O que está errado com o Calvinismo?

Calvinismo

Nota do CACP: O texto abaixo é escrito por um teórico arminiano. Como já informamos, temos em nosso grupo de colaboradores calvinistas moderados, arminianos e wesleyano… O texto abaixo faz parte de vários artigos incluídos na coluna de debates evangélicos.

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Um dos mais longos debates na história da teologia diz respeito à relação entre a predestinação e a liberdade humana. De um lado desta disputa o nome mais famoso é de João Calvino, e do outro o nome mais conhecido é provavelmente John Wesley. Embora Wesley estivesse preocupado com a evangelização e a renovação da igreja, a própria natureza de seu trabalho exigia que ele tomasse posições sobre certos assuntos polêmicos. Talvez o mais significativo desses envolvesse suas disputas com o Calvinismo; de fato, seu trabalho sobre estas questões representa uma de suas mais importantes contribuições para a teologia histórica.

Apresso-me a acrescentar que esta disputa está longe de ser meramente uma relíquia da história que os cristãos contemporâneos podem ignorar. Alguns anos atrás eu fui coautor de um livro sobre o Calvinismo com um colega e outro amigo acadêmico perguntou se não estávamos simplesmente batendo em um cavalo morto. A resposta é, decididamente, não! Quem está prestando atenção está bem ciente que o Calvinismo não só está vivo, está também florescendo. E o que pode vir a surpreender alguns é que ele está florescendo entre os crentes jovens de faculdades e até mesmo entre aqueles com idade para o ensino médio. Este ressurgimento do Calvinismo foi documentado em uma recente reportagem de capa na revista CHRISTIANITY TODAY, intitulada “Jovens, inquietos e reformados” (cf.http://www.christianitytoday.com/ct/2006/september/42.32.html).

Enquanto os debates sobre o Calvinismo são normalmente vigorosos e altamente enérgicos, muitas vezes os disputantes deixam escapar as verdadeiras questões que dividem os dois lados. Isto não é surpreendente, pois compreender as questões exige apreender algumas distinções sutis, particularmente no que diz respeito à forma como a liberdade humana é definida pelos lados opostos. Às vezes se pensa que as divergentes opiniões sobre a liberdade representam o mais profundo fosso entre calvinistas e wesleyanos. Este certamente não é o caso, mas se faz necessário ser claro sobre as diferentes explicações sobre a liberdade para verdadeiramente ver as questões mais profundas.

Antes de afirmar as diferenças, é importante ser claro sobre o importante fundamento que Wesley compartilhava com seus oponentes calvinistas. Em primeiro lugar, eles concordavam com a doutrina da depravação total, a doutrina que o pecado afetou todos os aspectos da vontade humana e nos incapacitou de obedecer a Deus e cumprir sua vontade. Além disso, Wesley e seus oponentes concordavam que nem todos finalmente serão salvos. Assim, a primeira grande questão entre os dois lados tinha a ver com a explicação de por que nem todos são salvos. A resposta calvinista é que Deus incondicionalmente escolhe salvar alguns da massa de pecadores caídos, e ignorar o restante, que são consequentemente condenados. Os eleitos que são escolhidos para salvação recebem o dom da graça irresistível; ou seja, Deus age em seus corações e vontades de tal modo que eles não podem senão responder favoravelmente ao convite do evangelho.

E, todavia, os calvinistas insistem, a resposta à graça, no entanto, é livre. Considere este trecho da “Confissão de Westminster” descrevendo a obra de Deus nas vidas dos eleitos. Essa obra tem o efeito de “iluminar os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando-lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça” (X.1). Note particularmente a última linha, que diz que “eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça”. Esta linha é muito reveladora para nos ajudar a compreender a visão calvinista da liberdade.

A essência da visão – às vezes chamada de “determinismo suave” e às vezes de “compatibilismo” – é que a liberdade é compatível com o determinismo. Ou seja, uma escolha pode ser livre mesmo que ela seja completamente determinada por causas anteriores. Em particular, os calvinistas afirmam que Deus determina tudo o que acontece, inclusive nossas escolhas.

Às vezes se pensa que o Calvinismo ensina que Deus nos força a fazer coisas contra a nossa vontade ou nos compele contra os nossos desejos. Contudo, este é um grave equívoco sobre o Calvinismo. Olhe novamente para a passagem acima. Ela diz que Deus ilumina as mentes dos eleitos, que renova as suas vontades, muda seus corações, e assim por diante. Por conseguinte, Deus não faz os eleitos agirem contra as suas vontades; antes, ele muda as suas vontades de forma que quando eles vêm a Cristo, eles fazem de bom grado. Na verdade, eles não podiam fazer outra coisa – isso é que torna a graça irresistível – mas dado a forma como Deus os mudou internamente, eles não querem fazer o contrário. Eles fazem exatamente o que Deus determinou que fizessem, e eles fazem exatamente o que desejam fazer. Eles são ambos determinados e livres, no sentido que eles fazem o que querem fazer. Deus faz com que eles tenham as crenças e desejos que têm, e eles agem em conformidade com esses desejos.

Agora vamos nos voltar para Wesley para ver como ele explicava por que alguns não são salvos. Aqui está como ele afirmava a questão entre ele mesmo e seus oponentes calvinistas. “Você pode me levar, por um lado, a menos que eu me contradiga ou retraia meus princípios, a confessar uma medida de livre arbítrio em cada homem… e, por outro, posso levar você, e todos os outros defensores da eleição incondicional, a menos que você se contradiga ou retraia seus princípios, a confessar a reprovação incondicional”. Note: Wesley diz que seus princípios o levam a “confessar uma medida de livre arbítrio em cada homem”. E esta é a sua resposta à pergunta de por que alguns não são salvos.

Na opinião de Wesley, Deus restaura aos pecadores caídos uma medida de liberdade que lhes permitem aceitar o evangelho e ser salvos, ou rejeitá-lo. Esta é uma parte essencial de sua famosa doutrina da “graça preveniente”, uma doutrina que é a contraparte em seu sistema teológico da doutrina da eleição incondicional no Calvinismo. A graça preveniente capacita todas as pessoas a responder ao evangelho e ser salvas, então ninguém é incondicionalmente eleito como no Calvinismo. Pelo contrário, a eleição é condicional a uma resposta positiva à graça preveniente de Deus. Aqueles que aceitam essa graça e perseveram nela serão salvos, enquanto que aqueles que persistem em rejeitá-la serão perdidos. Assim, a explicação de Wesley de por que alguns se perdem é profundamente diferente da resposta calvinista. Eles não se perdem porque não foram eleitos; antes, eles não são eleitos porque escolhem livremente permanecer perdidos.

A visão de Wesley da liberdade é muito diferente da visão calvinista. Para ele é uma contradição em termos dizer que uma escolha pode ser ambas determinada e livre. Uma escolha verdadeiramente livre é aquela em que a pessoa envolvida poderia ter escolhido de outra forma. Novamente, todas as pessoas são capacitadas ou habilitadas a aceitarem o evangelho e serem salvas, mas ninguém é determinada a agir assim.

É importante ressaltar o lugar que essa visão da liberdade tem na estrutura do pensamento de Wesley. Observe que é algo que ele deve afirmar, sob pena de inconsistência, se ele for permanecer fiel aos seus princípios. Assim, sua visão da liberdade é uma implicação de princípios mais profundos que ele possui. E os calvinistas, ele insiste, devem afirmar a reprovação incondicional, se forem consistentes.

Agora, é isso que para Wesley é simplesmente inconcebível e totalmente em desacordo com a descrição bíblica de Deus. E aqui começamos a abordar as mais profundas diferenças entre Wesley e o Calvinismo. Para trazer estas diferenças em foco, precisamos refletir sobre uma implicação fundamental da visão calvinista da liberdade, a saber: se a liberdade e o determinismo forem compatíveis, então Deus poderia salvar todas as pessoas mantendo suas liberdades intactas. É por isso que Wesley acha abominável o conceito calvinista da reprovação. De acordo com ele, Deus escolhe destinar à condenação pessoas que ele poderia facilmente salvar, sem anular as suas liberdades.

Se a questão for considerada apenas do ponto de vista do poder de Deus, Wesley concordaria que Deus poderia ter criado um mundo no qual ele determinasse todas as coisas. Mas se ele tivesse escolhido determinar todas as coisas, o mundo seria um lugar bem diferente do que é. Se Deus determinasse todas as coisas, o mundo não seria cheio de pecado e miséria. E, certamente, Deus não determinaria que ninguém se perdesse se ele pudesse salvá-los sem anular as suas liberdades.

Assim, agora fica claro que a diferença fundamental entre a teologia calvinista e a wesleyana é, em última análise, uma visão profundamente diferente do caráter de Deus. Não é uma questão do que Deus podia fazer (poder), mas do que ele queria fazer (caráter). Se ele pudesse salvar a todos sem destruir suas liberdades, ele certamente faria isso. Se ele pode mas não quer, ele não pode ser perfeitamente bom ou amoroso.

É por isso que a visão de Wesley da liberdade humana é uma implicação de princípios mais fundamentais que têm a ver com o amor e a bondade de Deus. Se há um grande mal no mundo, e alguns, talvez muitos, finalmente se perdem, isso deve ser explicado em termos de liberdade humana. Novamente, se Deus determinasse escolhas da maneira que ensinam os calvinistas, ele não determinaria o mal, e, em última análise, a condenação.

Uma implicação prática desta profunda diferença é a forma como entendemos e pregamos o evangelho. Particularmente, nós acreditamos e pregamos que Deus genuinamente ama todas as pessoas? Enquanto os wesleyanos podem sinceramente afirmar isso, é difícil para os calvinistas fazer a mesma coisa sem serem hipócritas. Pois não há sentido inteligível em que pode ser afirmado que Deus ama as pessoas que ele escolheu não salvar, pessoas que ele poderia salvar sem sobrepor suas liberdades (como os calvinistas a definem) mas que escolheu não salvar. É porque o próprio núcleo do evangelho está envolvido nesta controvérsia clássica que Wesley foi tão intensamente sensível a ela, e também por que os cristãos contemporâneos devem continuar dedicando-se a esta questão com sábia preocupação.

Fazer isso requer um esforço sério para adquirir uma clara compreensão, não apenas dos conceitos filosóficos e teológicos que tenho abordado neste ensaio, mas também uma profunda compreensão da narrativa bíblica. Textos-prova não irão estabelecer a questão para um dos lados. Somente um confronto honesto com a Escritura, junto com uma rigorosa clareza das afirmações das verdades teológicas desenvolvidas por cada lado é que permitirá uma avaliação precisa das duas tradições, mostrará como eles divergem e deixará claro o que está em jogo quando o fazem.

Jerry Walls, John Wesley Fellow e editor do Manual Oxford de Escatologia (Oxford University Press, 2007).

Tradução: Berilso de França

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