Embora a grande maioria do texto do Novo Testamento elimine qualquer dúvida, existem realmente algumas passagens cuja originalidade tem sido questionada. Sem nos estendermos demasiadamente, essas passagens incluem João 5.3, 4; João 7.53-8.11 e João 5.7. Porém, a passagem mais notável, talvez, seja a conclusão do Evangelho de Marcos.
Depois de Marcos 16.8, há uma discordância nos manuscritos existentes quanto ao que se segue. Alguns deles terminam no v. 8, com a frase: “pois tiveram medo”. Vários manuscritos contêm dois finais curtos que nenhum estudioso de textos considera como parte do manuscrito original. A maioria dos manuscritos contém, no entanto, os 12 versículos conhecidos que se encontram na Edição Revista e Atualizada no Brasil (ERAB) e em muitas outras traduções.
Será esse o fecho original de Marcos? Ou ele terminou seu Evangelho no v. 8? É possível que o original tenha desaparecido. A questão é esta: os doze últimos versos (Mc 16.9-20) — como contidos na ERAB, publicada pela da SBB — fazem parte do original do Evangelho de Marcos?
Os argumentos contra a aceitação dos doze últimos versículos como tendo autoridade podem ser dispostos em três categorias: (1) evidência externa; (2) evidência interna e (3) evidência teológica.
O argumento da evidência externa se concentra na ausência de um fecho tão longo. Nos dois manuscritos mais antigos que contêm o final do Evangelho de Marcos (Códice Sinático e Códice Vaticano), os doze últimos versos são omitidos. Algumas das versões (traduções para outras línguas) também omitem esses versículos como fizeram alguns dos primeiros pais da igreja. O fato de certos manuscritos conterem dois finais mais curtos também se opõe à idéia da leitura mais longa ser a original.
Além disso, alguns dos primeiros pais da igreja discordam quanto à originalidade desses versículos. Clemente de Alexandria e Orígenes não parecem considerar a existência desses versos, enquanto Eusébio e Jerônimo supostamente dizem que eles estavam ausentes de quase todos os manuscritos gregos que conheciam.
Alguns manuscritos que contêm a forma mais longa incluem notas escritas pelos escribas, atestando que os mais antigos não continham esses versículos. Outros manuscritos contêm marcas, indicando que existe alguma dúvida sobre a passagem.
Bruce Metzger, em A Textual Commentary on the Greek New Testa ment (p. 125), apresenta sua argumentação contra aceitar os 12 últimos versículos como incluídos no original de Marcos, baseado na evidência interna:
“O fecho mais longo (3), embora corrente em uma variedade de testemunhos, alguns deles antigos, deve ser também julgado pela evidência interna como secundário. (a) O vocabulário e estilo dos vv. 9-20 não são de Marcos (e.g., apisteo. blapto, beba iso, epakoloutheo, theaona, meta, tauta, pooeuomai. suergeô, usterou, não são encontrados em nenhum outro ponto de Marcos e Toiz met autou geiromeuoiz e theuasfou, como designações dos discípulos, ocorrem somente aqui no Testamento). (b) A ligação entre o v. 8 e os vv. 9-20 é tão forçada que fica difícil crer que o evangelista pretendia que essa desse continuidade ao evangelho.
Assim sendo, o sujeito do v. 8 é as mulheres, enquanto Jesus é o sujeito pressuposto no v. 9; No v.9 Maria Mada1ena é identificada, embora fosse mencionada apenas algumas linhas antes (15.47 e 16.1); as outras mulheres dos vv. 1-8 não são esquecidas: o uso de auaostaz de e a posição de proto são apropriados no início de uma narrativa abrangente, mas discordantes na continuação dos vv. 1-8.
Em resumo, todos esses aspectos indicam que a seção foi acrescentada por alguém que conhecia uma forma de Marcos que terminava repentinamente no v. 8 e quis suprimi-la com uma conclusão mais apropriada. Em vista das inconsistências entre os vv. 1-8 e 9-20, é improvável que o fecho mais longo tivesse sido composto ad hoc, a fim de suprir uma brecha óbvia; o mais provável é que a seção tenha sido extraída de outro documento, talvez datado da primeira metade do segundo século”.
Existem, outrossim, supostas evidências teológicas contra a idéia desses versículos serem autênticos. Isto inclui: (1) o batismo como exigência para a salvação (Mc 16.16); (2) a aparição de Jesus em forma diferente (Mc 16.12); (3) idéias fantasiosas, tais como beber veneno e pegar em cobras (Mc 16.18). Desde que essas idéias parecem contrariar o restante da Escritura, a passagem deve ser rejeitada como sendo a Palavra inspirada de Deus, dizem os críticos.
Apesar de tais argumentos parecerem superficialmente conclusivos, eles não suportam um escrutínio mais detalhado das evidências.
Embora seja verdade que os dois manuscritos mais antigos que contêm Marcos 16 não incluem esses doze últimos versículos, existe vastíssima evidência externa que os apóiam como sendo originais. Mesmo não fazendo parte dos dois manuscritos gregos mais antigos, esses versículos são encontrados em virtualmente todos os manuscritos gregos restantes que contêm o final de Marcos. Todas as versões latinas e versões siriacas (versão mais antiga do NT em outro idioma) contêm esses versículos, com pouquíssimas exceções.
O mais importante é que os primeiros pais da igreja fazem citações deles e estão cientes deles (Justino Mártir, 150 a.D.; Ticiano, 175 a.D.; Irineu, 180 a.D. e Hipólito, 200 a.D.). Esses homens viveram 150 anos antes da composição do Códice Vaticano e do Códice Sinático (cerca de 325 a.D.), mostrando que esses versículos já existiam naquela época. Por alguma razão eles não foram incluídos, mas isso não indica que não existiam. Se este fecho mais longo não é original, por que há, então, tantos e diferentes testemunhos quanto à sua autenticidade? A evidência externa os favorece como sendo autênticos.
A evidência interna quanto a esses versículos serem originais é insatisfatória. Os argumentos relativos ao estilo e vocabulário, no mínimo, não convencem. Metzger (citado acima) salienta existirem dezessete palavras nesses doze versículos que não são encontradas em nenhum outro ponto do Evangelho de Marcos. Isto prova supostamente que esta seção não é autêntica (The Text ofthe New Testament, p. 227). Todavia, John Broadus fez um estudo dos doze versículos que precedem aqueles em questão (Mc 15.44-16.8) e encontrou dezessete palavras nessa seção que não são encontradas em nenhum outro ponto do evangelho de Marcos.
Sabe-se, perfeitamente, que o vocabulário e o estilo mudam conforme o assunto tratado. Basear um argumento em algo assim tão subjetivo não é valido. O argumento de que a ligação entre o v. 8 e os vv. 9-20 é forçada não basta para a omissão desta parte. Se os versículos foram acrescentados mais tarde por alguém, que não Marcos, por que a descontinuidade não foi atenuada? O argumento interno aqui não é tão sólido como alguns desejariam que fosse. (Veja John Burgon, Last Twelve Verses of Mark, Reprint, pp. 222-270.)
A evidência teológica não é igualmente conclusiva contra esses versos. Marcos 16.16 não ensina que o indivíduo precisa ser batizado para ser salvo, mas apenas liga a salvação com o ato do batismo, porque as duas coisas se completam.
A pessoa que aceita verdadeiramente a Cristo como seu Salvador desejará ser batizada, desde que isso é mandamento do Senhor. Contudo, não é o batismo que salva mas a fé: “Quem crê no Filho tem a vida eterna” (Jo 3.36). O batismo é o sinal externo objetivo da transformação interior. Essa deve ser a experiência de todo crente, não sendo porém uma exigência da salivação. Note que Marcos diz, no v. 16, que quem não crer será condenado e não quem não for batizado. Nada aqui é contrário às Escrituras.
A idéia de Jesus aparecer em outra forma não contradiz outros relatos da Sua ressurreição. Trata-se de uma simples descrição de Sua ida ao povoado de Emaús com os dois discípulos, em que Ele apareceu numa forma irreconhecível.
Isto difere de Suas aparições a Maria Madalena e a outras mulheres que O reconheceram imediatamente. Mas Lucas nos conta que, ao chegarem a Emaús, os olhos dos dois discípulos foram abertos e eles reconheceram Jesus. Não existe contradição aqui.
Marcos registra o ponto de vista de Jesus (forma diferente), enquanto Lucas dá o ponto de vista dos dois discípulos (olhos cegos). Além disso, o Novo Testamento parece indicar que Jesus, depois de Sua ressurreição, nem sempre apareceu na mesma forma.
Finalmente, os excessos surgidos como resultado de algumas interpretações sobre beber veneno e pegar serpentes não diminuem a sua autenticidade. Em Atos 28.3-6, temos um exemplo do apóstolo ser acidentalmente mordido por uma serpente mortífera e, mesmo assim, sobreviver.
Os sinais milagrosos prometidos aos discípulos do Senhor em Marcos não são inéditos, pois tanto Mateus como Lucas registram a promessa e o cumprimento desses sinais (Mt 10.1; Lc 10.17, 18). Do mesmo modo, Hebreus 2.3,4 indica que os sinais acompanharam os cristãos. O fato de ter havido abusos baseados nesses versículos não significa que eles devam ser descartados como não inspirados.
Por outro lado, três argumentos fortes podem ser dados para serem aceitos esses versículos como originais: (1) nenhuma teoria satisfatória foi apresentada para explicar como Marcos podia ou haveria de terminar seu Evangelho no v. 8; (2) nenhuma objeção sem resposta foi levantada contra a idéia de esses doze últimos versículos serem inspirados; (3) os argumentos apresentados para explicar a quantidade enorme de evidência objetiva quanto ao testemunho amplo e variado dos manuscritos gregos, traduções e pais da igreja, são insatisfatórios.
É muito mais fácil explicar por que a passagem poderia ter sido omitida em alguns manuscritos, em vez de tentar explicar por que foi tão aceita. Para uma resposta completa quanto à exatidão da teologia dos doze últimos versículos, veja The Interpretation ofSt. Mark’s Gospel , de R. C. H. Lenski ou um comentário específico desse evangelho. Acreditamos haver boas razões para serem aceitos os doze últimos versículos de Marcos, inclusos na ERAB, como sendo originais, desde que todas as objeções quanto à sua autenticidade deixam muito a desejar.
(Extraído: J. Macdowel)