UMA VIAGEM AO CALDEIRÃO DA IDOLATRIA
“Não fareis para vós outros ídolos, nem vos levantareis imagem de escultura nem coluna, nem poreis pedra com figuras na vossa terra, para vos inclinardes a ela; porque eu sou o SENHOR, vosso Deus” (Levítico 26.1).
Enquanto estacionávamos nosso carro ao lado do hotel, na cidade do Juazeiro do Norte, observávamos que apesar das fortes chuvas de janeiro que tinham caído nos últimos dias, o céu azul-anil com nuvens brancas não tardou em reaparecer no Cariri cearense. Após o check-in, subimos para o primeiro andar e, ainda no corredor, caminhando em direção ao nosso apartamento, pude avistá-la ao longe, branquinha, lá no topo da Serra do Horto: era a estátua do renomado padre cuja vida estudei nas últimas quarenta madrugadas. Esse homem foi o motivo de minha esposa e eu termos viajado 615 quilômetros, do Recife até o Juazeiro do Norte, onde passamos quatro dias pesquisando junto aos seus romeiros e investigando in loco um pouco mais sobre a vida desse “santo padre do Juazeiro”.
Esse sacerdote católico era de baixa estatura, pele clara, olhos azuis, acompanhado sempre de seu cajado, usava uma batina preta e um chapéu redondo da mesma cor. “Foi detentor de um fortíssimo carisma, sobre as massas populares”.[1]
Quem é esse homem-ídolo? Ninguém menos do que o padre Cícero Romão Batista (1844-1934), mais conhecido por estas paragens como o “Meu Padrinho Padre Cícero”, carinhosamente chamado de Padim Ciço, uma das pessoas que mais marcaram a história e a vida do povo nordestino.
Juazeiro do Norte: Santuário da Idolatria ao Padre Cícero
“Viveu menino pobre às margens do rio salgadinho, cresceu na ribanceira o homem santo de Cristo. Seu nome percorre veredas no sertão pernambucano, Alagoas, Paraíba, Sergipe e Bahia. O Ceará exalta o nome do seu filho mais querido. No altar dos santos divinos é um deus-menino jamais esquecido. E quem é ele? E quem é ele? É o padre Cícero Romão, do Juazeiro do Norte, meu padim, sua bênção!”. (Trecho da canção “Deus Menino”, Chico Silva).
Localizada a cerca de 540 quilômetros ao sul de Fortaleza, Juazeiro do Norte é a segunda maior cidade do Ceará, com cerca de 250 mil habitantes. Sustenta-se do turismo religioso que atrai centenas de milhares de fiéis do “santificado” Padre Cícero. Durante algumas épocas festivas, a cidade chega a receber dois milhões de romeiros, vindos de todo o Brasil, e alguns do exterior, só para ver, fazer um pedido ou adorar esse mito nordestino.
Na residência que foi do Padim Ciço, hoje transformada em Museu Padre Cícero, nossa guia turística contou-nos que o pároco costumava relatar para seus amigos mais íntimos que a cidade do Juazeiro do Norte era santa e enfeitiçada. Dizia que, caso houvesse uma guerra, um manto cobriria toda a cidade, deixando-a invisível aos olhos dos inimigos que nunca conseguiriam atacá-la. Pensei: Puxa, essa coisa de manto deixando objetos e pessoas invisíveis é típico da série Harry Potter.
Diariamente, igrejas, monumentos, praças, procissões, novenas, peregrinações e missas louvam, agradam e idolatram o “Meu Padim Padre Ciço.”
Apesar da Igreja Católica não considerar o Padre Cícero Romão Batista um santo, ela não censura os milhões de devotos que o consideram um santo homem de Deus. Baseado nas missas que assisti, posso afirmar que a Igreja Católica em Juazeiro não apenas apóia, mas incentiva os romeiros a venerarem o Padrinho. Qualquer político que ousar dizer que o Padre Cícero não é santo, dificilmente será bem votado na região do Cariri.
As romarias ao Padre Cícero são vantajosas para todos. A Igreja Católica, os empresários, os políticos e todos os setores da sociedade juazeirense são beneficiados pelo grande fluxo de dinheiro trazido pelos consumidores desse sacerdote que literalmente abarrotam as ruas e praças dessa cidade.
A imagem do Padim Ciço é reverenciada e está à venda em cada esquina, seja em suvenires, fotografias, chaveiros, chapéus, esteiras, chinelos, jarros, pôsteres, cerâmicas, talhas, bolsas, broches e muitas outras bugigangas. O artesanato é uma das principais atividades do Juazeiro e também gira em torno do Padre Cícero. Encontra-se imagens do padre em miniaturas e até em tamanho natural. Elas estão em pé ao lado das portas de entrada de centenas de residências e de muitas lojas, sem mencionar as de cera no Museu Vivo.
Até os telefones públicos têm um formato de um cajado com um chapéu redondo preto. Certa noite, durante o jantar, um dos gerentes do hotel nos revelou que naquele estabelecimento havia sessenta funcionários fixos e quase trinta porcento deles tinham como seu primeiro nome Cícero ou Cícera.
Em Juazeiro do Norte até os telefones públicos lembram o seu “santo padre”.
O Padre Cícero está presente em cada recôndito desta cidade, semelhante a O Grande Irmão, do clássico 1984, de George Orwell, a observar todos os habitantes.
Também vimos algumas estátuas do Padrinho Ciço espalhadas pela cidade: no alto da Serra do Horto há uma monumental, toda em concreto, de 25 metros de altura, sendo 17 metros de estátua e 8 metros de pedestal. Na então Praça Almirante Alexandrino de Alencar, hoje Praça Padre Cícero, na região central da cidade, há uma em bronze em tamanho natural (inaugurada pelo próprio Padre Cícero em 1925).[2] Na frente da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde o pároco está sepultado, há mais uma protegida por uma caixa de alvenaria com vidro na frente. No jardim diante do edifício Balcão SEBRAE há mais outra em tamanho natural…
Estátua do Padre Cícero em bronze, na Praça Padre Cícero. No quesito de monumento à sua própria pessoa, o Padre Cícero é o Saparmurad Niazov do Cariri.
No quesito de quantidade de monumentos a uma só pessoa, Juazeiro do Norte é a Ashgabat* brasileira e o Padre Cícero Romão Batista é o Saparmurad Niazov do Cariri. E no quesito de devoção cega ao seu líder espiritual, Juazeiro do Norte é a Teerã nordestina.
Vendo a cidade entregue à idolatria, pudemos sentir um pouquinho do incômodo que o apóstolo Paulo sentiu ao visitar Atenas (Atos 17.16).
As Romarias ao Juazeiro do Norte
“Do mundo inteiro vão pro Juazeiro milhares de romeiros fazer sua oração. Vão pulsar em fé e ajoelhar aos pés do Padre Cícero Romão. […] Meu Padim Ciço, meu Padim Ciço, somos romeiros pedindo a sua bênção. Meu Padim Ciço, meu Padim Ciço, somos romeiros sofredores do sertão”. (Trecho da canção “A Bênção do Padre Cícero”, J. Farias e Banda e do poeta compositor João Caetano).
São várias as romarias feitas a essa “Meca” nordestina durante o ano, porém o maior fluxo de romeiros concentra-se nos meses de fevereiro, setembro e novembro. A grande leva de romeiros chega a Juazeiro de ônibus ou de caminhão pau-de-arara. Os miseráveis vêm a pé mesmo, pelas estradas esburacadas, engolindo poeira e sendo escaldados pelo sol quente do sertão. Durante as romarias, os fiéis alugam “ranchos”, que são pequenos quartos com banheiro em que cabem duas pequenas camas.Uma parte de uma das “salas de promessas”. Devotos deixam objetos como gratidão ao Padrinho por bênçãos alcançadas.
A quase totalidade dos romeiros e dos juazeirenses é composta de um povo pobre e economicamente sofrido, mas que acredita que dias melhores virão e, baseado nessa esperança, continua vivendo. Esperam um milagre do Padrinho. Muitos deixam tudo o que lhes resta aos pés do Padre Cícero. “A Casa dos Milagres”, ao lado da Igreja do Perpétuo Socorro, e as “Salas das Promessas” no Museu Padre Cícero são alguns dos pontos turísticos da cidade. Lá observei vários objetos e centenas de retratos deixados pelos devotos como agradecimento por supostas bênçãos alcançadas através do Padre Cícero Romão.
Muitos foram ao Juazeiro e decidiram nunca mais retornar para suas casas. Vivem hoje amontoados em barracos nas periferias dessa cidade, mas felizes por estarem próximos do seu “santo padre”. Muitos humildes retornam para seus lares famintos. Dentro de suas geladeiras quebradas encontram-se caçarolas vazias, sobre os fogões a lenha apenas panelas de feijão requentado, e seus filhos estão desnutridos. Mas no próximo semestre retornarão ao Juazeiro. São esses fiéis ingênuos que alimentam e enchem os bolsos daqueles que promovem a “indústria” de Padre Cícero.
A Romaria a Nossa Senhora das Candeias
“Bendita e louvada seja a luz que mais alumeia. Valei-me meu Padrinho Ciço e a Mãe de Deus das Candeias. […] os romeiros vão chegando e é noite de lua cheia”. (Trecho da canção “Bendita e Louvada Seja”, Clemilda).
Estivemos em Juazeiro durante as festividades e a romaria de Nossa Senhora das Candeias (também conhecida como Nossa Senhora da Purificação).
Uma mulher coloca temporariamente seu chapéu na cabeça de uma estátua do Padre Cícero. A outra coloca flores na mão da estátua.
A tradição judaica ensina que o filho varão deveria ser levado ao templo quarenta dias após o seu nascimento. Já a mãe, por ser considerada impura após o parto, tinha de passar por uma cerimônia de purificação. Nas procissões católicas, o povo leva candeias ou luzeiros ou velas acesas para supostamente iluminar esse trajeto de Maria levando Jesus ao templo.
Na verdade, essa história de candeias acompanhando a procissão tem sua origem na mitologia romana, mas foi incorporada à celebração da Purificação de Maria pelo Papa Gelásio I (que foi papa de 492 a 496).
A mitologia romana relata que Proserpina, filha de Ceres, foi raptada por Plutão para ser sua companheira no império dos mortos (inferno). O povo romano da Antigüidade recordava essa cena levando luzeiros para supostamente acompanhar o sofrimento da Mãe Ceres até às portas do inferno.
O dia de Nossa Senhora das Candeias é apenas mais uma festividade pagã adotada pela Igreja Católica Romana. Outros chamados “dias santos” para os católicos também têm origens pagãs, a saber: “o dia de todos os santos” e o de “finados”, entre outros. Mas isso é uma outra história. Voltemos ao Padre Cícero, do Juazeiro.
Em se tratando do Juazeiro do Norte, independente do santo ou da santa conduzidos no andor, o grande homenageado acaba sempre sendo o “Meu Padim Padre Ciço”.
Aos Pés da Estátua no Alto do Horto
“Olha lá, no Alto do Horto! Ele está vivo, Padim não está morto! Olha lá, no Alto do Horto! Ele está vivo, Padim não está morto! Viva meu Padim, Viva meu Padim, Ciço Romão”. (Trecho da canção “Viva Meu Padim”, Luiz Gonzaga).
Enquanto nos aproximávamos do início da ladeira do Horto, notamos que no cume da montanha pequenos raios surgiam com certa freqüência próximos à estátua mais famosa do Padre Cícero (no Brasil, apenas a do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, é mais alta do que ela).
“Que coisa estranha! E nem está chovendo!”, comentei com minha esposa.
O autor subindo a Serra do Horto. Ao fundo a maior estátua do Padre Cícero (dizem que no Brasil só é menor que a do Cristo Redentor).
Ao chegarmos ao estacionamento do topo, fomos rapidamente cercados por vendedores de fogos. Observamos que o que pensávamos ser raios, eram na verdade fogos:
– “O senhor tem de soltar seis fogos antes de fazer seu pedido ao santo e mais seis quando estiver indo embora”, falou-me um entusiasmado vendedor enquanto nos mostrava alguns rojões de fogos.
– “Não obrigado”, disse rapidamente.
– “Se o senhor desejar ou se tiver medo, pode comprar e eu solto os fogos pelo senhor. No momento dos estouros dos fogos o senhor pensa nos seus pedidos”, disse-me um outro solícito vendedor.
– “Não precisa. Não quero. Muito obrigado”, repliquei enquanto subia a rampa de acesso à estátua.
Algumas pessoas trajavam batinas pretas semelhantes às do Padre Cícero. Perguntei a uma delas se fazia parte de algum movimento eclesiástico ou de alguma seita. Ela me olhou estranhamente e disse que estava apenas pagando promessa.
Muitas barracas vendendo vários suvenires estavam nos dois lados da rampa que ia lotando de romeiros à medida que progredíamos. Em muitas delas eram vendidos CDs e fitas cassetes piratas com músicas de romarias e benditos, além de blusas e artesanato. O som alto das músicas, os gritos dos vendedores, o cheiro forte de frituras e rapaduras permeavam a rampa e davam um toque bem regional.
Aos pés da estátua do Padre Cícero. Fiéis dando três voltinhas ao redor do cajado da estátua.
Subimos os degraus e nos posicionamos aos pés da estátua que estava lotada de romeiros. Pessoas demonstravam sua devoção: algumas senhoras se esfregavam com as costas na parte inferior da estátua pedindo que o Padim curasse suas dores lombares. Outras suspendiam seus bebês em direção à estátua e os forçavam para que a beijassem. Muitos escreviam seus nomes na estátua enquanto choravam. Alguns rezavam ou cantavam cânticos de louvores ao Padrinho. Entre o cajado e a batina do Padre há um espaço que dá para passar uma pessoa de cada vez. O romeiro emocionado dá três voltas em torno do cajado enquanto faz seu pedido (havia uma fila enorme esperando para realizar esse ritual).
Imaginei Moisés retornando do Monte Sinai com as tábuas dos Dez Mandamentos e vendo o povo adorando um bezerro de ouro. Aquela multidão em Juazeiro e aquele povo de Israel no deserto estavam tão próximos de Deus e simultaneamente tão longe dEle. Tinham a Luz ao seu alcance, mas optaram por rituais das trevas.
Ali, aos pés da estátua não me contive e chorei discretamente para que ninguém percebesse. Enquanto isso, alguns metros adiante, havia um palanque armado onde um sacerdote católico com chapéu de palha (para se identificar melhor com os romeiros) fazia algumas colocações absurdas comparando o Padre Ciço com Jesus Cristo.
Dei a volta por trás do palanque e adentrei o Museu Vivo onde existem algumas imagens do Padim em cera, em tamanho natural, retratando cenas do seu cotidiano.Uma sala dentro do Museu Vivo me chamou mais a atenção. Lá havia aproximadamente oito filtros de barro, com alturas que variavam de um metro a um metro e meio, e várias canecas de alumínio penduradas em um fio no teto. Muitos romeiros acreditam que a água é milagrosa e, sem qualquer receio de contrair alguma doença, pegam as canecas, enchem-nas com água do filtro, bebem e se banham com roupa e tudo. Alguns, mais criteriosos passam água nas regiões do corpo que necessitam de cura. Ao meu lado, um senhor idoso e de aparência bem humilde derramou um pouco d’água dentro da calça enquanto murmurava baixinho: “É minha próstata, Padim! É minha próstata, Padim!” Falei para ele que quando retornasse para sua cidade deveria se consultar com um bom urologista. Ele apenas me olhou abusado.
Minha esposa estava ficando bastante enauseada com tudo que viu, ouviu e cheirou. Por isso, resolvemos descer o morro e retornamos à cidade.
O Padre Cícero e o Milagre do Juazeiro
“Meu Padim Cícero, do Juazeiro, tão milagreiro, sou romeiro do sertão. Meu Padim Cícero, do Juazeiro, tão milagreiro, a minha grande devoção”. (Trecho da canção “Canção de Fé”, José Idelfino).
Mas, qual foi o fato que transformou um simples pároco de um pequeno povoado do interior do Nordeste em uma celebridade internacional? O “milagre” que transformou esse padre, natural do Crato, em um dos brasileiros mais biografados e comentados, aconteceu quando o mesmo tinha 45 anos.
Havia uma beata juazeirense, analfabeta e costureira de profissão, chamada Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo,[3] mas conhecida como Maria de Araújo. “Foi acometida de meningite infantil (espasmo), sofria de ataques de epilepsia, e levava uma vida de jejum, oração e trabalho humilde. Havendo bem cedo perdido os pais, foi morar ainda menina, na casa do Padre Cícero”.[4]
Em uma manhã de março de 1889, quando o Padre Cícero Romão Batista pôs a hóstia na sua boca, Maria de Araújo teve um transe tão intenso que sangrou a língua e a hóstia ficou avermelhada de sangue. Esse fato se repetiu outras vezes no período de dois anos e a população local começou a espalhar a notícia de que se tratava do “derramamento do sangue de Jesus”, portanto, de um milagre.
O próprio Padre Cícero comentou acerca do que ocorreu naquele dia:
“Quando dei à beata Maria de Araújo a Sagrada Forma, logo que a depositei na boca, imediatamente transformou-se em porção de sangue, que uma parte engoliu, servindo-lhe de comunhão, e outra correu pela toalha, caindo algum no chão; eu não esperava e, vexado para continuar com as confissões interrompidas que eram muitas ainda, não prestei atenção e por isso não apreendi o fato na ocasião em que se deu; porém, depois que depositei a âmbula no sacrário e vou descendo, ela vem entender-se comigo, cheia de aflição e vexame de morte, trazendo a toalha dobrada, para que não vissem, e levantava a mão esquerda, onde nas costas havia caído um pouco e corria um fio pelo braço, e ela com temor de tocar com a outra mão naquele sangue, como certa de que era a mesma hóstia, conservava um certo equilíbrio para não gotejar sangue no chão”.[5]
Dentro do Museu Vivo, as estátuas em cera do Padre Cícero e da beata Maria de Araújo.
Na verdade, a beata pode ter mordido consciente ou inconscientemente a língua ou a mucosa oral e provocado o sangramento. Ou, quem sabe, ter tido uma crise convulsiva (bem provável, uma vez que tinha epilepsia) e mordido a língua? Ou uma discreta hemorragia digestiva?
É prudente deixar registrado que em outras cidades nordestinas, envolvendo personagens diferentes dos do Juazeiro, aconteceram fatos semelhantes onde a hóstia se transformou em sangue.[6] Graças a Deus, esses outros padres não tornaram-se também milagreiros e nem objetos de adoração.
Fico meditando… todo o Novo Testamento insiste em afirmar que Jesus Cristo ofereceu o Seu corpo como sacrifício e derramou o Seu sangue remissor apenas uma vez e para sempre (veja Hebreus, capítulos 9 e 10). Essa história de “vários derramamentos do sangue de Jesus Cristo” através da beata Maria de Araújo está diametralmente oposta às Escrituras Sagradas. Ou os devotos do Padre Cícero estão enganados, ou a Bíblia está errada.
Bem, o fato é que o reboliço foi tanto que o pequeno povoado transformou-se em lugar de romaria.
O bispo cearense Dom Joaquim José Vieira e até o Papa Leão XIII, em Roma, tiveram de investigar o fenômeno do Juazeiro. O Padrinho chegou a ser recebido pelo papa no Vaticano. Outros padres foram enviados ao Juazeiro e entregaram a hóstia a Maria de Araújo e nada de anormal ocorreu. O bispo cearense e o papa não reconheceram o milagre e o Padre Cícero Romão foi punido com uma suspensão.
Assim, o Padim Ciço tornou-se um santo milagreiro. Apesar de proibido de celebrar missas, sua residência passou a ser freqüentada por romeiros e por várias autoridades.
Aproveitando-se do seu prestígio, aliou-se aos grandes fazendeiros cearenses e, apoiado por eles, tornou-se prefeito do Juazeiro em 1911 e, posteriormente, vice-presidente do Ceará.
As Atuações Ambíguas do Padre Cícero Romão
“Foi a ele que muitas vezes, Lampião se ajoelhou, aos seus pés contou histórias, pediu perdão e chorou. Bendito seja o romeiro que na fé e na oração, exalta o santo padroeiro no samba, no coco, no xote e no baião”. (Trecho da canção “Deus Menino”, Chico Silva).
a) Amizade Com o Coronelismo
O Padim Ciço realizou boas ações para a população menos favorecida. Organizou mutirões e conseguiu construir pequenos postos de saúde, escolas e orfanatos, além de reformar e construir algumas igrejas católicas.
Por outro lado, ele era amigo do peito de vários latifundiários da região, conhecidos como “os coronéis”. Esses senhores ilustres eram opressores dos pobres, marginalizavam os sertanejos, excluindo-os do direito à saúde, aos alimentos e até à vida. Pasme, o Padim Ciço pertencia a essa espécie de liga de coronéis do Ceará e a defendia . O Padim chegou a estimular seus devotos a serem mão-de-obra barata na construção de açudes e na colheita de algodão nas terras da família Acioly, a mais poderosa do Ceará.[7]
O “coronelismo” era a política exercida pelos latifundiários com prestígio político local, que tinham notável poder, mandavam na região e nos seus eleitores, que eram tratados como gado. Suas zonas eleitorais eram conhecidas como “currais eleitorais” e ai do eleitor que ousasse votar contra o candidato do “coronel”.
Quando Hermes da Fonseca, então presidente da República, enviou interventores ao Ceará e depôs as oligarquias repressoras lideradas por esses coronéis, o Padre Cícero ficou irado.
Rapidamente o clero católico promoveu e assinou o chamado “pacto dos coronéis” com dezessete dos principais chefes políticos da região do Cariri, objetivando assegurar a permanência da família Acioly no governo cearense. E mais: esses fazendeiros armaram centenas de sertanejos e os enviaram à capital, porém foram detidos pelas forças federais. Esse episódio ficou conhecido na história como a “Revolta do Juazeiro”.
O Padim Ciço só aquietou-se quando a velha oligarquia da família Acioly foi restabelecida ao poder. O Padre Cícero Romão foi, sem dúvida, um exemplo de fidelidade às oligarquias poderosas do Ceará.
b) Negociata com Lampião
Enquanto o Padim Ciço destacava-se no Ceará com sua influência político-religiosa, o cangaceiro Lampião e seu bando amedrontavam os poderosos dos sertões nordestinos.
O sertanejo pernambucano Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938), vulgo Lampião, era também um personagem controvertido. Para muitos, era visto como um bandido que incendiava vilarejos, torturava, estuprava e matava pessoas. Para outros, era um justiceiro que tirava dos ricos para doar aos flagelados da seca. Em 1931, o jornal The New York Times chegou a chamá-lo de Robin Hood do sertão.
O “Rei do Cangaço” era devoto do Padre Cícero, do Juazeiro, e às vezes usava uma foto desse sacerdote no seu peito. A religiosidade de Lampião era alicerçada nas orações de corpo-fechado, nos santos da Igreja Católica e no Padre Cícero. No livro, Lampião, o Rei dos Cangaceiros, Chandler relata “que a vida da mulher de um policial de Jatobá, em Pernambuco, foi salva quando um velho pegou um retrato do padre do Juazeiro e o colocou entre a faca soerguida de Lampião e o seio da mulher. Lampião levava sempre consigo seus livrinhos de orações, guardava santinhos em sua carteira de dinheiro, e pregava retratos do Padre Cícero em sua roupa”.[8] Isso mostra o respeito e a devoção que Lampião nutria por esse padre.
Em companhia do seu bando, Lampião costumava recitar algumas orações para, supostamente, fechar o corpo. O escritor Piragibe de Lucena, no seu livro Lampião, Lendas e Fatos, descreve algumas dessas orações. Leia um pequeno trecho de uma delas e analise a importância do Padre Cícero na vida desse cangaceiro:
“Justo juiz de Nazaré, filho da Virgem Maria, que em Belém fostes nascido entre as idolatrias. Eu vos peço senhor, pelo vosso sexto dia, e pelo amor do meu padrinho Pe. Cícero que meu corpo não seja preso, nem ferido, nem morto, nem nas mãos da justiça em volta.
Pax tecum, pax tecum, pax tecum. Cristo assim disse: aos seus inimigos, se vierem para prender-me terão olhos, não me verão, terão ouvidos, não me ouvirão. Com as armas de São Jorge, serei armado. Com a espada de Abraão, serei coberto. Com o leite da Virgem Maria, serei borrifado.
Na arca de Noé, serei arrecadado. Com a chave de São Pedro serei fechado, onde não me possam vê, nem ferir, nem matar, nem sangue do meu corpo tirar. […]”[9]
O Padre Cícero articulou para que o cangaceiro Lampião recebesse a patente de capitão dos Batalhões Patrióticos.
Por volta de 1926, Padre Ciço já era mais político do que religioso, sendo anti-comunista de carteirinha. Aproveitando a fidelidade do bandoleiro à sua pessoa, o pároco juntou-se com seus amigos fazendeiros e doaram armas e munição para o cangaceiro e seu bando atacarem “o revoltoso” Luiz Carlos Prestes e sua famosa “Coluna”. Padim Ciço também articulou para que o agrônomo Pedro de Albuquerque Uchôa, que era inspetor agrícola do Ministério da Agricultura, entregasse a Lampião a patente de Capitão das Forças Patrióticas.[10],[11] Lampião não atacou a “Coluna Prestes”, preferiu manter suas erranças pela caatinga. Dizem que essa foi a única vez que Lampião desobedeceu ao “santo” Padre do Juazeiro. Uma coisa é certa: Lampião ostentou com muito orgulho o título de Capitão enquanto viveu.
O curioso é que (dizem que a pedido do próprio Padim Ciço) Lampião nunca atacou os coiteiros ricos, os fazendeiros safados e os políticos corruptos do Ceará. Isso é que é amizade fiel!
Apesar da amizade do Padim Ciço com o coronelismo cearense e suas negociatas com Lampião estarem registradas em vários livros, biografias, documentários, teses e filmes, existem alguns devotos do Padrinho que negam que isso tenha acontecido. Movidos mais pela emoção do que pela razão, declaram que essas atuações ambíguas do Padre Cícero não passam de calúnias.
Convenhamos: sob o ponto de vista mundano, isso é que é saber viver! O Padim Ciço vivia de mãos dadas com Satanás e pretendia morrer nos braços de Jesus! Como se diz por estas bandas sertanejas: Eita Cabra esperto!
Padim Padre Ciço: Um Ídolo do Lar
“[…] não vos desvieis de seguir o Senhor, mas servi ao Senhor de todo o vosso coração. Não vos desvieis; pois seguiríeis coisas vãs, que nada aproveitam e tampouco vos podem livrar, porque vaidade são” (1 Samuel 12.20-21).
Ser contra a idolatria é uma unanimidade não apenas entre as igrejas cristãs genuínas, mas também ao longo de toda a Bíblia Sagrada. Todas as denominações tradicionalmente evangélicas são contra a idolatria. O judaísmo também não suporta a idolatria. Já o catolicismo prega a não-adoração a ídolos e imagens, mas na prática o que se vê é um descompasso entre o que se faz e o que se fala. Infelizmente, não é preciso ir ao Juazeiro do Norte para se constatar que a igreja do papado é verdadeiramente idólatra.
Fiéis cantam e choram ao redor de uma das camas usadas pelo Padim Ciço.
O Padim Ciço, do Juazeiro do Norte, é um ídolo nos lares de milhões de católicos. Em algumas casas, ele está presente no móvel da sala-de-estar, na penteadeira do quarto, na parede do corredor e em cima do refrigerador da cozinha. Para sermos mais honestos, o Padim Ciço, o “Santo Antônio”, o “São Jorge”, a “Ave Maria” e o Frei Damião são parte do imenso esquadrão de supostas divindades católicas presentes em milhões de residências brasileiras.
“Ídolos do lar” são coisas antigas e são mencionados logo no primeiro livro da Bíblia (Gênesis 31.19 e 30). Eles eram de vários tamanhos e alguns deles, quando colocados deitados na cama e cobertos por um manto, passavam por uma pessoa dormindo (1 Samuel 19.13). A esses ídolos, chamados em hebraico de terafins, confiava-se a guarda das casas e dos bens.
Acreditar que um “ídolo do lar” possa proteger sua família é muita presunção. Veja a história do rei Saul:
Feitiçaria e idolatria foram as gotas d’água para que Deus rejeitasse o rei Saul. O profeta Samuel sentenciou ao monarca: “Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei” (1 Samuel 15.23). Na Edição Revista e Corrigida, lê-se o nome “porfia”, no lugar de “obstinação”. Na Bíblia de Jerusalém (católica), “presunção” substitui “obstinação”. Parafraseando esse texto, diria: a obstinação, a porfia, o orgulho, a presunção, a teima, a cabeça-dura é como a idolatria e o culto a ídolos do lar. A idolatria está incluída entre as obras da carne e não no fruto do Espírito (Gálatas 5.20).
No Velho Testamento, o primeiro e o segundo mandamentos são um “não” à idolatria (Êxodo 20.3-6). E mais: o idólatra deveria ser morto (Deuteronômio 17.1-7). Já no Novo Testamento, a punição é a morte eterna: “Quanto, porém, […] aos idólatras […] a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte” (Apocalipse 21.8). Entre aqueles que ficarão fora da Cidade Celestial estão os idólatras (Apocalipse 22.15).
Sem dúvida, ao nos despedirmos do Juazeiro do Norte, vendo a cidade se distanciando pelo retrovisor, pudemos entender que a idolatria é uma cegueira espiritual, mas sobretudo uma tentação bastante sedutora. A Bíblia nos alerta a resistir ao Diabo, mas também a fugir dessa tentação: “Portanto, meus amados, fugi da idolatria” (1 Coríntios 10.14).Padre Cícero Romão Batista (1844-1934). Um dos ídolos dos lares católicos nordestinos.
Concluímos nossa visita ao Cariri cearense com os olhos marejados e uma mistura de sentimentos paradoxais: tristeza e alegria. A insatisfação é a imagem dos milhões de católicos que ainda precisam ser alcançados pela única Verdade, Jesus Cristo. A satisfação é que vimos templos de algumas denominações evangélicas nessa cidade. Esses irmãos em Cristo são como sal em uma terra espiritualmente insossa: levam a única Luz do mundo a um povo submerso nas trevas espirituais.
Irmãos, assimilemos o mesmo consolo e a mesma recomendação contida no final da Primeira Epístola de João: “Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna. Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (1 João 5.20-21).
(Dr. Samuel Fernandes Magalhães Costa – http://www.chamada.com.br)
* Ashgabat é a capital do Turcomenistão, uma ex-república soviética governada desde 1992 por um herdeiro direto do comunismo – o ditador Saparmurad Niazov. Para onde quer que olhem, os turcomenos deparam-se com uma imagem de Niazov: pode ser numa das estátuas, nos painéis ou nos rótulos de garrafas.
Bibliografia
1. Filho, Mario Bem, Formação Religiosa de Juazeiro do Norte. Editora ABC, Fortaleza, CE, 2002, página 38.
2. Fita de Vídeo: Padre Cícero – “O Cearense do Século”. Documentário das Romarias, com imagens do Padre Cícero Vivo. Bulhões Produções. Juazeiro do Norte, CE.
3. Filho, Mario Bem, Formação Religiosa de Juazeiro do Norte. Página 211.
4. Id.
5. Walker, Daniel, Padre Cícero na Berlinda. Edições IPESC. Fundação Universidade Regional do Cariri – URCA. Juazeiro do Norte, CE, 1995, páginas 12-13.
6. Silva, Antenor de Andrade, Padre Cícero – Mais Documentos Para Sua História. Escolas Profissionais Salesianas, Salvador, Bahia, 1989, página 234.
7. Cine História. Título do Filme: Baile Perfumado (Brasil, 1996). Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Amigo do padre Cícero, o fotógrafo Benjamim Abrahão, parte para o sertão nordestino, para filmar Lampião e seu bando nos anos 30. http://www.historianet.com.br/main/mostraconteudos.asp?conteudo=208
8. Chandler, Billy Jaynes, Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Editora Paz e Terra S.A., São Paulo, SP, 4a edição, 2003, página 271.
9. CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais. CAOS número zero. Dezembro de 1999. O Cangaço e a Religiosidade de Lampião, por Max Silva D’Oliveira. Citação do livro Lampião Lendas e Fatos. Piragibe de Lucena, p. 46. http://chip.cchla.ufpb.br/~caos/00-doliveira.html
10. Chandler, Billy Jaynes, Lampião, O Rei dos Cangaceiros. Páginas 93-94.
11. Souza, Anildomá Willians de, Lampião, O Comandante das Caatingas. Impressão: Gráfica Aquarela, Serra Talhada, PE, 2001/2002, página 44.
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