Por Salman Rushdie e pela Liberdade

Resolvi escrever algumas linhas após ler o segundo livro de/sobre Salman Rushdie (Joseph Anton Memórias de Salman Rushdie). Digo isso pelo fato de saber que o autor sempre se mistura com os protagonistas de suas obras. A bem da verdade, acho que todo escritor mistura suas realidades com suas ficções; e com Rushdie não poderia ser de outro jeito. Já faz uns dez anos que, pela primeira vez, entrei em contato com o autor e desde então sempre leio ou acompanho alguma notícia sobre ele. O livro “Versos Satânicos” foi muito empolgante pra mim e as verdades daquela crônica mexeram muito comigo, corroborando o que eu já sabia da religião do profeta beduíno.

Meu envolvimento com a teologia islâmica começou pra valer em 11 de setembro de 2001. Lembro-me bem daquela fatídica manhã de terça-feira. Estávamos reunidos em uma igreja para orar pela nossa comunidade. O nome da igreja era promissor – “Projeto Vida”. Nossas orações eram pela paz, pela recuperação econômica e pela comunhão dos irmãos.  De repente, entra pela porta da sala de oração uma irmã toda descabelada e esbaforida gritando: “Misericórdia irmãos, os EUA foram atacados militarmente e foi agora. As Torres do World Trade Center foram atingidas por mísseis – ai Jesus!”. Imediatamente fomos conduzidos para a sala de televisão e o que dali se assistia marcou pra sempre a minha vida. Eu, um simples homem do interior, nunca pensei ver uma cena tão chocante como aquela em minha singela existência. Quando na roça, tinha no máximo medo de cobras. Mas agora, as piores serpentes do mundo estavam usando aviões como mísseis contra prédios residenciais e comerciais e, pior, contra civis que nada tinham a ver com aqueles beduínos do deserto da Arábia. Juntos, oramos e clamamos. Foi uma manhã inesquecível e traumática.

Saí dali disposto a saber por que eu falara tão pouco contra aquele mal até aquela ocasião. Pra mim, eu não precisava falar daquela religião distante, de um profeta barbudo e sem cultura que se aproveitou de uma viúva rica para fazer uma religião sincrética entre cristianismo, judaísmo e o animismo arábico. Uma religião sanguinolenta e violenta, pra que saber mais daquilo? Imediatamente consultei minha biblioteca, li os poucos livros que tinha. Fui às livrarias do centro da cidade e comprei o Alcorão, livros especializados e tudo o que tínhamos por ali. Sinceramente, encontrei pouca coisa interessante. Pela internet encontrei outras obras de Albert Hourani, Bernad Lewis, Mantran, Naipaul, Said e Salman Rushdie. Também entrei em contato com a “Juventude Islâmica para a América Latina” (Nem imaginava que tal instituição existisse) e consegui alguns livros. Na verdade, quem me ajudou mesmo foi um Sheik ou Imã (não me lembro) chamado Kamal Osman (pois debatíamos pela internet sobre a problemática). Esse, em retribuição a uma literatura que lhe enviei, me mandou muitos livros de teologia islâmica. Aqui faço uma pausa para um comentário satírico sobre esse acontecimento. É que naqueles dias havia se iniciado o envio de cartas-bombas ou contaminadas. E o pó químico e contagioso (antraz) estava fazendo muitas vítimas. Numa certa tarde escuto um grito dentro de casa (meu escritório ficava no fundo da casa). Era a minha esposa em desespero com uma enorme caixa na mão. Num choro reclamante e com um tom de advertência maternal me exortava: “Tá vendo, fica mexendo com esses fanáticos religiosos e agora olha aí… uma bomba”. Não era uma bomba, mas uma caixa do sul do País (onde ficam as maiores comunidades islâmicas) direcionada a mim. Por via das dúvidas, isolei o pacote e, com alguns apetrechos, consegui abrir a caixa, e com toda a segurança (estava usando uma máscara) examinei os livros. Pra minha sorte, era só livro mesmo. Naqueles dias devorei aquelas literaturas. Mas um alfarrábio me chamou a atenção mais que os outros – Versos Satânicos – que título era esse?! Eu precisava lê-lo e sabia que aquele conteúdo seria relevante.

Depois de ler livros distintos e técnicos sobre o assunto, por que não um romance sobre essa religião? A leitura me arrebatou e quando gosto de um livro, lei tudo e o tempo todo. Três dias apenas foram necessários, e a leitura estava encerrada. Ninguém, na minha visão, foi tão exato na opinião sobre “aquela religião dos infernos” como Rushdie. Sim, aquelas eram verdades que precisavam ser ditas e re-editadas sempre e com toda a liberdade.

O nome, apesar de forte, tem uma explicação técnica, como é elucidado no recém-lançado “Joseph Anton Memórias de Salman Rushdie”: “o profeta desceu da montanha certo dia e recitou a Sura (número 53 do Alcorão) chamada Na-Najm, a Estrela. Continha as seguintes palavras “Ouvistes falar de al-Lat, de al-Uzza e de al-Manat, a terceira, a outra? Elas são aves excelsas, e sua intercessão é muito desejada”. Em data posterior – teriam passado dias, semanas ou meses? – ele (Maomé) voltou à montanha e desceu desconcertado, dizendo que tinha sido ludibriado em sua visita anterior. O diabo lhe aparecera, disfarçado de arcanjo, e os versos que ele recebera não eram divinos, mas satânicos, e era preciso expurgá-los do Alcorão sem demora. Nessa ocasião, o anjo trouxera novos versos, enviados por Deus, para substituir os versos satânicos no grande livro: “Ouvistes falar de al-Lat e al-Uzza. E de outra, a terceira, Manat. Tais (divindades) não são mais do que nomes, com que vossos antepassados, as denominaram, e não há nelas verdade alguma. Por ventura, teria Deus filhas, enquanto vós tendes filhos? Tal seria uma partilha injusta” (Pg. 49).

Claro, não estou escrevendo o presente artigo pra falar em si do livro “Versos Satânicos”, isso eu já fiz em 2001 (leia aqui), mas para externar meus sentimentos sobre o escritor que viveu mais de 20 anos diante de uma sentença de morte (fatwa) e até hoje sofre restrições por causa de um senil caquético que pensava ser deus. No livro “Joseph Anton Memórias de Salman Rushdie” nos é contado como a vida desse autor tornou-se um inferno e como a liberdade de expressão no mundo todo foi rechaçada.

A liberdade não tem que ser ganha, mas conquistada”. Rushdie é símbolo não de uma editora, mas da resistência em favor da liberdade e por que não, da própria expressividade de culto por todas as nações e religiões. Sim, os mesmos mentecaptos que condenaram o “Rushdie ateu” poderiam ter censurado um “Rushdie religioso”. Nada e nem ninguém pode se achar incriticável. As boas ideias nunca deixarão de sê-las por causa de uma crítica. O Ocidente não pode ceder a chantagistas e terroristas desse tipo. O rechaçamento à liberdade do livro “Versos Satânicos” é o estrangulamento das conquistas mais raras e caras de nossa civilização.

Lembro-me do Sheik Jihad Hassan e seu colega Sheik Mohamed falando de paz na rádio em Campina Grande na Paraíba em 2006 (época das charges do profeta). Até a voz do religioso era sedosa, mas quando lhe coloquei na parede com uma pergunta sua expressão se decompôs. O que eu disse? Nada de mais; apenas queria saber como aqui no Brasil o Sheik Jihad (Sunita) se dava tão bem com o Sheik Mohamed (sufita) e nos países islâmicos um matava o outro. Pronto! O homem ficou uma fera e arremeteu contra mim articulando que eu era um homem sem ética por fazer tão deselegante pergunta. Por quê? Em tom conciliador, o Sheik Mohamed intrometeu-se entre nós e propôs que eu e o outro professor falássemos primeiro e depois eles discorreriam suas argumentações. Mas a minha pergunta, até hoje não foi respondida. É assim que eles agem. Cometem as mais pervertidas barbaridades pelo mundo e quando um mísero pecador ocidental questiona, somos deselegantes. Eles podem falar o que quiserem do satã do ocidente e da cristandade perniciosa, mas nós não temos o direito de falar nada do beduíno barbudo que deflorava pequenas, roubava caravanas e manipulava mentes em nome de Deus.

Uma nova palavra havia sido criada para ajudar os cegos a continuarem cegos: a islamofobia. Criticar a estridência militante dessa religião em sua encarnação contemporânea era ser preconceituoso. Uma pessoa fóbica era extremada e irracional em suas posições, então a culpa era dessas pessoas e não do sistema de crenças que se orgulhava de ter mais de 1 bilhão de seguidores no mundo todo. Um bilhão de crentes não podia estar errado, portanto os críticos é que deviam ser os que espumavam pela boca…” (Pg. 337)

Paul Johnson disse o seguinte em uma de suas entrevistas: “Quando falamos de fundamentalismo islâmico, estamos usando uma expressão enganosa. Todo o Islã é fundamentalista na essência… A palavra Islã não significa paz, mas submissão”. E é essa submissão ou coerção que os muçulmanos inventaram de empurrar goela abaixo. Virou moda agora, por qualquer coisa que faça com que se sintam “ameaçados”, partirem pra ignorância. O chargista fez uma charge antimaometana – morte ao chargista. O cineasta fez um filme, mesmo que positivo ao islã, mas como mostrou uma suposta imagem do profeta – morte ao cineasta. Um apologista cristão elaborou um texto teológico contra a teologia islâmica – morte ao cristão imundo. Aliás, certo dia um desses retardados me ligou (devido a um artigo em nosso site de apologética). Ofegante e cheio de ódio vociferou ao telefone: “É o infiel Prof. Martinez?” “Sim, Prof. Martinez falando”, respondi. “Você vai morrer, seu porco infiel. Vou dar sua carne pras porcas comerem. Vou te picar em pedacinhos… .” Pensei comigo, deve ser trote, mas não era. Aquele débil queria me fazer de ração pra porcos. Eu sinceramente penso que os porcos mereçam coisa melhor. Mas naquele dia pude perceber que com gente desse tipo não tem argumentação. Por mais que eu tentasse me voltar pra ele e explicar os fatos, ele só conseguia ficar com mais raiva e ódio. Acho que o que fez ele desistir e desligar foi o fato de eu ter lhe dito que, apesar de não ser islâmico, era um fundamentalista cristão e, a despeito de não matar ninguém, não via problema em perder a minha vida por uma verdade. Além do que, seria bom para que o povo brasileiro acordasse e fechasse as portas para aquela religião obtusa! Ele desligou o telefone e eu, por precaução, registrei um boletim de ocorrência (veja aqui). Por isso, sou solidário a tudo que Rushdie viveu e está vivendo, por isso indico e recomendo que todos os que puderem leiam os livros dele e de preferência “Versos Satânicos”.

Quanto à pecha de ateu, penso que Rushdie não mereça tal, principalmente pelos seus livros. Claro, não quero aqui sacramentar o autor, nem fazê-lo assinar um atestado de crendice como alguns já tentaram, não é isso. É que ateu, principalmente nos dias atuais, é mais do que uma pessoa que não acredita em Deus, é mais do que alguém que desnuda uma religião com a verdade dos fatos. Ateu hoje é algo mais complexo e até credo esse ateu moderno tem, aliás, até igreja (não posso me conter, preciso rir – hahahahaha). Conta-se que o primeiro ateu da história foi Sócrates. Ele, segundo alguns, não aceitava o panteão de deuses de Atenas. Era aos seus olhos algo truanesco e absurdo. Tanto é que quando foi condenado a tomar cicuta, ironicamente olha de lado e brinda a Esculápio – “a Esculápio” – o deus da medicina ou da saúde. Platão acreditava que Sócrates na verdade cria em um Deus transcendental e não naquele territorial pregado e crido pelos atenienses, mas esse não é o fato. O fato é que daí nasceu a conjectura do que seria o ateu – aquele que é contra os deuses de Atenas. Não seria o caso de Rushdie, mas talvez o caso de Karen Armstrong ou Richard Dawkins (que fazem campanhas e seminários contra a ideia de um Deus). Esses gostam de bater forte no cristianismo, mas são tímidos pra falar do Islã. Acho que o medo da fatwa deve ser grande entre eles. Então é melhor ser um ateu direcionado só para os cristãos, que hoje não matam mais ninguém. Mas fechando o raciocínio, é que Salman não age dessa maneira militante. Pra mim ele poderia ser adjetivado de, no máximo, um agnóstico e nunca de ateu.

Já sobre a satanização de Rushdie pelo Islã, acho que até foi fácil pra eles fazerem isso. O pobre autor não é, digamos assim, nem razoavelmente formoso. Pra piorar, aquele cavanhaque e os olhos caídos cooperam para uma aparência de Satã (pura brincadeira minha). O Aiatolá Khomeini, devido aos seus muitos fracassos administrativos, naquele momento, (a Guerra Irã/Iraque havia deixado sequelas nos dois países), precisava de um bode expiatório e ele foi o ideal. Acho que o caquético Aiatolá nem imaginava que a fatwa viraria o que virou. Mas como o próprio Salman advertiu, aquele momento foi mais do que uma revolução contra um bucólico autor. Aquilo foi o início da diminuição da nossa liberdade de expressão em nível internacional. Em entrevista recente, Salman afirmou que o seu livro não seria publicado hoje devido a essa covardia ocidental impetrada naqueles dias iniciais da crise. Na minha visão, a pusilanimidade daquela época do caso do livro “Versos Satânicos” foi o começo da derrocada. A semente da omissão dos líderes da década de 90 são os frutos que colhemos hoje. Na verdade, quem virou um grande satã para o mundo civilizado foi o próprio Islã – uma religião que não sofreu o devido efeito de atualização operacional de sua plataforma. Paul Johnson comenta que as grandes religiões, na sua maioria, se atualizaram, mas o islã retrocedeu após a 2ª Guerra e fermentou sem que percebêssemos, transformando-se na ameaça que temos hodiernamente.

O que Rushdie revelou muito claramente a todo mundo é que o Islã demonstra sua incapacidade de passar impune por qualquer exame sério”.

Sair da versão mobile