do que calvinistas.
Antes de Arminius morrer, todas as assembleias diante das quais ele apresentou seu pensamento não acharam nada demais o teor da divergência entre ele e os calvinistas mais ortodoxos, porque o espírito de divergência entre os protestantes até aquela época não havia chegado ainda ao tom inquisidor que o Sínodo de Dort, influenciado pelo contexto político, marcaria. Inclusive, como prova disso, um detalhe importante é que os seguidores de Arminius não eram apenas pessoas que passaram a crer como ele depois que começaram a ouvir suas palestras sobre o assunto, mas gente também que já pensava como ele e que o defendeu quando Gomarus criou a controvérsia. Até mesmo o próprio Arminius, que já não era simpático ao supralapsiarianismo, não mudou completamente sua posição sobre o entendimento da mecânica da Salvação do nada, mas depois de ouvir – na intenção de combatê-los – os argumentos de alguém que já pensava como ele pensaria depois essa questão: o teólogo, filósofo, artista e político holandês Dirck Volkertszoon Coornhert (1522-1590).
Coornhert, que é considerado um dos pais da Renascença Holandesa, concordava, como tantos em sua época, com a compreensão de Veluanus sobre a doutrina da predestinação. Alguns, infelizmente, classificam erroneamente Coornhert de “anabatista”. A verdade é que Coornhert nunca aderiu ao anabatismo ou a qualquer outro grupo, tendo manifestado posição independente em toda a sua vida. Ele foi um opositor do catolicismo e, ao mesmo tempo, discordava do que ele considerava excessos dos cristãos reformados de forma geral. Coornhert era também contra o Estado adotar uma posição dogmática em relação à fé e contra a pena capital para os hereges.
O luteranismo só não teve problema similar ao que o calvinismo teve, vendo sair de dentro dele o arminianismo, porque Lutero e Melanchthon, sabiamente, passaram a entender, diferentemente do que defendiam no início da Reforma, a doutrina da mecânica da Salvação à luz da Bíblia. Essas mudanças que fizeram ao final garantiram uma “tensão” que unifica doutrinariamente os luteranos até hoje. Se bem que os luteranos norte-americanos, no final do século 19 e início do século 20, teriam ainda uma briga homérica sobre a questão da eleição, se ela é condicional ou incondicional (Atualmente, o Sínodo de Missouri afirma que ela é incondicional e o Sínodo de Ohio, que é condicional).
Mas, voltemos a Lutero e Melanchthon.
É extremamente equivocada a ideia de que foi Melanchthon que mudou tudo sozinho, “traindo” o pensamento de Lutero. Os fatos mostram exatamente o contrário.
Como disse em meu artigo em Obreiro Aprovado, Lutero, em 1516, pregou a expiação limitada em seu célebre Comentário aos Romanos, mas em 1533, já em seu Sermão para o Primeiro Domingo do Advento, ele mudou radicalmente sua posição, passando a pregar a Expiação Ilimitada (nessa época, a Reforma tinha apenas 16 anos de existência). Mas não só ali: Lutero e Melanchthon escreveram juntos uma carta ao Conselho da Cidade de Nuremberg, datada de 18 de abril de 1533, sobre a controvérsia naquela cidade acerca das confissões pública e privada de pecados, afirmando, ambos, a doutrina da expiação ilimitada; e em seus Sermões no Evangelho de João de 1537, comentando João 1.29, Lutero defendeu a mesmíssima coisa.
E em 1537, na seção III, parágrafos 42 a 45 dos Artigos de Esmalcade, escritos pelo próprio Lutero como resumo de toda doutrina luterana, ele afirma o que não pode ser mais claro do que o sol sobre a possibilidade de um crente genuíno, regenerado, cair da graça. Antes disso, porém, já na Confissão de Augsburgo de 1530, escrita por ele e Melanchthon conjuntamente, lemos ambos afirmando no artigo 12: “Aqui se rejeitam os que ensinam não poderem voltar a cair aqueles que já uma vez se tornaram piedosos”.
Lembrando que não foi só nesses documentos que Lutero defendeu a possibilidade de um cristão genuíno cair da graça. Ele defendeu o mesmo na seção XII do seu Catecismo Maior, que é a seção que trata Sobre a Oração do Senhor, e exatamente no tópico sobre a Sexta Petição (“Não nos deixes cair em tentação”); no seu comentário sobre a passagem de 2 Pedro 2.22; e no seu comentário sobre Gálatas 5.4, dentre outras passagens de seus escritos, algumas delas já citadas neste artigo.
Ademais, quando Melanchthon escreveu em 1527 o seu Comentário aos Colossenses, ele apresentou ali, pela primeira vez, uma posição sobre a questão do livre-arbítrio diferente da de Lutero em De servo arbitrio, escrito dois anos antes, e Lutero não só aprovou o pensamento de Melanchthon como prefaciou a obra dele e encheu de elogios a interpretação de Melanchthon. Em 1527, na briga de Melanchthon com o antinomista João Agrícola, Melanchthon defendeu uma posição praticamente sinergista e Lutero o apoiou. E em 1536 e 1537, quando Melanchthon foi criticado por Conrado Cordatus, Jacob Schenck e Nicolau Amsdorff por defender exatamente uma posição sinergista, Lutero apoiou Melanchthon outra vez.
Em 1543, três anos antes de Lutero morrer, Melanchthon, na reedição de sua principal obraLoci Communes, escreveu claramente que o livre-arbítrio é real e que a graça pode ser resistida, e Lutero não escreveu uma linha para reprová-lo. Ao contrário, elogiou a ortodoxia de Melanchthon. Para ser mais preciso, Melanchthon defendeu a ideia de que “Deus move as mentes a quererem, mas nós devemos concordar” (RIETH, Ricardo Willy, O pensamento teológico de Filipe Melanchthon (1497-1560), artigo da revista Estudos Teológicos, volume 37, número 3, 1997, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia da IECLB, p. 233). Nos 27 anos de convivência entre eles, Lutero só discordou mesmo de Melanchthon em relação à sua posição sobre a Santa Ceia – a posição deste era igual à de Martin Bucer, que foi provavelmente um mentor de Calvino. Enfim, como afirma o teólogo luterano Ricardo Willy, hoje, “graças à maior pesquisa sobre a teologia do Lutero maduro, passou-se a enfatizar mais a proximidade entre sua teologia e a de Melanchthon” (Ibid., p. 235).
Portanto, quando Melanchton defendia posições diametralmente opostas à essência do calvinismo ainda no início do calvinismo, não é verdade que ele estava se afastando de seu líder e mentor, mas ele estava, bem ao contrário, honrando-o, seguindo-o, corroborando-o em detrimento do posicionamento radical de Calvino. Aliás, o próprio Melanchthon ressaltou que ele não estava mudando nada, mas apenas sendo fiel à mudança do pensamento de Lutero ao final da vida. Em um de seus escritos, ele enfatizou que o pensamento que estava esposando sobre “a predestinação”, sobre “o assentimento da vontade”, sobre a “necessidade de nossa obediência” e sobre “o pecado mortal” que os calvinistas discordavam era o mesmo de Lutero no final de sua vida (BRANDT, Kaspar, The Life of Arminius, p. 10).
Resumindo, o pensamento final de Lutero sobre essa questão foi o seguinte:
1) Ele cria na depravação total, mas vendo, ao final, o livre-arbítrio mais como Agostinho o via do que como Calvino o via (sobre as diferenças de compreensão acerca de livre-arbítrio entre Agostinho e Calvino, ver meu artigo anterior).
2) Ele não cria em predestinação dupla.
3) Ele cria em expiação ilimitada.
4) Ele negava que Deus compele ou força as pessoas a se converterem, chegando a inserir, pouco antes de morrer, na edição de 1546 de sua obra De servo arbitrio, uma nota sobre a questão da necessidade e da contigência enfatizando isso: “Eu desejaria de fato que uma outra melhor palavra tivesse sido introduzida na nossa discussão do que a usual ‘necessidade’, que não é aplicada corretamente tanto para a vontade divina quanto para a vontade humana. Ela tem um significado muito duro e incongruente para essa finalidade, pois sugere uma espécie de compulsão, e o oposto de boa vontade, embora o tema em discussão não implica tal coisa. Pois nem o divino nem a vontade humana fazem o que fazem, seja bem ou mal, sob qualquer compulsão, mas por puro prazer ou desejo, como acontece com a verdadeira liberdade. (…) A inteligência do leitor deve, portanto, suprir o que a palavra ‘necessidade’ não expressa…”.
Há até quem ponha em dúvida se Lutero autorizou a inserção desta nota mesmo, já que essa edição saiu depois de sua morte. Só que a nota foi inserida para publicação antes de sua morte e pelo seu fiel editor Georg Rörer, que havia editado as obras de Lutero nas últimas décadas de sua vida, tendo se tornado, inclusive, seu editor único e oficial desde 1537 e sido designado o responsável por imprimir, pela primeira vez, suas Obras Completas. Até uma versão rival dessa obra em Jena incluiu a nota acrescida por Lutero (KOLB, Robert, Bound Choice, Election, and Wittenberg Theological Method: From Martin Luther to the Formula of Concord, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2005, pp. 26 e 27). Ademais, esse questionamento só surgiu muito tempo depois, quando da controvérsia calvinista. Além disso, no próprio texto original do De servo arbitrio, Lutero, que chegou a apresentar a vontade humana nesse livro apenas como um cavalo domado ou por Deus ou por Satanás, contraditoriamente chegou a negar alguma compulsão divina em um de seus trechos (II.8): “Quando Deus trabalha em nós, a vontade é mudada sob a doce influência do Espírito de Deus. (…) Ela deseja e age, não por compulsão, mas por seu próprio desejo e espontânea inclinação”. Ou seja, Deus influencia, ele não força ou compele.
Finalmente, o Lutero maduro acreditava que a graça que opera sobre aquele que aceita a Cristo é tão eficaz para a salvação quanto aquela que opera sobre o não cristão, com a diferença de que aquele não resiste a ela, sem a qual não poderia ser salvo de forma alguma, enquanto este será condenado tão somente porque resiste a ela. Dizia ele que o cristão que não resiste tem, sim, a “mãozinha” de Deus que o leva a isso, mas isso não significa compulsão, porque precisa haver uma concordância real do ser humano. Contraditoriamente à sua crença de que a graça pode ser resistida, Lutero sustentava ainda a doutrina da predestinação sem base na presciência, afirmando, porém, de forma radical, que nenhum crente deveria se importar com a doutrina da predestinação, porque se tratava de uma doutrina impossível para a mente humana entender:
“A disputa sobre a predestinação deve ser totalmente evitada. Staupitz me disse: ‘Se você quiser disputar sobre a predestinação, comece com as chagas de Cristo, e ela cessará. Mas se você continuar a debater sobre isso, você vai perder Cristo, a Palavra, os sacramentos e tudo mais’. Eu esqueço tudo sobre Cristo e Deus, quando eu venhopara estes pensamentos, e realmente chego ao ponto de imaginar que Deus é um patife. Devemos ficar na Palavra, no qual Deus se revela a nós e a salvação é oferecida, se acreditarmos nEle. Mas no pensamento sobre a predestinação, esquecemos Deus e, em seguida, o laudate (louvor) pára e o blasphemate (blasfêmia) começa. No entanto, em Cristo estão escondidos todos os tesouros (Colossenses 2.3); fora dEle, todos estão trancados. Portanto, devemos simplesmente nos recusar a discutir sobre eleição” (PLASS, Ewald, “What Luther Says”, volume I, p. 456). Lutero ainda acrescentaria, em suas Palestras em Gênesis, que ele não queria saber – e queria que seus alunos não se importassem – “nem um pouco sobre esse assunto”.
5) Como Agostinho, e diferentemente de Calvino (ver meu segundo artigo desta série), Lutero cria que um crente genuíno pode cair da graça e se perder eternamente, e que os crentes que não caíam da graça eram os eleitos. Ou seja, para Lutero, assim como para Agostinho, nem todo mundo que nasceu de novo está entre os eleitos de Deus. Logo, é possível que as pessoas regeneradas apostatem da fé. Era a forma que Lutero encontrou, tudo indica que copiada de Agostinho (como agostiniano de origem que era), para evitar o antinomismo e não “brigar” com os textos bíblicos que ensinavam a possibilidade concreta de um crente genuíno, regenerado, cair da graça.
Em relação ao que crêem hoje os luteranos oficialmente, a única diferença em relação ao pensamento de Lutero é que alguns luteranos defendem que a eleição é condicional, enquanto outros que é incondicional; e que uns crêem em predestinação com base na presciência, enquanto outros crêem nela sem base na presciência, mas sem negar o livre-arbítrio e a possibilidade de um crente genuíno, regenerado, cair da graça.
Enfim, o luteranismo, na questão da mecânica da Salvação, não é nem calvinista nem arminiano, porém não há como negar que, diferentemente do que os calvinistas popularizam por aí, ele é mais próximo do espírito do arminianismo clássico do que do espírito do calvinismo no que diz respeito ao entendimento sobre a mecânica da Salvação. Por quê? Porque nega a expiação limitada, nega a predestinação dupla, nega que um crente genuíno não pode cair da graça e nega que a graça manifestada sobre aquele que se torna cristão é menos eficaz do que aquela que é resistida por aquele que perece.
Luteranismo não é calvinismo. Luteranismo também não é arminianismo. Luteranismo é outra via, como os irmãos luteranos sempre enfatizam quando o assunto é a mecânica da Salvação. Porém, não há como negar que as dessemelhanças são maiores entre calvinistas e luteranos do que entre arminianos clássicos e luteranos nessas questões, embora a lenda diga o contrário. E uma coisa é a lenda, outra são os fatos.
No próximo artigo, tratarei do Sínodo de Dort e de outras objeções levantadas pelo irmão Franklin.
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P.S: O irmão Franklin cobrou recentemente fontes para minha declaração sobre as inconsistências de Bradwardine, que fiz no meu primeiro artigo desta série. Vamos lá: Russel J. Dykstra, na terceira e última parte de sua série de artigos intitulada Thomas Bradwardine: Forgotten Medieval Augustinian, publicada no periódico Protestant Reformed Theological Journal, edição de novembro de 2001, volume 35, número 1, uma publicação das Igrejas Reformadas Protestantes na América (PRCA) (veja AQUI); e o historiador e teólogo holandês Heiko Augustinus Oberman (1930-2001), em sua obra Archbishop Bradwardine: A Fourtheenth Century Augustinian – A Study of His Theology in its Historical Context, publicação da Medieval Academy of America e da Oxford Press, 1959 (pode ser acessada AQUI).
Diz Dykstra que Bradwardine tinha, por exemplo, “uma incapacidade de reconhecer as graves consequências do pecado original”. Ele “não tinha uma visão do pecado como uma dívida profunda e um afastamento de Deus”. Oberman diz que “Bradwardine enfatizava muito pouco a gravidade do pecado”.
Dykstra afirma também que embora Bradwardine afirmasse que “o homem é justificado pela fé sem precedência de obras”, isso não queria dizer que ele defendia o mesmo que os reformadores do século 16, porque ele afirmava também, como informa igualmente Oberman em sua referida obra (p. 182), citada por Dykstra, que “as boas obras são necessárias para a conclusão da justificação e da remissão”, que “as obras são parte da satisfação pelo pecado”. Ele dizia que havia “a remissão da culpa do pecado” e “a remoção do castigo do pecado”, e que a primeira ocorria “através do arrependimento”, e a segunda, “pelas obras” do crente. Em suma, Bradwardine “não foi capaz de eliminar todos os vestígios dos méritos de sua teologia, como Lutero e os reformadores fariam cerca de 200 anos mais tarde”, frisa Dykstra.
Dykstra, ao final, lembra ainda que “Bradwardine defende a penitência e as obras de penitência como satisfação da pena temporal pelos pecados da Igreja”, e que Bradwardine afirmava inclusive que “as punições temporais podem ser removidas do presente e do futuro pelas indulgências que são extraídas dos supérfluos bens das boas obras da Igreja”.
Como conclui Dykstra, “os reformadores teriam de ir muito mais longe do que Bradwardine”.
Extraído do site cpadnews.com.br em 24/06/2015