O voto de Nazireado

O Nazireado – UMA PRÁTICA JUDAIZANTE QUE DESPREZA A DOUTRINA DA GRAÇA

“O pastor chegou”, anunciou um dos membros de nos­sa família. Éramos uma fa­mília de recém convertidos à fé pentecostal. O ano de 1983 estava terminando e não havíamos comple­tado nem mesmo o primeiro ano de nossa nova profissão de fé, mas a notícia de que os “Gonçalves” não comiam mais carne de porco se es­palhara rapidamente entre os cren­tes. Toda a nossa família havia feito um propósito de ler a Bíblia toda e foi durante essa leitura que um dos meus irmãos encontrou nos livros de Moisés a proibição de comer carne suína. Logo, todos partilhávamos de sua descoberta. Estava tudo escrito ali, na Bíblia! Não havia dúvida: dos animais que não se podia comer, o porco era um deles: “Nem o porco, porque tem unha fendida, mas não rumina; imundo vos será. Destes não comereis a carne e não tocareis no seu cadáver”, Dt 14.8.

Foi para nos ensinar sobre esse assunto que recebemos naquele dia a visita de nosso ilustre pastor Fran­cisco Camelo de Sousa, de saudosa memória. Com sua característica paciência e sabedoria divinas, ele pas­sou a mostrar quais eram de fato os fundamentos da nossa fé. Fomos in­formados de que “tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar”, e que os Evangelhos afirma­vam que Jesus Cristo “considerou puro todos os alimentos” (Mc 7.18-19). Fo­mos ensinados que deveríamos aten­tar para os princípios por trás de determinada prática bíblica e não somen­te para a prática em si, e que grupos que se firmavam mais no preceito do que no princípio eram classificados de “judaizantes”.

Anos mais tarde, eu descobriria que aquilo que meu pastor nos ensi­nara era “um comentário de Marcos, que revela o que Pedro aprendeu (At 10.15) sobre a desobrigação dos cris­tãos guardarem as leis sobre comidas puras e impuras (Lv 11 e Dt 14).”1

Vinte e um anos são passados desde que esse incidente aconteceu, e ao longo desses anos tenho teste­munhado vez por outra os crentes à volta com práticas judaizantes. As cau­sas podem ser dadas como duas: fal­ta de conhecimento bíblico ou secta­rismo (espírito de seita).

O sectarismo é o responsável pelo transporte de práticas judaizantes para dentro da igreja. É bom lembrar que não é incomum “crianças em Cristo” (novos convertidos) quererem reviver práticas judaicas. Nesses casos, pou­cas horas de aconselhamento corrige a distorção bíblica. Todavia, quando essas práticas estão sendo revividas por gente “grande”, é coisa incomparavel­mente mais danosa.

Há pregadores evangélicos, e que até mesmo se intitulam apóstolos, que estão a todo custo tentando transfor­mar em realidade aquilo que era uma simples sombra. Foi Paulo quem dis­se: “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber ou por causa dos dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados. Estas são sombras das coisas futuras; a realidade, porém, encontra-se em Cristo”, Cl 2.16-17. Dentre essas práticas judaicas que eram apenas sombras e que já foram ressuscitadas, podemos destacar a guarda do sábado, a observância de festas judaicas e diversos outros cos­tumes do povo hebreu.

Uma famosa pregadora da fé dis­se certa vez: “Meu contato com Israel mostrou-me várias coisas, como os dias proféticos, as alianças: seis dias trabalharás e ao sétimo descansarás. Êxodo declara que o sábado é o sinal de uma aliança perpétua e da Volta de Cristo”.2 No site www.mir.com.br há vários artigos escritos. Em alguns deles, o articulista comenta sobre o descanso sabático, chegando até mes­mo a defender a sua observância como um “princípio”. O problema com a sua tese é que ela parece tomar o princí­pio como preceito. O que deveria ser observado é que os preceitos apon­tam para princípios e não o contrário. Um princípio é aquilo que está por trás do preceito ou norma. Com respeito ao dia de Sábado, a Bíblia diz que o mesmo está classificado como uma das sombras que teve sua projeção completada em Cristo (Cl 2.16). Como prin­cipio, o cristão pode escolher como descanso qualquer dia da semana e não somente o sábado.

Dentro do universo dos costumes judaicos, há o nazireado. Parece ser esta a última moda dentro do secta­rismo evangélico. Já há vozes bradan­do nos quatro cantos do país conclamando o povo evangélico para a observância dessa prática judaica!

Para refutarmos esse desvio dou­trinário e cortarmos essa excrescência cristã é necessário respondermos al­gumas perguntas: O que era o voto de nazireu? Teria sido Jesus também um nazireu? Sendo Paulo um cristão, então por que ele observou esse voto (At 18.18)? Será que essa prática é ain­da para hoje?

De acordo com o rabino Menahem Mendel Diesendruck, “dava-se o qualitativo de nazir (nazireu) à pessoa que se consagra durante um certo tempo ou por toda a vida ao Eterno. O nazir deveria abster-se de beber vinho ou comer qualquer produto da videira, de cor­tar o cabelo e aproximar-se de mor­tos, inclusive se estes fosse seus pa­rentes. Abstinha-se também dos pra­zeres permitidos pela Lei, passando seu tempo em orar e a fazer boas obras.”3 Ao comentar sobre o nazireu, Thomas E. Miccomiskey, PhD e professor de Antigo Testamento e Línguas Semíticas no Trinity Evangelical Divinity School, nos Estados Unidos, diz que “o sentido técnico da palavra ‘nazireu’ refere-se àqueles que fize­ram um voto especial de abstinência como um ato de devoção a Deus. Os aspectos específicos do voto de se­paração encontram-se registrados em Números 6.1-21, em que o nazireu é descrito como alguém que se abstém de ingerir uvas e seus vários deriva­dos, que não corta os cabelos e que evita a contaminação cerimonial re­sultante de tocar num cadáver.”4

Um fato a ser destacado é que os nazireus gozam de gran­de prestígio na cultura hebraica. Miccomiskey ainda nos lembra que “Amós 2.11-12 cita os nazireus para­lelamente aos profetas, mostrando como a influência benigna dos nazireus foi empobrecida no clima de desobediência do Israel do século oi­tavo aC.”5

Leiamos a passagem bíblica de Números 6.1-6 para sabermos mais so­bre essa prática judaica: Disse o Se­nhor a Moisés: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: Quando alguém, seja homem seja mulher, fizer voto especial, o voto de nazireu, a fim de consagrar-se para o Senhor, abster-se-á de vinho e de be­bida forte; não beberá vinagre de vi­nho, nem vinagre de bebida forte, nem tomará beberagens de uvas, nem comerá uvas frescas nem secas. To­dos os dias do seu nazireado não co­merá de coisa alguma que se faz da vinha, desde as sementes até às cas­cas. Todos os dias do seu voto de nazireado não passará navalha pela cabeça; até que se cumpram os dias para os quais se consagrou ao Senhor, santo será, deixando crescer livremen­te a cabeleira. Todos os dias da sua consagração para o Senhor, não se aproximará de um cadáver.”

Aqui está a Lei de Moisés com seus muitos detalhes regulamentan­do esse costume judaico. Ao longo da história hebraica, outros detalhes iam sendo acrescentados a essa prática. Eusébio de Cesaréia diz: “Ele não bebia vinho nem bebida fermentada, e se abstinha de alimento animal; ne­nhuma navalha passava sobre sua cabeça; jamais se ungia com óleo e jamais ia aos banhos. Somente ele ti­nha permissão para en­trar no san­tuário.” 6 O ritual de­veria ser feito em Jerusalém, mas Josefo nos informa que se o devoto estivesse longe da cidade poderia cortar os cabelos e levá-los depois para Jerusa­lém7 . Josefo ainda acrescenta que em seus dias o voto era feito por pessoas que bus­cavam alívio para as suas enfermidades ou aflições.8 O rabino judeu Maimônides, na alta Idade Média, em resposta às distorções ocorridas nes­se ritual, taxou a denominação nazir (nazireu) de “fanatismo obscuro.”9

Ainda consigo lembrar de uma mensagem que vi pela televisão. A pregadora fazia um verdadeiro ma­labarismo exegético para provar a relação existente entre as palavras nazareno (pessoa da cidade de Nazaré) e nazir (nazireu). Para ela, Jesus Cristo se tornara um nazareno (Mt 2.23) porque Ele era um nazireu. Mas Jesus era um nazireu? Acabamos de ler que o nazireu estava privado dentre ou­tras coisas de beber vinho. Porém, Jesus transformou a água em vinho (Jo 4.46) e foi criticado pelos ju­deus, como Ele mesmo testemu­nhou, da seguinte forma: “Veio o Filho do Homem, comendo e be­bendo, e dizeis: Eis aí bebedor de vinho”, Lc 7.34.

Um nazireu não podia se apro­ximar de um morto e muito menos tocá-lo, no entanto, Lucas registra sobre a ressurreição do filho da vi­úva de Naim: “Chegando-se, tocou o esquife e, parando os que o con­duziam, disse: Jovem, eu te mando: levanta-te!. Sentou-se o que estive­ra morto e passou a falar; e Jesus o restituiu a sua mãe”, Lc 7.13-15. Champlin comenta: “Jesus não foi um nazireu, e, sim, um nazareno (Mt 2.23)”10. Os intérpretes concordam que a razão do Messias ter sido cha­mado de “nazareno” está relaciona­da com Isaías 11.1, “que inclui a pa­lavra ramo (da qual vem o termo Nazaré) referindo-se ao Messias.”11

Esse é um ponto bem defini­do: “O nazireu ou nazarita não se deve confundir com o nazareno, cidadão de Nazaré, como era Jesus (…) a figura do nazireu foi refleti­da na pessoa de Cristo, que sem ter sido nazireu foi santo, imaculado, separado dos pecado­res e inteiramente devotado à von­tade de Deus (Hb 7.26).”12

Mas o que dizer então do após­tolo Paulo? Ele não teria observado o voto do nazireado?

Precisamos entender que Pau­lo viveu numa época ímpar da his­tória da igreja. Na verdade, ele aju­dou a escrevê-la. Paulo foi o após­tolo responsável pela grande tran­sição entre o judaísmo e o cristia­nismo. Ele não pode ser pego como exemplo de cristão que tentou judaizar a igreja, levando os cris­tãos a terem uma vida estritamente de acordo com os costumes judai­cos. Pelo contrário, esforçou-se no sentido de mostrar aos cristãos que a Lei havia sido um tipo que apon­tava para Cristo. Ele procurou desjudaizar a igreja. Até mesmo os judeus reconhecem isso. Ao falar sobre o costume judaico de cobrir a cabeça, a Enciclopédia Judaica diz: “A origem do costume de des­cobrir a cabeça na oração entre os cristãos pode ser atribuída a Paulo (Saul) de Tarso, judeu de nascen­ça. Quanto tentou desjudaizar a nova Igreja que havia fundado (…), assim preveniu aos fiéis: ‘Todo ho­mem que orar ou profetizar com a cabeça descoberta desonrará sua cabeça’, 1Co 11.4. ”13

A observância do voto de nazireado por parte do apóstolo dos gentios teve suas razões contextuais dentro da primeira igreja. A observância dessas práti­cas por parte do apóstolo são perfeitamente justificáveis. Stanley Horton comenta: “Isso mostraria aos crentes e a todos em Jerusa­lém que Paulo não ensinava os crentes judeus a irem contra os costumes de seus pais. Seria, tam­bém, uma resposta a todas as fal­sas coisas ditas a respeito de Pau­lo e demonstraria que o próprio Paulo andava corretamente e era observador da Lei (…) Como Pau­lo disse aos coríntios, para com os judeus fez-se judeu e para com os que estavam debaixo da Lei fez-se como se estivesse debaixo da Lei (1Co 9.20).14 Horton ainda obser­va oportunamente: “Paulo sabia que estas cerimônias judaicas não tinham valor algum no que diz res­peito à salvação, mas reconhecia que elas tinham valor simbólico ou didático para os crentes judeus. Eles realizavam essas coisas não para ganharem a salvação, nem para se colocar em relação certa com Deus, mas para expressar uma dedicação a Deus que já estava estabelecida em seus corações atra­vés de Cristo e da aceitação de sua obra na cruz.”15

Ao comentar a decisão de Pau­lo em se submeter ao voto do nazireado em Atos 21.23-26, o Co­mentário Bíblico Moody observa: “Não há nenhuma inconsistência fundamental entre o desejo de Pau­lo, na qualidade de judeu, de ob­servar a Lei e sua insistência infle­xível em que os crentes gentios não fossem colocados debaixo da Lei, uma vez que estavam sob a graça. Como nova criatura em Cris­to Jesus, nem a circuncisão ou incircuncisão tinham qualquer importância para Paulo (Gl 6.15). O evangelista (Paulo) considerava tais práticas religiosas com indife­rença, pois o mundo fora crucifi­cado para ele e ele para o mundo (Gl 6.14). Ele mesmo dizia que se um homem fosse convertido como judeu deveria permanecer judeu (1Co 7.18), pois a circuncisão em si mesma nada significava. Os cris­tãos judeus deveriam guardar a Lei como judeus, não como cristãos. Mas, quando esforços foram feitos para se impor a Lei aos cristãos gentios como base para a salvação, Paulo objetou e insistiu na liber­dade completa da Lei (…) A posi­ção de Paulo em deixar que a pru­dência determine os princípios em certos setores é uma questão tão delicada que muitos não o tem compreendido.”16

Devemos, pois, atentar para os princípios por trás da prática do apóstolo e não à prática em si. O hebraísta Antonio Neves de Mesqui­ta, ao escrever sobre essa prática, diz: “Se hoje houvesse tal costume, seria um meio de publicamente al­guém testificar que essa pessoa fora objeto de graça especial de Deus. Seria uma testemunha de Deus.”17 Neves diz que esse costume faz par­te do passado judaico, mas que en­cerra princípios. Quais? O de demonstrarmos uma vida consagrada a Deus perante a sociedade como fruto da sua graça em nossas vidas. Podemos fazer isso hoje sem ofe­recer sacrifícios de animais e indo a velórios.

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JOSÉ GONÇALVES DA COSTA GOMES, FONTE: REVISTA “REPOSTA FIEL” ANO 4 – N° 12

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