Acredito que foi Lincoln quem disse “Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo ou todas as pessoas durante algum tempo, mas você não pode enganar todas as pessoas o tempo todo.” Isso é fato: uma hora ou outra a fragilidade do erro ficará exposta. É tudo uma questão de tempo. Foi exatamente isso que ocorreu no dia 04/06/2016 no programa adventista “O Clamor da Meia-Noite”, da TV Novo Tempo, apresentado por Fernando Iglesias, no qual um texto bíblico manipulado pelo apresentador para a defesa do sábado acabou na verdade criando um efeito bumerangue, expondo a fragilidade dos argumentos sabatistas.
O propósito daquele bloco era apresentar ao auditório 04 motivos para se guardar o sábado. Depois de usar os velhos, conhecidos e surrados argumentos para explicar textos que aparentemente legitimam a guarda do sábado judaico para a igreja, ele tentou lidar com algumas objeções, dentre elas a de explicar porque certo texto bíblico afirma que Jesus violou o sábado. E aí meu amigo, ele encontrou sua derrocada, pois ao tentar explicar que Jo 5.16-18 não indica uma violação por parte de Jesus, mas uma mera acusação judaica contra o quebrantamento das regras farisaicas a respeito do sábado, ele ficou visivelmente perturbado e acabou tropeçando na própria eisegese. E por que ele fez isso? Simples: o texto é claro ao dizer que Jesus violou o sábado, acompanhe:
“E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Mas Ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.”
Por diversas vezes Iglesias perguntava à sua plateia: “Quem disse que Jesus violava o sábado? Os fariseus.” E, “Jesus violava o sábado? Não”. Neste mesmo ímpeto emocional ele prosseguiu na sentença perguntando: “Jesus fazia-se igual a Deus? Sim, ele era Deus”. Neste momento acredito que ele entendeu a contradição e passou rapidamente para outro versículo bíblico sem dar maiores explicações aos seus ouvintes da tremenda contradição em que ele acabara de cair.
O que Fernando Iglesias não explicou aos seus ouvintes
Jesus quebrantou o sábado ou apenas as regras farisaicas sobre o dia, como afirmou o apresentador do programa “O Clamor da Meia-Noite”? A resposta é sim para as duas opções. Sim Jesus quebrou o sábado junto com as regras impostas pelos fariseus. E não sou eu quem diz isso ou algum fariseu legalista, não! Ao contrário do que afirmou Iglesias, quem declarou com todas as letras que Jesus violou o sábado foi o apóstolo João, o mais intimo dos doze, preste atenção novamente:
“E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Mas Ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somenteviolava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.” (Jo 5.16-18 – destaque nosso)
João apresenta dois grandes motivos pelos quais os fariseus se opuseram a Jesus nesta passagem:
- Violar o sábado;
- Fazer-se igual a Deus.
Uma análise honesta e sensata da perícope precisa levar em consideração a dependência mútua entre as duas ideias. As duas sentenças se mantem de pé ou caem juntas. Não há como separá-las. Admitir validade para uma e não para a outra é miopia exegética ou desonestidade intelectual.
Analisaremos a segunda sentença perguntando: Jesus se fazia igual a Deus ou não? Todo o contexto aponta positivamente para a essa questão. João estava certo ao afirmar que Jesus “dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”. Suponho que até mesmo o apresentador do programa (que julgo ser trinitariano) não teria reservas em admitir tal interpretação.
Os Testemunhas de Jeová tentaram neutralizar o texto argumentando da seguinte maneira:
“Mas, quem disse que Jesus estava fazendo-se igual a Deus? Não foi Jesus. Ele se defendeu contra…acusações falsas de judeus que, como os trinitaristas, estavam tirando falsas conclusões!” (Deve-se Crer na Trindade? STV, 1989, p. 24,25)
Todavia, o texto não admite esse ponto de vista. O que João faz não é repetir uma falsa conclusão criada pelos fariseus, antes é expor sua opinião pessoal com a inequívoca e cristalina confissão a respeito da divindade plena do Filho.
Isso foi admitido até mesmo por um escritor adventista. No livro “As pretensiosas Testemunhas de Jeová”, o adventista Pedro Apolinário, refuta os TJ neste texto com o seguinte argumento: “Não encontrando nenhuma base no texto grego, em defesa de suas eternas cavilações, as Testemunhas de Jeová afirmam, que João está aqui recordando o que os judeus diziam a respeito de Cristo. Não se encontra nesta passagem nenhum resquício desta estapafúrdia idéia, porque é o próprio João que por inspiração divina afirma em alto e bom som a igualdade de Cristo com Deus. A estrutura frasal apenas admite interpretar que foi João quem afirmou, inspirado pelo Espírito Santo, e não os judeus.” (As Pretensiosas Testemunhas de Jeová. Andrews University Instituto Adventista de Ensino, 1981, p. 124 – destaque nosso)
A interpretação do senhor Apolinário está corretíssima e nós concordamos com ela. Entretanto, a posição hermenêutica do senhor Iglesias quanto à segunda sentença conduz a uma incoerência gritante com a primeira, já que ele não levou até as últimas consequências o que o verso inteiro encerra. Pelo contrário, insiste que a afirmação de João, sobre a violação do sábado, dizia respeito meramente à interpretação legalista dos fariseus e não ao sábado em si. Em outras palavras, não era João que dizia que Jesus violava o sábado, mas unicamente os fariseus, pois na mente dos adventistas o sábado para Jesus é um “mandamento moral” e, como tal, nunca poderia ser quebrantado.
Observe o que afirmou Ellen White sobre essa passagem: “pediu ao homem que levasse a cama através da cidade, a fim de publicar a grande obra de que fora objeto. Isso daria lugar à questão do que era ou não era lícito fazer no sábado, e abriria o caminho para Ele condenar as restrições dos judeus quanto ao dia do Senhor, declarando vãs suas tradições.” (O Desejado de todas as nações, CPB, p.206)
Pergunto: por que essa mudança brusca na análise das duas sentenças, sendo que ambas admitem a mesmíssima lógica em sua interpretação?
Em hipótese alguma a violação dizia respeito meramente às trinta e nove regras da Mishná que os fariseus haviam criado em torno da guarda do sábado. Admitir isso é desconsiderar completamente o tom da polêmica colocado por João.
João não deixava seus destinatários em suspense. Quando queria expor aos seus leitores o ponto de vista de terceiros ele mesmo registrava. Observe este exemplo a seguir:
“Por isso, alguns dos fariseus diziam: esse homem não é de Deus, porque não guarda o sábado” (João 9:16)
Essa parece ser uma característica de João ao escrever seu evangelho, isto é, registrar e expor o real pensamento de outros, interpretando as entrelinhas (O que eu estou afirmando pode ser comprovado lendo os seguintes versos: João 2.20-22; 6.5-6, 6. 63-64, 6.70-71; 9.21-23; 11.11-14).
Como disse certo escritor: “João não ‘socorre’ Jesus do ‘engano’ dos leitores de entenderem que o Cristo profanou o sábado”.
Caso contrário, deveríamos esperar algo do tipo: “Não que Jesus tenha profanado o sábado, mas violou apenas as regras dos fariseus sobre a guarda do dia”, como ele fez em outras ocasiões, por exemplo, em relação ao santuário: “…replicaram os judeus: em quarenta e seis anos foi edificado esse santuário, e tu, em três dias, o levantarás? Ele porém, se referia ao santuário do seu corpo.” (Jo 2.20,21)
Assim como João não estava registrando mera opinião dos fariseus de Ele ser igual a Deus, tampouco era mera opinião dos fariseus que ele havia violado o sábado. Jesus de fato, tanto era Deus, quanto quebrantou o sábado. Não há como fugir da lógica a que o versículo nos leva. É a única interpretação coerente e possível a ser admitida.
Em outra ocasião Mateus coloca na boca de Cristo as seguintes palavras: “Ou não lestes na lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado, e ficam sem culpa?” (Mateus 12.5)
Jesus estava dizendo a verdade ou não? Os sacerdotes violavam o sábado ou apenas violavam regras humanas impostas sobre o dia? Creio que a pergunta dispensa uma exegese mais sofisticada…
Se formos levar Jesus a sério e admitindo-se que os sacerdotes de fato violavam o sábado, qual a razão de Jesus não poder violá-lo sendo Ele o nosso Sumo Sacerdote?
Que Jesus violou o sábado e não apenas as regras dos Fariseus sobre o dia já ficou comprovado. É fato. Agora se apresenta outra pergunta decorrente desta: como ele fez isso? O contexto fornece alguma pista de como isso ocorreu? Sim.
“Disse-lhe Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e anda. Imediatamente o homem ficou são; e, tomando o seu leito, começou a andar. Ora, aquele dia era sábado. Pelo que disseram os judeus ao que fora curado: Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito. Ele, porém, lhes respondeu: Aquele que me curou, esse mesmo me disse: Toma o teu leito e anda.” (Jo 5.9-11 – destaque nosso)
Tomar o leito não era de modo algum regra farisaica, estava escrito na Lei de Deus, lá no quarto mandamento mesmo, “não farás obra alguma” (Êx 20. 10; Dt 5.14).
Jeremias deixa mais explícita a ordem quando profetiza: “assim diz o Senhor: Guardai-vos a vós mesmos, e não tragais cargas no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém; nem tireis cargas de vossas casas no dia de sábado, nem façais trabalho algum; antes santificai o dia de sábado, como eu ordenei a vossos pais.” (Jr 17.21,22)
A cama era uma carga? Era sim. Jesus poderia ter curado o homem em outro dia, mas preferiu fazer no sábado, poderia apenas ter curado o corpo do homem, mas insistiu que ele carregasse uma carga quebrando a lei. Ao atrelar a cura com o ato de carregar uma carga o que era terminantemente proibido pela lei, não dos fariseus, mas de Deus, Jesus estava dando o recado de superioridade sobre a Lei.
E olha que não foi a primeira vez que Jesus fez esse tipo de coisa! Em outras ocasiões disse: “ouviste o que foi dito aos antigos…Eu, porém vos digo”, Etc.
Jesus não só violava o sábado, mas incentivava os outros a violarem também.
Jesus violou o sábado? Sim. Ele poderia muito bem fazer isso, pois como era “igual a Deus”, não estava sujeito a lei do sábado, pois Jesus era “maior” que o “templo”, maior que “Salomão”, maior que “Jonas” e maior que o “sábado”. O sábado foi feito para o homem e não para o Messias. Ele era Senhor sobre o dia e podia modificar as regras quando quisesse.
Como vimos, o texto é claro: Jesus quebrou o sábado. O problema, no entanto, não se concentra no texto em si, mas no pressuposto exegético adventista de que o sábado é um mandamento moral, portanto, inviolável. O que não é verdade.