Hoje, darei continuidade ao tópico 4 das minhas observações sobre as objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira ao meu artigo “Em Defesa do Arminianismo”, publicado na edição 68 da revista Obreiro Aprovado (CPAD, jan/mar-2015). Vamos lá.
De todos os nomes mencionados pelo irmão Franklin para tentar sustentar que a visão agostiniana da mecânica da Salvação era uma corrente comumente aceita no período medieval, Tomás de Aquino é, para mim, um capítulo especial, um capítulo à parte. Por quê? Porque a menção do seu nome pelo irmão Franklin me dá a oportunidade de esclarecer um terrível engano que tem sido popularizado por teólogos calvinistas nos últimos anos: que o antes tão desprezado Aquinate – desprezado inclusive por Calvino – teria sido um “calvinista”.
Ora, Aquino pensava diferentemente de Agostinho e muito mais ainda de Calvino sobre a questão da mecânica da Salvação. Seu pensamento sobre esse assunto era, sim, influenciado diretamente por Agostinho, como ele mesmo assume em sua Summa Theologica; entretanto, suas conclusões, no geral, são majoritariamente diversas da de Agostinho, e mais ainda em relação ao pensamento de Calvino.
Em primeiro lugar, Aquino cria na predestinação agostiniana só para os eleitos; ele não cria na predestinação dupla, que foi defendida tanto por Agostinho quanto por Calvino. Apesar de haver passagens aparentemente dúbias de Aquino quanto a isso, de forma geral, o que Aquino chama de “reprovados” não é necessariamente a mesma coisa que predestinados à perdição, mas dizia respeito ao castigo pelos pecados daqueles que deliberadamente preferiram o caminho da perdição. Isso ficará mais claro a seguir, ao analisarmos os dois próximos pontos de divergência entre Aquino, de um lado, e Agostinho e Calvino, do outro. Se não, vejamos.
Em segundo lugar, diferentemente de Agostinho e Calvino, Aquino acreditava que havia duas espécies de salvos: os salvos predestinados e os não-predestinados. E em terceiro lugar, diferentemente de Agostinho e Calvino, Aquino cria que havia salvos que podiam perder a salvação, embora a maioria não pudesse perdê-la.
Sobre esses dois últimos pontos, escreve ele: “Esse livro [O Livro da Vida] é a inscrição dos que são ordenados à vida eterna, à qual alguém é ordenado por duas causas: ou por predestinação divina, que nunca falha, ou pela graça. Pois quem tem a graça por isso mesmo é digno da vida eterna; todavia esta ordenação, às vezes, falha, porque alguns eram ordenados, pela graça recebida, a alcançar a vida eterna e, contudo, a perderam pelo pecado mortal. Por outro lado, os ordenados pela predestinação divina a alcançar a vida eterna estão, absolutamente falando, inscritos no Livro da Vida; porque nele estão inscritos como havendo de alcançá-la em si mesma; e esses não serão nunca dele riscados. Dizemos, porém, que estão inscritos no Livro da Vida, não absoluta, mas relativamente, os ordenados a alcançar a vida eterna, não por predestinação divina, mas só pela graça. Porque nele estão inscritos como havendo de alcançar a vida eterna em sua causa e não em si mesma. E esses podem ser dele riscados” (AQUINO, Summa Theologica, I, 24, 3).
Para Aquino, os salvos predestinados o eram pela graça eficaz e os demais salvos, pela graça suficiente. Para ele, os primeiros não poderiam cair, mas os segundos poderiam eventualmente cair e se perder, sim. Para ele, as passagens na Bíblia que tratavam de um crente verdadeiro perder a salvação se referiam a esse segundo grupo, logo não haveria contradição entre as passagens bíblicas que pareciam falar de uma predestinação incondicional e as passagens bíblicas que enfatizavam não apenas uma responsabilidade humana na salvação, mas também a possibilidade de perdê-la. Essa foi a forma que Aquino encontrou para não fazer a Bíblia “brigar” com a predestinação agostiniana dos eleitos.
Para o primeiro grupo de salvos, a soteriologia de Aquino era 100% agostiniana, mas para o segundo grupo, 100% arminiana: como vimos no final do texto supracitado, embora Deus saiba, pela Sua presciência, aqueles que serão salvos no segundo grupo, permite que seus nomes sejam riscados e recolocados no Livro da Vida conforme suas entradas na e saídas da graça. O argumento da presciência que Aquino usa é exatamente o mesmo esposado por Boécio (480-525), que cria na predestinação com base na presciência: Deus pode saber de tudo sobre o passado, o presente e o futuro simultaneamente porque Ele não está no tempo, mas fora do tempo.
Escreve Aquino sobre a presciência divina: “E ainda que os [futuros] contingentes passem a existir em ato sucessivamente, Deus não os conhece sucessivamente conforme estão em seu ser como nós, mas simultaneamente, pois seu conhecimento, bem como seu próprio ser, tem como medida a eternidade; ora, a eternidade, que é totalmente simultânea, engloba a totalidade de tempo, como acima foi dito. Assim, tudo o que está no tempo está desde toda eternidade presente para Deus; não apenas porque Deus tem presentes as razões de todas as coisas, como alguns o pretendem, mas porque seu olhar recai desde toda a eternidade sobre todas as coisas, como estão em sua presença” (AQUINO, Summa Theologica, I, 14, 13).
Em quarto lugar, diferentemente de Calvino e mais próximo de Agostinho, Aquino não acreditava na inexistência de livre-arbítrio. Aquino afirmava que, mesmo no caso dos salvos do primeiro grupo (os predestinados), o livre-arbítrio continuava existindo, as escolhas das pessoas continuavam a ser reais. Ele justificava isso dizendo que Deus apenas inclinava as vontades dos predestinados, mas não as forçava. Isso porque Aquino crê que há em todos os seres humanos um desejo pela beatitude, só que o desejo pelo mal é muito maior. No caso dos predestinados, Deus não mudaria a vontade deles, mas daria uma espécie de “mãozinha” no desejo pela beatitude em seus corações para garantir a escolha certa deles e, consequentemente, a salvação inevitável deles. Nesse aspecto, Aquino e Agostinho eram o que, criteriosamente, temos de chamar de sinergistas inconsistentes; ou, como alguns preferem chamar, “monergistas defeituosos”.
Asseverava Aquino: “A vontade é livre” (AQUINO, Questões Disputadas, Questão XXII, Artigo 5). E ainda, com todas as letras: “A vontade não pode ser forçada por Deus” (AQUINO, Questões Disputadas, Questão XXII, Artigo 8). E mais: “Ninguém se torna pecador se não por si próprio, e ninguém se torna justo se não pela operação de Deus e por cooperação própria” (AQUINO, Questões Disputadas, Questão XXII, Artigo 9). Isso não é monergismo.
Em quinto lugar, diferentemente de Calvino e Agostinho, Aquino não acreditava em Expiação Limitada. Escreve ele: “A paixão de Cristo não foi uma expiação meramente suficiente, mas uma superabundante expiação para os pecados de toda a raça humana, de acordo com 1 João 2.2: ‘Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo’” (AQUINO, Summa Theologica, III, 48, 2).
Enfim, por todas essas razões, não dá para considerar Aquino um calvinista ou agostiniano. Aquino apenas simpatizava com alguns dos pontos esposados por Agostinho sobre o tema da mecânica da Salvação, discordando de todo o restante – restante este que consistia simplesmente na maioria dos pontos esposados pelo bispo de Hipona sobre o assunto.
Não admira que Calvino e Lutero, diferentemente de alguns calvinistas de hoje, não demonstravam apreço por Aquino. Calvino, inclusive, combateu diretamente a visão de Aquino sobre a predestinação dos eleitos, mencionando o Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, de Aquino, Livro II, Discussão 41 (sobre “A vontade e o pecado”), Artigo 3, onde, entendia Calvino, o Aquinate incluíra algum mérito humano na predestinação:
“Não é procedente a cavilação de Tomás de Aquino de que a predestinação diz respeito à graça mercê da qual extraímos méritos que são objeto da presciência divina. Não faço caso da sutileza de Tomás de Aquino, o qual diz que, ainda que a presciência dos méritos não possa ser chamada de causa da predestinação no que se refere a Deus, que predestina, contudo pode ser assim chamada no que diz respeito a nós, como quando afirma que Deus predestinou a seus eleitos para que, com ela, mereçam a glória. Quando, pois, o Senhor não quer que contemplemos nada na eleição, se não Sua mera bondade, se alguém aqui deseje visualizar algo mais, será por mera afetação. Porque, caso queira porfiar em sutileza, não falta com que repulsemos o próprio minúsculo sofisma de Tomás. Ele pretende provar que a glória é, de certa maneira, predestinada para os eleitos por seus méritos, porque Deus os predestina à glória pela qual merecem a glória” (CALVINO, Institutas, Livro III, Capítulo 22, 9).
Lutero, por sua vez, chegou a chamar Aquino de a estrela que caiu do céu, mencionada em Apocalipse 8.10, e sua Summa Theologica como “a quintessência de todas as heresias” (SCHAFF, Phillip, History of the Christian Church, volume V – The Middle Age –, Eerdmans, 1988, p. 676).
Logo, chega a ser constrangedora essa atitude revisionista de alguns autores calvinistas recentes (e que provavelmente devem ter influenciado o irmão Franklin em sua visão de Aquino) de, na ânsia de construir uma espécie de “forte linhagem histórica calvinista” pós-Agostinho que nunca existiu, querer ver um Aquino que nem Lutero nem Calvino viram, e que, na verdade, nunca houve.
Mais recentemente, a coisa chegou a um ponto ainda mais constrangedor, quando o teólogo calvinista norte-americano Michael Horton, incomodado pelo fato de que não há sequer vestígios de calvinismo nos Pais da Igreja até Agostinho, começou uma “caça” desses vestígios, empreendendo uma maratona de leitura de todos os escritos dos Pais da Igreja antes de Agostinho para ver se encontrava algo que ninguém nunca encontrou. Ele quis descobrir o que nenhum autor calvinista ávido por descobrir encontrou em mais de 400 anos de busca, nem mesmo Calvino, que reconheceu decepcionado que todos os Pais da Igreja eram-lhe contrários (Institutas, Livro II, capítulo II, 9). Resultado: dando “saltos quânticos” de interpretação, Horton distorceu descaradamente o significado de algumas passagens dos Pais da Igreja que publicou em um apêndice de seu livro Putting Amazing Back Into Grace(Baker, 2002) como prova de que o calvinismo estaria presente nos Pais da Igreja pré-Agostinho (sic)!
Horton chegou a inventar a continuação de uma passagem dos escritos de Clemente de Roma, noutros casos traduziu erroneamente o significado claro de alguns vocábulos gregos, além de interpretar algumas passagens divorciadas de seus respectivos contextos ou de outras passagens dos próprios Pais da Igreja citados que clarificavam indubitavelmente o posicionamento destes sobre os temas mencionados nos tais textos mencionados. Enfim, tudo o que não manda a boa hermenêutica (termo que, lembro aos leitores, se aplica não só à área teológica, mas também à interpretação de textos legais e literários de forma geral).
O teólogo arminiano Jack Cottrell foi um dos que expuseram tal atitude (veja AQUI, com uma boa tradução AQUI). Ainda bem que a maioria dos calvinistas mais sérios, talvez por vergonha alheia, não embarcaram nessa do Horton.
Bem, mas voltando a Aquino, ainda que ele tivesse defendido mesmo um posicionamento idêntico ao de Agostinho, o que nunca fez, a verdade é que, diferentemente do que a cultura popular cristalizou, sua teologia não foi voz majoritária do final da Idade Média até o século 19. Após Aquino, já no século 14, as correntes escolásticas de Duns Scot, William de Ockham e a dos averroístas – nenhuma delas defensora da predestinação agostiniana – foram as que prevaleceram, principalmente as duas últimas (BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne; História da Filosofia Cristã, Editora Vozes, 1982, p. 464). A corrente de Aquino, que nem pode ser considerada um agostinianismo de fato em relação à mecânica da Salvação, era apenas mais uma naqueles dias – respeitada, mas não majoritária. E depois ainda viria a posição molinista, elaborada no século 16 por um espanhol originalmente tomista (o jesuíta Luís de Molina), adotada pelos jesuítas e contra a qual se voltariam, obviamente, os seus demais colegas tomistas – no caso, os dominicanos, porque os jesuítas acabariam aderindo em peso ao molinismo. A briga entre tomistas e molinistas foi uma briga, na verdade, entre “tomistas-tomistas” e “tomistas-molinistas”. A teologia de Aquino só se tornou a posição oficial da Igreja Católica no século 19, após a encíclicaAeterni Patris, publicada em 1879 pelo papa Leão XIII, que era fã declarado de Tomás de Aquino e em uma época em que estava acontecendo um revival da teologia do Aquinate na Igreja Católica. E mesmo depois de se tornar a teologia oficial, no que diz respeito à mecânica da Salvação, a Igreja Católica continua abrigando, ao lado do aquinismo, o semiagostinianismo do Sínodo de Orange e o molinismo, sem ver nenhuma “grande contradição” – segundo ela – entre elas (eu, obviamente, discordo em parte).
Portanto, por qualquer ângulo, não dá para usar Tomás de Aquino como prova da existência de uma linhagem agostiniana de grande influência na teologia cristã durante a Idade Média no que diz respeito ao entendimento da mecânica da Salvação.
P.S.: Como minha exposição sobre Aquino ficou enorme, deixei os demais tópicos que apresentaria hoje para o artigo de amanhã. Até lá!
Extraído do site cpadnews.com.br/ em 05/06/2015