Viajei meses atrás para o berço das revoluções árabes – uma esquina desamparada em Sidi Bouzid, na Tunísia, onde um vendedor de rua, embebido em querosene, acendeu um fósforo que ateou fogo em todo o Oriente Médio. Isso em dezembro de 2010. “Temos muito mais liberdade, mas muito menos empregos”, lamentou um ambulante de frutas na mesma esquina. Um outro observou que Mohamed Bouazizi, o vendedor que ateou fogo no próprio corpo, não se matou para votar numa eleição democrática, mas porque os abusos das autoridades locais lhe custavam seu meio de sobrevivência.
Enquanto os ambulantes desabafavam, terminavam as orações na mesquita do outro lado da rua. Em meio aos fiéis saindo do local estavam salafistas – muçulmanos sunitas ultraconservadores que lutam para definir a nova ordem de acordo com as tradições religiosas do século 7.º e não com as realidades terrenas. Durante anos muitos, os salafistas – “salafi” significa predecessor – evitaram a política e apoiaram autocratas, desde que muçulmanos. Mas nos últimos oito meses, grupos de fiéis por todo Oriente Médio criaram movimentos salafistas poderosos que procuram se beneficiar com as desilusões e a desordem das transições.
O novo Crescente Salafista, que irradia dos califados do Golfo Pérsico para o Norte da África, é um dos mais preocupantes e menosprezados subprodutos das revoltas árabes. Em diversos graus, esses puritanos populistas estão ingressando no espaço político ocupado antes por militantes jihadistas, hoje menos em moda. Ambos são fundamentalistas que defendem uma nova ordem cujo modelo é o Islã antigo. Mas os salafistas não são necessariamente combatentes. Muitos renegam a violência.
Na Tunísia, os salafistas fundaram o partido da Frente da Reforma em maio e lideraram protestos, incluindo um em Sidi Bouzid. Nas últimas semanas, eles atacaram repetidamente os símbolos da nova liberdade de expressão, saqueando galerias e impedindo músicos sufis e comediantes políticos de se apresentarem. No Egito, os salafistas saíram da obscuridade, apressadamente criaram partidos e, em janeiro, conquistaram 25% dos assentos no Parlamento – ficando em segundo lugar, perdendo apenas para a Irmandade Muçulmana. A influência dos salafistas é cada vez mais forte na rebelião da Síria. E eles têm partidos ou facções na Argélia, Bahrein, Kuwait, Líbia, Iêmen e nos territórios palestinos.
Os salafistas são apenas uma parte do espectro islamista que vem evoluindo rapidamente. A variedade de islâmicos no início do século 21 lembra as muitas cores do socialismo no século 20. Hoje, como outrora, alguns islâmicos são mais prejudiciais para os interesses e valores ocidentais do que outros. Os salafistas são os mais avessos aos direitos das mulheres e das minorias.
Um denominador comum entre os diferentes grupos é a inspiração e o apoio dos wahhabi, uma seita puritana do Islã sunita da Arábia Saudita. Nem todos os sauditas pertencem a essa seita. E não são todos os salafistas que a adotam. Mas, basicamente, os wahhabi são todos salafistas. E muitos árabes, particularmente fora do escassamente povoado Golfo Pérsico, suspeitam que os wahhabi estão tentando se apoderar do futuro, auxiliando e incitando os salafistas hoje politizados da região – como fizeram há 30 anos, financiando as madrassas da Ásia Central que criaram o Taleban do Afeganistão.
Os salafistas são mais rigorosos na restrição da vida pessoal e política do indivíduo do que os partidos islâmicos mais modernos que conquistaram votos no Egito, Tunísia e Marrocos. Para muitos árabes, a palavra de ordem é justiça, tanto econômica quanto política. Para os salafistas, tudo tem a ver com a virtude, que é inflexível e imposta.
“Você tem duas opções: o céu ou o inferno”, disse-me o xeque Muhammad el-Kurdi após sua eleição para o Parlamento do Egito, pelo partido salafista Al-Nour. Ele defende a segregação de gênero nas escolas e escritórios para que os homens possam se concentrar.
Outros islamistas mais modernos temem o salafismo. “Os salafistas procuram nos pressionar”, disse Rachid al-Ghannouchi, fundador do Ennahda, partido islâmico no poder na Tunísia. Os dois grupos são rivais. “Os salafistas são contrários a uma Constituição. Acham é ela é o Alcorão”, queixou-se Merhezia Labidi, vice-presidente da Assembleia Constituinte da Tunísia e membro do Ennahda.
Os salafistas vêm aprofundando as divisões entre muçulmanos xiitas e sunitas e desafiam o “Crescente Xiita”, termo cunhado pelo rei Abdullah da Jordânia em 2004, durante a guerra no Iraque, para definir um arco de influência que vai do Irã dominado pelos xiitas aos seus aliados no Iraque, Síria e Líbano.
Os salafistas são um penoso enigma para o Ocidente. Seus objetivos são mais antiocidentais do que qualquer outro partido islâmico. Procuram empurrar tanto secularistas como outros islâmicos para um passado nem sempre virtuoso.
Os EUA decidiram apoiar o poder do povo e as mudanças eleitorais na Tunísia, Egito, Líbia, Marrocos e Iêmen. Mas Washington ainda defende monarquias autoritárias do Golfo, como a Arábia Saudita.
A política externa americana pode ter sutilezas, seja em razão das necessidades de petróleo ou para conter ameaças do Irã. Mas seria terrivelmente errôneo ligar a posição futura dos EUA na região ao berço e baluarte do salafismo e a sua visão deformada de uma nova ordem.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
* É AUTORA DE “ROCK THE CASTAH: RAGE AND REBELLION ACROSS THE ISLAMIC WORLD” E MEMBRO DO WOODROW WILSON INTERNATIONAL CENTER FOR SCHOLARS
Robin Wright, The New York Times, O Estado de S.Paulo