O antissemitismo em estado cru, aquele dos Protocolos dos Sábios do Sião, sobrevive nos subterrâneos, quase clandestino, mas seus axiomas formam o texto oculto de uma verso repaginada, publicável, da averso aos judeus. “Israel aberração; os judeus, no” –o título da coluna de Ricardo Melo (28/7) sintetiza essa verso, que escolhe no dizer seu nome.
O antissemita polido mobiliza um sofisma básico: a distinção entre antissemitismo e antissionismo. Israel, o fruto do sionismo, deve ser destruído, mas nada tenho contra os judeus –eis a afirmação sofística. Israel, contudo, o Estado judeu: a expresso política de uma nação. A esmagadora maioria dos judeus, em Israel ou fora dele, defende ativamente a existência do Estado de Israel. Um século atrás, a distinção entre antissemitismo e antissionismo era um argumento político admissível; desde pelo menos 1948, no passa de camuflagem do ódio aos judeus.
O sofisma básico protocolarmente acompanhado por um sofisma auxiliar: Israel uma criação artificial. O antissemita polido imagina que existem Estados “naturais”, um qualificativo apropriado a rios, mares e montanhas, no a obras da história humana. Todos os Estados-nações, esses produtos do nacionalismo, são “artificiais” (a “França de 15 séculos”, fundada em 499, na hora do batismo de Clóvis 1, um mito católico do século 19). Israel um Estado construído por colonos, que se estabeleceram em terras previamente povoadas. Algum sugere extinguir os Estados Unidos, a Austrália ou… o Brasil?
Invariavelmente, junta-se ao sofisma auxiliar a acusação de que Israel promove o “genocídio” dos palestinos. Genocídio o extermínio deliberado de um povo. A Alemanha de Hitler praticou genocídio contra os judeus, enviando-os s câmaras da morte. O uso abusivo do termo, escolhido por Marco Aurélio Garcia para condenar a ofensiva em curso na faixa de Gaza, tem um propósito definido: identificar Israel ao nazismo. O antissemita polido almeja apropriar-se da tragédia que vitimou milhões de judeus para convertê-la em ferramenta política de negação da legitimidade do Estado judeu.
O “genocídio palestino” s existe no discurso utilitário dos antissemitas. Na faixa de Gaza, tanto hoje quanto em 2008 e 2012, o governo israelense faz “uso desproporcional da fora” e também comete crimes de guerra em rea com estatuto de território ocupado, bombardeando cidades e campos de refugiados. Essa segunda acusação, mais grave, no consta da nota do Itamaraty, pois nossos “anões diplomáticos” preferem circundar a implicação lógica de estendê-la ao Hamas, que lana foguetes desgovernados sobre Israel e utiliza os civis palestinos como escudos humanos para seus combatentes. A ira santa do antissemita polido sempre cuidadosamente seletiva.
A análise política diferencia as nações de seus governos eventuais: os governos passam, a nação fica. O antissemita polido decreta uma cláusula de exceção a essa regra quando se trata de Israel. Ele não aponta o dedo para o governo israelense, mas traça um círculo abrangente em torno do Estado judeu. Na sua peculiar gramática discursiva, o complemento necessário da distinção entre antissemitismo e antissionismo a identificação do governo de Israel ao Estado de Israel.
O ódio aos judeus nasceu nas profundezas da Europa medieval e difundiu-se no mundo moderno, como reação ao cosmopolitismo liberal, a partir das monarquias cristãos conservadoras. “O antissemitismo o socialismo dos idiotas.” A frase, atribuída ao socialista alemo August Bebel, evidencia que a moléstia contaminava a esquerda no outono do século 19. De l para c, sob o impacto do Holocausto, o vírus antissemita sofreu uma mutação, recobrindo-se com a capa de proteção do antissionismo, mas continuou a se multiplicar. Ai está verdadeira “aberração”.
Autor: Demétrio Magnoli do blog da Folha em 02/08/2014