Minhas observações às objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira a meu artigo na revista Obreiro (Parte III)
Caros, depois de uma quarta e uma quinta de feriado agitadas em minha vida resolvendo problemas pessoais, finalmente segue outra parte de minhas observações acerca das objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira ao meu artigo Em Defesa do Arminianismo”, publicado na revista Obreiro Aprovado (CPAD), edição 68 (jan-mar/2015). Antes, porém, de apresentar minhas últimas observações, gostaria de trazer algumas breves reflexões sobre alguns comentários que andei lendo na internet de alguns irmãos em Cristo, assembleianos ou de outras denominações, que têm acompanhado essa série de artigos.
Em primeiro lugar, isso aqui não se trata de uma disputa para ver quem é mais inteligente. Tremenda tolice! Irmão Franklin não precisa disso, nem eu. E o fato de eu discordar de algumas de suas objeções ao meu artigo não muda nada de minha impressão positiva sobre a qualidade do seu trabalho. Aliás, das objeções que me fez, três pelo menos serviram para retificar um excesso meu e clarificar dois pontos em que deixei margem para ser mal compreendido. Ou seja, no final das contas, suas objeções me deram uma excelente oportunidade de clarificar e aperfeiçoar ainda mais o que havia sido dito.
Em segundo lugar, eu não estou escrevendo essa série de artigos como se estivesse querendo converter os calvinistas do Brasil em arminianos. Pelo amor do nosso Senhor! Não tenho a mínima pretensão disso. Estou apenas respondendo a objeções que me foram levantadas publicamente na internet e das quais discordo 100% na maioria dos casos. Se fui objetado nominal e publicamente, e discordo das objeções, nada mais natural do que tratar publicamente delas, e justamente pelo canal onde foram levantadas essas objeções: a internet.
Em terceiro lugar, não fui eu que atravessei a rua para “cutucar” ninguém. Das coisas que eu li nessas discussões de internet, essa foi a mais ridícula de todas.Vejam bem: eu escrevi em uma revista assembleiana, voltada para o público assembleiano, um artigo dirigido aos assembleianos, onde, inclusive, não mencionei ninguém de fora do arraial assembleiano, aí um irmão de outra denominação manifesta publicamente objeções ao meu artigo e sou eu que “cutuquei” alguém? Que lógica é essa?
Agora, eu não deixo de achar curioso que calvinistas de outras denominações estejam super atentos e interessados nesse debate sobre calvinismo e arminianismo dentro da Assembleia de Deus. É realmente curioso (Não que essa seja necessariamente a motivação do irmão Franklin, não afirmo isso, mas pelo menos de alguns). Parece que alguns irmãos calvinistas estão interessados em uma “calvinização” de outras denominações.
Bem, por outro lado, como disse no meu primeiro artigo desta série, é bom saber que irmãos de outras denominações lêem os periódicos assembleianos e, mesmo que involuntariamente, os divulguem.
Em quarto lugar, agradeço pelo carinho e pelas mensagens de apreço que tenho recebido por aqui, por email, na rua e pelo WhatsApp de amados irmãos do Brasil afora que estão acompanhando minha série de artigos. Motivado pelos pedidos de alguns irmãos, talvez eu transforme o conteúdo dessa série de artigos, incluindo entre eles o da revista “Obreiro Aprovado”, em um esboço para um livro sobre o tema arminianismo, onde, claro, tudo estaria muito mais enriquecido do que tudo o que escrevi em “Obreiro Aprovado” e por aqui. Quem sabe? Há outro projeto na frente, mas estou seriamente pensando no assunto.
Dito isso, segue mais uma observação.
5) Ainda sobre meu artigo, irmão Franklin afirma: “Um detalhe que chama a atenção é que ainda que Agostinho seja citado, sua compreensão sobre a predestinação e a graça não é oferecida no texto”.
Não entendi o que o irmão Franklin quis sugerir com isso. Uma apresentação da compreensão de Agostinho sobre a predestinação e a graça não foi feita, mas deixei claro em meu artigo (segue agora o que escrevi lá:) que “o primeiro a propor as teses que seriam chamadas, em um futuro distante, de ‘calvinismo’ foi, como vimos, Agostinho, e isso só no quinto século. Nenhum outro Pai da Igreja, antes ou depois de Agostinho, esposou o ‘calvinismo’”. Acho que ficou claro que o posicionamento dele era essencialmente o mesmo de Calvino, razão pela qual não me detive em apresentá-lo. Ademais, o tema principal do artigo não era Agostinho. E se eu abrisse um parêntese para destrinchar a compreensão do bispo de Hipona, o artigo, que já tinha 17 páginas, estouraria todos os limites de caracteres estabelecidos pela revista, razão pela qual tive que jogar fora muita coisa que havia escrito no artigo bruto.
Mas, como o irmão demonstra interesse sobre uma exposição minha acerca da compreensão de Agostinho sobre a graça, segue alguma coisa a seguir.
Antes, para situar bem historicamente o pensamento de Agostinho sobre a questão, é importante lembrar que, até o debate com Pelágio, ninguém na história do cristianismo havia tido essa compreensão que Agostinho apresentara, como, aliás, reconhece Calvino (Institutas, Livro II, Capítulo II, 9), como reconhece Loraine Boettner (que, aliás, no capítulo 28 de sua conceituada obra The Reformed Doctrine of Predestination, também reconhece que, depois de Agostinho e antes de Lutero, só Gottschalk e Wycliffe parecem ter esposado com certeza o mesmo pensamento), como reconhece Norman Sellers (SELLERS, Election and Perseverance, Schoettle Publishing Co., 1987, p. 3) etc.
Aliás, essa compreensão de Agostinho foi, além de totalmente independente de tudo que se tinha dito até àquela época sobre o assunto, também tardia. O Agostinho jovem, como todos os cristãos de sua época, não pensava como o Agostinho do debate com Pelágio em diante. Se não, vejamos.
O Agostinho jovem, em sua obra Sobre o Espírito e a Letra, escreveu que o “livre-arbítrio [é] naturalmente implantado [por Deus] dentro do ser humano” (capítulo 4), que Deus predestina com base na sua presciência (capítulo 7) e que “a justiça do homem deve ser atribuída à operação de Deus, apesar de não ter lugar sem a vontade do homem” (capítulo 7).
Na mesma obra, Agostinho ainda pergunta: “Será que nós tornamos nulo o livre-arbítrio pela graça? Deus me livre! Não, antes estabelecemos o livre-arbítrio” (capítulo 52). E mais: “O apóstolo diz: ‘Não há poder que não proceda de Deus’. […] Em nenhum lugar, no entanto, encontramos na Sagrada Escritura uma afirmação do tipo ‘Não há vontade que não proceda de Deus’. E com razão isso não está escrito, porque não é verdade. Caso contrário, Deus seria o autor do pecado” (capítulo 54).
Por fim, no capítulo 58 da referida obra, depois de afirmar que o livre-arbítrio é dado por Deus ao ser humano, Agostinho arremata: “Deus, sem dúvida alguma, deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade, mas não lhes tirando o livre-arbítrio, pelo bom ou mau uso do qual é que poderão ser justamente julgados” (capítulo 58).
Só foi mais à frente, em meio à controvérsia com o herege Pelágio, que Agostinho, em seu ímpeto para combater a heresia pelagiana, reinterpretou e relativizou as passagens bíblicas que enfatizam a responsabilidade humana e reinterpretou e enfatizou todas as passagens que falam da ação divina na Salvação.
Em sua obra A Predestinação dos Santos, seção III, capítulo 7, Agostinho conta que mudou de ideia porque deixou de crer que a fé antecede a graça de Deus – isto é, ele deixou de crer que Deus elegia aqueles que, pela Sua presciência, Ele saberia que teriam fé para crerpor si mesmos. Ou seja, tecnicamente, o Agostinho antes da disputa com Pelágio era o que podemos chamar hoje de semipelagiano.
Agostinho mudou de ideia porque percebeu rapidamente que essa fé antecedente daria força ao pensamento de Pelágio. Logo, para não cair na sutileza do pensamento de Pelágio, Agostinho radicalizou afirmando que a escolha teria que ser a causa da fé e não a fé a causa da escolha, e que a fé como dom de Deus não significava apenas a capacidade dada ao homem para crer, mas Deus fazendo o homem crer para sua salvação.
Mesmo assim, a soteriologia de Agostinho não era 100% igual a de Calvino. Era praticamente a mesma coisa, eram essencialmente iguais, mas havia detalhes sutis que os diferenciavam. Se não, vejamos.
Em primeiro lugar, diferentemente de Calvino, Agostinho continuava crendo em livre-arbítrio, mas sem saber como essa verdade se coadunava com a sua forma de ver a predestinação – para ele, isso era um mistério, como ele confessa, por exemplo, no final do parágrafo 11 do capítulo VI de sua obra Da Predestinação dos Santos: “Todas as veredas do Senhor são misericórdia e fidelidade [Sl 24.10], mas Seus caminhos são insondáveis [Rm 11.33]. Portanto, a misericórdia pela qual liberta gratuitamente e a verdade pela qual julga com justiça são igualmente insondáveis”.
Agostinho, inclusive, em sua obra Contra Juliano, bispo de Eclano (386-455), negou-se a afirmar que todos os que crêem na existência do livre-arbítrio são pelagianos: “Não é verdade, como você diz, que ‘se alguém diz que há livre-arbítrio no homem é […] pelagiano ou celestiano’. Um pelagiano ou celestiano é quem não atribui a graça de Deus à liberdade à qual temos sido chamados” (AGOSTINHO, Contra Juliano, livro III, capítulo 2).
Mais à frente, nessa mesma obra Contra Juliano, no Livro IV, capítulo 47, o bispo de Hipona dirá, indignado, ao seu opositor Juliano:
“Você afirma que em outro livro eu disse: ‘O livre-arbítrio é negado se defende-se a graça e a graça é negada se defende-se o livre-arbítrio’. Você me calunia! Isso não é o que eu disse, embora, por causa da dificuldade dessa questão, possa parecer e ser pensado que eu o tenha dito. Eu não me oponho a dar as minhas palavras exatas, para que os leitores possam ver como você deturpa os meus escritos e como você tira proveito dos incompetentes ou ignorantes que confundem sua loquacidade com argumento. Na última parte do meu primeiro livro a São Piniano, intitulado ‘De gratia contra Pelagium’, eu disse: ‘O problema do livre-arbítrio envolve distinções tão difíceis de fazer que, quando o livre arbítrio é defendido, a graça de Deus parece estar sendo negada; e quando a graça de Deus é afirmada, o livre-arbítrio parece ser negado’. Você, um homem honesto e verdadeiro, deixou de fora algumas das minhas palavras e deu a elas a sua própria construção. Eu disse que é difícil de entender esse problema. Eu não disse que é impossível compreendê-lo. Muito menos eu disse, como falsamente registras, que ‘O livre-arbítrio é negado se defende-se a graça e a graça é negada se defende-se o livre-arbítrio’. Cita minhas palavras corretamente e sua calúnia desaparece. […] Eu não disse que a graça é negada, mas que parece que a graça é negada. Eu não disse que o livre-arbítrio é negado, mas que pensa-se que o livre-arbítrio é negado”.
Não foi à toa que o teólogo, matemático e astrônomo católico holandês Albert Pighius (1490-1542), no ano de sua morte, em sua obra Sobre o Livre-arbítrio do Homem e a Graça Livre de Deus, apesar de ter errado no seu debate com Calvino e Lutero quanto à compreensão do pecado original, pelo menos acertou parcialmente ao ver uma diferença entre Agostinho e Calvino na questão do livre-arbítrio, o que forçou Calvino a fazer uma retificação sobre o assunto nas suas Institutas na edição de 1559, em relação ao que saíra originalmente na edição de 1539. Eu diria, para resumir, que Calvino deu o passe final que Agostinho faltou dar, pois Calvino negou o conceito de livre-arbítrio, que Agostinho ainda segurava relutantemente. Calvino respondeu ao escrito de Pighius dizendo que não usaria esse termo para se referir à liberdade humana por achá-lo muito impreciso, por chocar-se com o que ele entendia da liberdade humana a partir de sua crença na predestinação dupla, também crida por Agostinho. Agostinho, por sua vez, tentou conciliar, sem sucesso, uma coisa com a outra.
Recentemente, alguns calvinistas tentaram resolver essa diferença sutil entre Calvino e Agostinho, afirmando que a diferença era só de nomenclatura, que Agostinho não usava o termo “livre-arbítrio” no mesmo sentido que era evitado por Calvino, só que essa ginástica de interpretação não convence. É óbvio que Agostinho usa o termo no mesmo sentido usado por ele mesmo antes da controvérsia pelagiana e, muito antes dele, pelos Pais da Igreja, embora encontre dificuldades em sustentar seu significado satisfatoriamente após passar a esposar a crença na predestinação incondicional e dupla. Para ele, como já vimos, era muito difícil manter uma coisa apesar da outra; era algo difícil de se coadunar racionalmente, mas, mesmo assim, sustentava ele ser uma realidade possível.
Enfim, existe uma diferença – pequena, mas existe – entre a compreensão de livre-arbítrio em Agostinho e em Calvino, e que consiste justamente na existência de um pequeno resquício do Agostinho jovem dentro do Agostinho velho, que, na soteriologia de Calvino, foi para o espaço.
Para quem quiser se aprofundar no assunto, há textos interessantes disponíveis na internet, como uma dissertação de mestrado em Ciência da Religião de um ex-aluno da Universidade Mackenzie (vejam AQUI) e, claro, o célebre artigo de Anthony N. S. Lane, professor de Teologia Histórica da Escola de Teologia de Londres, intitulado Calvino acreditava em Livre Arbítrio? (Vejam AQUI), onde ele lembra que “nas Institutas de 1539, Calvino chegou perigosamente perto de ensinar a destruição da vontade”, e que “o desafio de Pighius nesse ponto, tão veementemente rejeitado por Calvino, fez com que este melhorasse seu ensino [sobre esse ponto] pela primeira vez em sua resposta a Pighius, mais tarde na edição de 1559 das Institutas e em outras obras. Calvino estava em débito com Pighius nessa mudança mais tarde dele para esclarecer a sua posição e remover suas ambiguidades”.
Mesmo assim, apesar dessa mudança de Calvino, o professor Lane conclui ao final do seu artigo: “Será que Calvin acreditava em livre-arbítrio? Mesmo o próprio Calvino não podia dar uma resposta clara e inequívoca a esta pergunta. Em diferentes estágios da história do homem, diferentes graus de liberdade são concedidos à vontade. O ensino de Calvino sobre o livre-arbítrio é muito próximo ao de Agostinho. Talvez a maior diferença está na atitude. Agostinho, ao ensinar claramente o cativeiro da vontade e a soberania da graça, teve grande cuidado para preservar o livre-arbítrio do homem. Calvino foi muito mais polêmico em sua afirmação de impotência humana e estava relutante em falar de livre-arbítrio. O que Agostinho tinha cuidadosamente salvaguardado, Calvin, a contragosto, admitiu”.
Em segundo lugar, diferentemente de Calvino, Agostinho cria na possibilidade de um crente genuíno se perder. Explico: dizia ele que só os cristãos eleitos – que o seriam de forma incondicional – perseverariam até o fim e que havia cristãos genuínos que se perderiam, porque não estavam entre os eleitos.
Eis mais uma das diferenças sutis entre Calvino e Agostinho que pouca gente percebe – inclusive, o próprio Calvino, que cita Agostinho mais de 400 vezes nas Institutas, não percebeu isso, caso contrário não teria dito em sua obra A Treatise on the Eternal Predestination of God (nove anos depois da questão levantada por Pighius sobre o livre-arbítrio), que “Agostinho está tão inteiramente comigo que se eu quisesse escrever uma confissão de minha fé, eu poderia fazê-lo com toda a plenitude e satisfação para mim mesmo a partir de seus escritos”.
Por essas e outras, há quem acredite que Calvino conhecia muitos escritos de Agostinho apenas pelo popular resumo de todas as obras do bispo de Hipona escrito na Idade Média por Pedro Lombardo, e muito corrente ainda em seus dias. Se é verdade, não sei. Só sei que, diferentemente de Tomás de Aquino (ver meu artigo anterior), Agostinho afirmava quenenhum dos não-eleitos se salvará (Aquino, como vimos, dizia que alguns deles poderiam se salvar, enquanto todos os predestinados se salvariam), e isso é diferente do que ensinava Calvino também. Essa era a forma de Agostinho driblar aqueles textos bíblicos que falavam claramente da possibilidade de um crente genuíno perder a salvação.
Escreve Agostinho no capítulo 9 de sua obra Sobre a Repreensão e a Graça”, datada de 427 d.C., apenas três anos antes de sua morte (os grifos são meus):
“Se, porém, já sendo regenerado e justificado, ele [o cristão] relapsa de sua própria vontade para uma vida maligna, asseguradamente ele não pode dizer ‘Eu não recebi [a graça de Deus]’, porque de sua própria livre escolha para malignidade ele perdeu a graça de Deus que havia recebido”.
E no mesmo capítulo, mais à frente, ele ainda diz:
“Mas aqueles que não perseveram, e que cairão da fé e da conduta cristãs no fim de suas vidas […] não há dúvida de que não podem ser contados no número destes [os eleitos], mesmo naquele tempo em que estão vivendo bem e piamente. Porque eles não são feitos para diferir da massa de perdição pelo pré-conhecimento e predestinação de Deus, e, portanto, não são chamados de acordo com o propósito de Deus, e então não são eleitos; mas são chamados entre aqueles a quem é dito ‘muitos são chamados’, não entre aqueles a quem é dito ‘mas poucos escolhidos’. E ainda assim, quem poderia negar que eles são eleitos, desde que creem e são batizados, e vivem de acordo com Deus? Manifestamente, eles são chamados eleitos por aqueles que são ignorantes do que eles de fato são, mas não por Aquele [Deus] que conhece que eles não têm a perseverança que leva o eleito para a vida abençoada, por Aquele que sabe que eles assim permaneceriam [por um tempo] e que depois iriam cair”.
Mas, Agostinho, por que Deus não lhes dá o dom da perseverança então, se você disse antes que eles foram justificados e regenerados de verdade? Eis a resposta de Agostinho, no capítulo 17 da mesma obra:
“Se me tivessem perguntado por que Deus não tem dado perseverança para aqueles a quem Ele deu este amor pelo qual puderam viver cristãmente, respondo que não sei. Pois eu não falo arrogantemente, mas com reconhecimento de minha pequena medida. […] Até onde Ele condescende em manifestar Seu julgamento para nós, vamos agradecer; mas no ponto em que Ele pensa ser melhor ocultá-lo, não vamos murmurar contra Seu conselho, mas crer que isto é também o mais saudável para nós”.
E logo em seguida, no capítulo 18, Agostinho, para não gerar confusão em seus leitores, faz questão de asseverar mais uma vez que esses de quem ele está falando eram crentes salvos mesmo, e ele ainda reconhece que o que está ensinando parece sem lógica (os grifos são meus):
“É de fato de se admirar, e de se admirar grandemente, que alguns de Seus filhos – os quais Ele verdadeiramente regenerou em Cristo, aos quais Ele deu fé, esperança e amor – Deus não lhes dê perseverança também”.
Um detalhe ainda interessante é que Agostinho cria também que não era possível um cristão genuíno saber em vida se ele era um predestinado. Alguns (não todos) dos calvinistas de segunda onda – os chamados “puritanos” – parece que tinham um pensamento parecido. Escreve Agostinho: “Que tais coisas como essas sejam faladas a santos que perseverarão, como se eles fossem contados incertos se perseverarão, é razão para que eles não devam de outra forma ouvir tais coisas, uma vez que é bom para eles ‘não serem soberbos mas temerem’ (Rm 11.20). Pois quem, na multidão de crentes, pode presumir que, enquanto ele está vivendo neste estado mortal, ele está no número dos predestinados?” (AGOSTINHO, Sobre Repreensão e Graça, capítulo 40).
Ou seja, para Agostinho, nenhum crente realmente salvo deve presumir que perseverará até o fim. Só Deus sabe aqueles que Ele predestinou que irão até o fim. E Deus faz com que eles não saibam justamente para que não relaxem, o que é parte da garantia de que perseverarão. Escreve Agostinho sobre isso:
“Pois acerca da utilidade deste segredo [sobre quem perseverará até o fim, isto é, quem são os predestinados], Deus o faz assim para que […] todos, mesmo que estejam bem, devam temer, pois não se sabe quem conseguirá. Acerca da utilidade deste segredo, deve ser crido que alguns dos filhos da perdição, que não receberam o dom da perseverança para o fim, começam a viver em fé com obras de amor, e vivem por algum tempo fiel e justamente, e mais tarde caem, e não são levados dessa vida antes que isso aconteça a eles. […] [Dessa forma,] os homens terão este bem saudável temor, pelo qual o pecado da presunção é afastado, apenas até que eles possam alcançar a graça de Cristo pela qual vivem piamente, e depois o tempo de se assegurarem que jamais se afastarão dEle” (AGOSTINHO, Sobre Repreensão e Graça, capítulo 40).
Agostinho sintetiza tudo ao final: “Eles recebem a graça de Deus, mas apenas para uma estação, e não perseveram; eles deserdam e ficam deserdados. Eles, pelo seu próprio livre-arbítrio, como não têm recebido o dom da perseverança, são arrancados pelo justo e oculto julgamento de Deus” (AGOSTINHO, Sobre Repreensão e Graça, capítulo 42).
Por fim, quero acrescentar que, além de Próspero de Aquitânia, o maior discípulo e propagador da soteriologia de Agostinho quando este ainda estava em vida e mesmo após a morte dele, ter mudado depois sua posição em relação a Agostinho em alguns pontos importantes (como mencionei no primeiro artigo desta série), os discípulos radicais da soteriologia agostiniana foram repreendidos em sínodos ainda no quinto século. O presbítero Lúcido, líder de um grupo deles, teve seus ensinos condenados e sua retratação assinada nos Sínodos de Arles e Lião, ambos realizados no ano 473, pouco mais de 40 anos após a morte de Agostinho. A retratação elaborada pelo Sínodo e assinada por Lúcido dizia, por exemplo, o seguinte:
“A vossa repreensão é salvação pública, e vossa sentença, medicina. Portanto, também eu considero como sumo remédio desculpar-me, acusando os erros passados, e purificar-me com salutar confissão. Por isso, segundo as recentes decisões do louvável Sínodo, condeno convosco a sentença que diz que o esforço da obediência humana não é para ser conjugado à graça divina; que diz que, depois da queda do primeiro homem, foi extinto totalmente o arbítrio da vontade; que diz que não foi pela salvação de todos que Cristo, nosso Senhor e Salvador, assumiu a morte; que diz que a presciência de Deus impele com violência o homem à morte, ou seja, que aqueles que se perdem, se perdem por vontade de Deus; […] que diz que uns são destinados à morte, outros predestinados à vida. […] Condeno todas essas coisas como ímpias e sacrílegas. Afirmo, porém, a graça de Deus deste modo, que sempre mantenho unido o esforço do homem e o impulso da graça, e declaro que a liberdade da vontade humana não foi extinta, mas atenuada e enfraquecida, e que aquele que se salvou está no perigo e o que se perdeu teria podido salvar-se”.
“Também afirmo que Cristo, nosso Deus e Salvador, no que concerne às riquezas da Sua bondade, ofereceu o preço da morte por todos e não quer que ninguém se perca, Ele que é o Salvador de todos os homens, de modo particular dos que crêem, rico para com todos os que o invocam. E, dado que a respeito de realidade tão importante se deve dar satisfação à consciência, recordo-me de ter dito anteriormente que Cristo viera somente para aqueles dos quais tinha presciência de que acreditariam. Agora, porém, com base na autoridade dos sagrados testemunhos que se encontram em abundância nos textos das divinas Escrituras, trazidos à luz pela reflexão da doutrina dos antigos, de bom grado professo que Cristo veio também por aqueles que se perderam, pois foi contra a Sua vontade – de Cristo – que se perderam. De fato, não é lícito dizer que as riquezas da imensa bondade e os benefícios divinos sejam restritos somente aos que, pelo que se vê, são salvos. Pois, se dizemos que Cristo trouxe os remédios somente para aqueles que foram remidos, parece que absolvemos os não remidos, dos quais consta que devem ser punidos por desprezarem a redenção”.
“Afirmo ainda que, que através da ordem e sequência dos séculos, na esperança da vinda de Cristo, alguns se salvaram pela lei da graça, outros pela lei de Moisés, outros pela lei da natureza que Deus escreveu no coração de todos; mas que nenhum deles, desde o início do mundo, foi absolvido do laço do pecado – original – senão pela intercessão do sagrado sangue.”
“Professo ainda que para pecados capitais são preparados fogos eternos e chamas infernais, já que merecidamente, para as culpas humanas que são sustentadas até o fim, se segue a sentença divina, na qual incorrem com justiça aqueles que não creram de todo o coração nestas realidades”.
“Orai por mim, santos senhores e padres apostólicos! Eu, presbítero Lúcido, subscrevi de minha própria mão esta carta, e confirmo o que nela está escrito, e condeno o que nela é condenado” (DENZINGER, Heinrich; HÜNERMAN, Peter; Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Moral, Loyola e Paulinas [coedição], 2007, pp. 123 e 124).
Pois bem, nesses sínodos, são condenados os ensinos da expiação limitada, da inexistência de livre-arbítrio, do monergismo, da graça irresistível, da predestinação incondicional e dupla, e da impossibilidade de um crente salvo cair da graça. Lembrando ainda que o Concílio de Orange, de 529, por ocasião da condenação ao semipelagianismo, condenou simultaneamente a predestinação dupla agostiniana.
Aliás, por falar de semipelagianismo, só agora, depois de uma resposta do irmão Franklin Ferreira a um artigo do irmão Zwinglius Rodrigues, consegui entender o que ele quis dizer quando afirmou que eu havia apenas mencionado, mas não definido (em meu artigo emObreiro Aprovado) o que era o semiagostinianismo ou semipelagianismo. Na verdade, temos visões históricas diferentes sobre esse assunto, por isso houve ruído de comunicação no meu entendimento sobre sua observação acerca desse tópico do meu artigo.
Explico: sem mencionar o nome de João Cassiano, o Sínodo de Orange condenou o ensino atribuído a ele, mas que não era exatamente o que ele ensinava. João Cassiano não ensinava exatamente aquilo que lhe foi atribuído e recebeu a pecha de “semipelagianismo”. Como disse em meu artigo em “Obreiro Aprovado”, João Cassiano e seus seguidores, que posteriormente seriam chamados de semipelagianos – mas que eram admiradores de Agostinho e por isso eram conhecidos originalmente como semiagostinianos – ensinavam que Deus poderia dar início à fé em alguns casos, mas em outros era o próprio homem que dava o initium fidei, o primeiro passo para a Salvação. Ou seja, Cassiano não ensinava terminantemente que era o homem que dava o início; ele não dizia que Deus nunca dava o início, mas afirmava que algumas vezes Deus dava o início e outras vezes, não (CASSIANO, Conferência XIII, capítulos 10, 11 e 12). O que o Sínodo de Orange condenou terminantemente foi a ideia de que é o homem que dá o início.
Inclusive, quando Próspero de Aquitânia, após a morte de Agostinho, escreveu contra João Cassiano acusando-o de heresia e apelando às autoridades eclesiásticas contra ele, “nenhuma medida foi tomada contra Cassiano”, porque as autoridades eclesiásticas da época entendiam simplesmente que “não havia razão para tal” (In ESPÍRITO SANTO, Arnaldo do, João Cassiano e a Regra de São Bento, artigo da revista Humanitas, volume L, 1998, Universidade de Lisboa, p. 303).
A gente só sabe disso hoje porque os escritos de Cassiano sobre o assunto existem até hoje. Se não fosse isso, teria ficado definitivamente para a posteridade que Cassiano ensinava que Deus nunca dava início, só o homem – e é o que se popularizou, mas não é verdade. Por isso sou daqueles que, em vez de fazer diferença entre os termos semiagostinianismo e semipelagianismo, preferem usar simultaneamente ambos os termos para se referir ao cassianismo, e deles prefiro mais o termo semipelagianismo, tão somente porque, como explico no meu artigo em Obreiro Aprovado, é o termo mais popular para se referir a esse equívoco doutrinário.
Lembremos que o termo “semipelagianismo” só foi criado no século 17 (GIRAUD, Cesare,Num só Corpo – Tratado Mistagógico sobre a Eucaristia, Loyola, 2003, p. 14), mais precisamente pelo protestantismo. Até antes disso, os cassianistas eram considerados apenas cassianistas ou semiagostinianos.
Enfim, sou daqueles que, como o historiador Justo L. Gonzales, considera correto ambos os termos – semipelagianismo e semiagostinianismo – para se referir ao cassianismo, com a diferença de que Gonzales prefere mais o termo “semiagostinianismo” (GONZALEZ, Justo L.Uma História do Pensamento Cristão, volume 2, São Paulo, Cultura Cristã, 2004, p.58), e eu, por questão de popularidade do termo, prefiro mais semipelagianismo, embora concorde com o termo semiagostinianismo sem problema algum.
Um detalhe interessante é que como o Sínodo de Orange não condenou os escritos de João Cassiano, mas apenas aquele detalhe de um de seus ensinos, sua obra e nome continuaram sendo respeitados tanto no Ocidente quanto no Oriente. Se bem que a Igreja Oriental, justamente porque a decisão do Sínodo de Orange, mesmo sem mencionar Cassiano, toca claramente em um aspecto do seu ensino, não aceita até hoje a decisão daquele conclave. A visão sobre a mecânica da Salvação da Igreja Oriental é, oficialmente, até hoje, “semiagostiniana” ou “semipelagiana”, como queiram rotular. Para ficar mais claro: ela é cassianista.
Ademais, como afirma Gonzales na mesma obra, apesar de os teólogos católicos depois de Orange continuarem a respeitar a autoridade de Agostinho para vários assuntos, a maioria deles acabou, na prática, interpretando o tema da mecânica da Salvação na Bíblia à luz dos escritos de teólogos como Cassiano.
Aqui termino o quinto tópico de minhas observações. Devido ao fato de que falta ainda outras observações finais e, além disso, este artigo de hoje ficou igualmente enooorme, segue amanhã o quarto e último artigo. Eram três, mas, pela demanda dos temas, se tornaram quatro. No próximo, se Deus quiser, concluo minhas observações.
Extraído do site cpadnews.com.br/ em 06/06/2015