Padre holandês troca batina

Padre holandês troca batina por terno e gravata na rua Direita, em São Paulo

O Holandês Herman J. Hegger fará 88 anos em fevereiro de 2004. Não pode ser chamado de padre casado porque já não é padre nem católico. Deixou de ser padre e católico aqui no Brasil há 55 anos. Desde então tornou-se protestante. Não deixou a batina para se casar. Só se casou três anos depois, na Holanda, com “uma doce enfermeira de rosto sardento e olhos radiantes”, que conheceu no Hospital Juliana, da Igreja Reformada, em Amsterdã, quando se recuperava de uma cirurgia de hérnia.

O dia mais solene e mais difícil de Hegger foi o 9 de julho de 1948, na alfaiataria de um metodista, localizada na rua Direita, no centro de São Paulo. Ali, depois de muita indecisão e luta íntima, Hegger, aos 32 anos, tirou a batina e vestiu o terno. Por coincidência, a cidade, então com pouco mais de 2 milhões de habitantes, comemorava o 16º aniversário da Revolução Constitucionalista, de 1932. No dia seguinte, o mundo reformado celebraria o 439º aniversário do nascimento de João Calvino, em Noyon, na França. Essa aparentemente simples troca de indumentária proporcionou aquilo que Hegger chama de “visibilidade externa” de uma mudança ocorrida na alma, até então escondida. O jovem missionário católico e professor de filosofia e história da filosofia no Seminário Maior dos Padres Redentoristas em Tietê, São Paulo, ficou impressionado até mesmo com os detalhes — a tal visibilidade externa começou numa rua que tinha o mesmo nome da rua de Damasco onde o apóstolo Paulo havia sido batizado por Ananias, logo depois de sua dramática conversão (At 9.11). A cidade chama-se São Paulo porque foi fundada no dia 25 de janeiro (1554), dia do aniversário da conversão do apóstolo. O alfaiate que fez o terno chamava-se Dilmar do Espírito Santo — o Espírito Santo é quem convence o mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8) — e a oficina ficava ao lado do Largo da Misericórdia — a misericórdia do Senhor é a razão de “não sermos consumidos” (Lm 3.22).

Dois dias antes, 7 de julho, Hegger dera conta de uma agenda difícil e apertadíssima: levantou-se às 2 da madrugada, celebrou a sua última missa às 3 horas e 30 minutos, dirigiu-se de táxi à estação de Cerquilho às 4 horas e 45 minutos e tomou o trem para São Paulo às 6 horas. Viajava com ele o padre Mário, que desceu em Sorocaba, a quem Hegger entregou uma carta para ser lida só depois que o trem se pusesse outra vez em movimento. Era uma carta de despedida na qual ele explicava as razões de seu afastamento definitivo da ordem. Só então os padres e os seminaristas de Tietê entenderam que aquela viagem era uma viagem de fuga e não de férias. Hegger sentia-se como uma árvore que é transplantada de um lugar para outro com raiz e tudo.

Em São Paulo, Hegger recebeu o apoio do pastor metodista Francisco Nocetti, de 43 anos, irmão gêmeo do pastor Odilon Nocetti, da Igreja Metodista de Andradina. Foi Francisco quem o hospedou por alguns dias e o levou ao alfaiate. Esse relacionamento com os metodistas começou em Juiz de Fora, em 1947, quando Hegger acabava de chegar da Holanda e se hospedou no mosteiro dos redentoristas holandeses naquela cidade mineira, onde permaneceu cinco meses para aprender a língua portuguesa.

Hegger não se converteu ao protestantismo no Brasil. Aqui apenas se desligou oficialmente do catolicismo. Ainda na Holanda, cheio de dúvidas e sem saber direito que decisão tomar, o jovem padre foi surpreendido com uma carta de seu superior. Nela o padre Donker o convidava para ser conferencista em filosofia para estudantes universitários na província dos redentoristas em São Paulo, na certeza de que Hegger era o homem indicado para assumir tal posição. O superior deixou-o à vontade para aceitar ou não o convite, mas queria receber uma pronta resposta, “preferivelmente por telefone, ou então por telegrama”. Era o dia 10 de junho de 1947. Sem a necessária coragem para enfrentar a opinião pública, a família, os amigos e os colegas padres, e por achar “quase insuportável” a idéia de abandonar a igreja, Hegger aceitou o convite, embora já não fosse católico por dentro. Entretanto, o rapaz gostava do desafio da filosofia: afinal, dizia-se que “o filósofo é o indivíduo que está à procura de um gato preto num quarto completamente em trevas onde não há gato algum”.

Quando o navio já estava no hemisfério sul e se aproximava do Brasil, Hegger andava pelo convés horas a fio, lutando contra ele mesmo, suas ansiedades e suas covardias. Na escala em Salvador, um jovem padre o levou para conhecer a cidade e “a generalizada depravação brasileira”. Num templo católico, havia um rapaz rezando de joelhos e o guia explicou ao visitante: “é perfeitamente possível que esse jovem vá visitar um bordel ainda esta noite, pois isso é uma prática comum aqui. Quando esses jovens vêm ao confessionário, perguntamos a eles se estiveram ou não com alguma prostituta e a resposta mais comum é esta: Sim, mas sempre pagamos a elas!” Alguns padres idosos de Salvador contaram a Hegger que quando os primeiros redentoristas chegados ao Brasil iam pelas cidades do interior pregando missões por dez dias ou mais, “não era incomum que o padre residente na paróquia lhes mostrasse uma saleta onde poderiam viver em companhia de uma mulher durante os dias que durasse a missão”.

Nos cinco meses passados em Juiz de Fora, Hegger tomou consciência de que “a vida monástica, por si mesma, inevitavelmente é acompanhada pelo enfado”. É por isso que os próprios monges afirmam que “o mosteiro é um lugar onde se entra sem conhecer os outros, se vive sem amor aos outros e se morre sem ser lamentado pelos outros”. Da pena do monge-filósofo, protestante por dentro e católico por fora, saíram as seguintes observações: “O convento [de Tietê] assemelhava-se a uma brasa que faz fumaça sem chama, a uma canção despida de melodia, a um rosto destituído de olhos”; “O mosteiro é uma tentativa heróica de conquistar à força os céus da impecabilidade”. Hegger gosta de citar Johannes Bergmans: “Vita communis maxima penitentia” (“A vida comunitária é a maior de todas as penitências”).

De São Paulo, Hegger foi de trem ao Rio de Janeiro para passar alguns dias com o pastor metodista Adriel de Souza Motta, que ele visitara seis meses antes, na véspera do Natal de 1947, quando ainda morava em Juiz de Fora. Hegger já estava dormindo em sua cabine, quando o trem noturno bateu de frente com o trem de carga que vinha do Rio para São Paulo, deixando três mortos e alguns feridos. O chefe do trem foi passando de vagão em vagão atrás de um sacerdote para dar assistência aos moribundos. Não havia nem um sequer, a não ser aquele estrangeiro que deixara a batina duas ou três semanas antes. Hegger já não acreditava na eficácia da extrema-unção como sacramento, mas, pensando nos parentes das vítimas, que se sentiriam mais consolados caso soubessem que seus entes queridos haviam recebido aquela graça antes de morrer, retirou da bagagem o vidrinho de óleo bento que havia guardado de lembrança, ungiu um homem cuja perna fora projetada para fora do vagão e pronunciou sem muita convicção estas palavras: “Per istam sanctam unctionem et suam prissimam misericordiam indulgebat tibi Dominus quidquid deliquisti” (“Por meio deste óleo santo e de suas mais doces misericórdias, que o Senhor te perdoe de tudo quanto tiveres feito de errado”). Para outras vítimas que estavam fora do seu alcance no vagão perigosamente tombado, Hegger proferiu a fórmula da confissão: “Ego vos absolvo a peccatis vestris in nomine Patris et Filii et Spiritu Sancti” (“Eu vos perdôo de todos os pecados, no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”).

Só dez meses depois da histórica fuga do Seminário Maior de Tietê (de julho de 1948 a maio de 1949), Hegger retornou à Holanda, então de terno e gravata e não mais de batina. Depois de passar um ano na famosa Universidade Livre de Amsterdã fazendo alguns cursos, Hegger, recém-casado com a “doce enfermeira”, ordenou-se pastor da Igreja Reformada de Denderleeuw, na Bélgica, aos 36 anos, no dia 18 de setembro de 1961 — 11 anos depois de ter sido ordenado padre.

Herman J. Hegger é uma pessoa muito conhecida e respeitada em seu país de nascimento e em toda a Europa. Escreveu mais de vinte livros e muitos folhetos. Apenas Ansiedades de Um Padre (170 páginas), um livro autobiográfico escrito em 1961, foi traduzido para o português. Uns cinco títulos podem ser lidos em espanhol: “Diálogo con el apóstol Juan, La vida en la primitiva iglesia, ¡Cristo! La respuesta a tus preguntas, El Bautismo… un hablar de Dios e ¿Qué es creer?” Entre outros, Hegger também publicou “Levantem-se e Cristo os Iluminará, De Volta para o Cristo Vivo, Cristo, meu Juiz e meu Salvador, Conversas com Heada — uma correspondência durante o caminho à luz”. Um dos seus folhetos tem tiragem superior a 100 mil exemplares. Chama-se “Roma — Reforma” e aborda temas de controvérsia religiosa, como “A missa”, “O purgatório”, “O celibato”, “A veneração de Maria”, “Você também pode se tornar sacerdote”, “Quem é representante de Cristo na terra” etc.

Hegger é um dos fundadores da Evangelishe Omrop, a rede de televisão evangélica holandesa. Mas o que o tornou conhecido até mesmo fora da Europa é a IRS — In de Rechte Straat (Na Rua Direita), uma fundação criada por ele para dar assistência a religiosos e sacerdotes que por convicção deixam a Igreja Católica Romana. Essa organização publica a revista bimestral em holandês e em espanhol “En la Calle Recta” (www.enlacallerecta.com). Tem esse nome por causa de sua experiência na rua Direita, em São Paulo.

Embora seja um egresso da Igreja Católica e um arauto da Reforma do século 16, hoje Hegger mantém diálogo com líderes católicos holandeses, especialmente com o monsenhor G. de Korte, vice-bispo de Ultrecht. A revista evangélica holandesa “Visie” publicou no número de agosto/setembro de 2000 o artigo de capa “H.J. Hegger — apaixonado construtor de pontes”. Nele, o padre que havia se tornado protestante 52 anos antes confessa que ficou “mais gentil e mais humilde com o tempo”. Hegger acredita que há cristãos fiéis à Palavra nas igrejas católica, reformada, evangélica e pentecostal, e espera que surja “um quinto grupo que vincule pessoas desses grupos todos”, para “estudar a Bíblia juntos, orar juntos e evangelizar juntos”. Hegger não defende nem propõe a unidade das igrejas, mas aquilo que chama de “ecumenismo de coração”, uma comunhão entre pessoas que crêem em Jesus, e não entre denominações cristãs.

Em um de seus livros, Hegger trabalha em cima de um sonho que realmente teve: numa pequena vila do interior havia dez igrejas que não se comunicavam entre si. Aconteceu que todos os pastores e líderes saíram de férias na mesma época. Os cristãos começaram a se descobrir, a se apreciar e a se apoiar mutuamente. Isso produziu mais conversões. Mas, quando os líderes voltaram, tudo voltou como era antes…

Herman J. Hegger, beirando 88 anos, nasceu em Lomm, uma vila de quatrocentos habitantes na Holanda, no dia 19 de fevereiro de 1916, em uma família muito católica, de doze filhos. Cedo aprendeu que Lutero havia sido um rato, um idiota, um demônio, um padre renegado. Foi para o Seminário Menor em setembro de 1928, aos 12 anos. Seis anos mais tarde, já como noviço, ingressou no Seminário Redentorista, em Den Bosch, onde fez o seu curso de filosofia tomista. Finalmente seguiu para o famoso Convento Redentorista de Wittem, próximo à fronteira da Holanda com Alemanha e Bélgica, fundado pelo príncipe Ferdinand van Plettenberg em 1797, onde concluiu o curso de teologia e foi ordenado sacerdote no dia 8 de agosto de 1940, aos 24 anos.


Fontes:

1. “Ansiedades de Um Padre”, de H. J. Hegger (Editora Fiel, Caixa Postal 1.601 – 12230-990 São Paulo, SP).

2. “Visie”, 27 ago. – 2 set. 2002. pp. 4-7.

3. Correspondência entre o editor de Ultimato e Hegger irswartburg@wxs.nl

Colhido na revista Ultimato

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