A Bíblia deixa claro que nós podemos agir livremente, ao invés de sermos robôs programados apenas para seguir comandos de uma divindade no Céu. Pedro diz:
“Vivam como pessoas livres, mas não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal” (1ª Pedro 2:16)
Para Pedro, o fato de que somos livres é indiscutível. O ponto em disputa é o que fazemos com essa liberdade. Somos livres, mas devemos usar essa liberdade para fazer o bem, e não o mal. Isso passa nitidamente a ideia de seres livres para optarem realmente pelo bem ou pelo mal, e não seres robotizados que apenas seguem uma direção determinista prévia, que não são livres e nem podem fazer uso dessa liberdade.
Ele também diz:
“Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto” (1ª Pedro 5:2)
Voluntariamente é pela própria vontade. De forma livre, e não de forma forçada, como se uma força superior externa tivesse domínio sobre as pessoas de modo que elas não pudessem agir diferente da forma que agem. A palavra grega empregada por Pedro aqui é hekousios, que, de acordo com a Concordância de Strong, significa: “voluntariamente, de boa vontade, de acordo consigo mesmo”[1]. O apóstolo Paulo segue na mesma linha e diz:
“Mas não quis fazer nada sem a sua permissão, para que qualquer favor que você fizer seja espontâneo, e não forçado” (Filemom 1:14)
O favor “espontâneo” é algo livre, ao invés de algo forçado ou coagido, seja por forças internas ou externas. A ideia é a mesma do texto de Pedro. Paulo ainda diz:
“Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; pelo contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor” (Gálatas 5:13)
Mais uma vez, vemos que Paulo, assim como Pedro, não tinha qualquer hesitação em expor que somos “livres”. Isso não era um ponto de discussão, mas sim o que fazemos com essa liberdade. Podemos usar nossa liberdade para agradar a carne ou para agradar a Deus. O calvinista rígido não pode conceber nem um nem outro, pois crê que nós não somos, de fato, livres, para podermos agir de uma forma ou de outra por conta própria.
Outro conjunto de textos que nos indicam o livre-arbítrio são os que falam das ações feitas “por iniciativa própria”:
“Por iniciativa própria eles nos suplicaram insistentemente o privilégio de participar da assistência aos santos” (2ª Coríntios 8:3-4)
“Pois Tito não apenas aceitou o nosso pedido, mas está indo até vocês, com muito entusiasmo e por iniciativa própria” (2ª Coríntios 8:17)
Para os calvinistas, a iniciativa parte sempre de Deus, que é sempre a causa primeira das nossas ações, de modo que nossos atos são externamente determinados ao invés de autocausados. Paulo se opõe a este conceito ao dizer que os Macedônios e Tito tiveram iniciativa própria, e não externa, em suas ações. Em outras palavras, a iniciativa partiu deles mesmos[2]. Da mesma forma, Paulo escreve em 2ª Coríntios 9:7:
“Cada um dê conforme determinou em seu coração, não com pesar ou por obrigação, pois Deus ama quem dá com alegria” (2ª Coríntios 9:7)
Como vemos, é a própria pessoa que determina em seu próprio coração (ou seja: atos autodeterminados), e não Deus que determina as ações do homem. A contribuição, para Paulo, não seria de acordo com aquilo que Deus determinou no coração de cada um, mas conforme aquilo que as próprias pessoas determinaram em seus próprios corações. Esta é a evidência bíblica mais forte de atos autocausados, e, consequentemente, do livre-arbítrio. As pessoas determinam suas próprias ações, em seu próprio coração.
Outro grupo de versículos que provam o livre-arbítrio são os que denotam escolha. Como já vimos, é inconcebível a ideia de Deus nos dar opção de escolha quando ele já escolheu por nós. Isso seria uma opção falsa, para não dizer enganação. Deus estaria iludindo o homem para que este pensasse que podia mesmo escolher, quando não tinha a mínima capacidade disso.
Em outras palavras, é como se Deus quisesse que pensemos que temos livre-arbítrio, quando não temos. Mas Deus não é Deus de confusão (1Co.14:33), nem é enganador. Ele não ilude ninguém e nem pode mentir (Tt.1:2). Se existem escolhas, o homem pode escolher livremente. Sendo assim, os calvinistas rígidos teriam que explicar textos como estes:
“Escolham hoje a quem irão servir” (Josué 24:15)
“Se vocês obedecerem fielmente ao Senhor, ao seu Deus, e seguirem cuidadosamente todos os seus mandamentos que hoje lhes dou, o Senhor, o seu Deus, os colocará muito acima de todas as nações da terra (…) Entretanto, se vocês não obedecerem ao Senhor, ao seu Deus, e não seguirem cuidadosamente todos os seus mandamentos e decretos que hoje lhes dou, todas estas maldições cairão sobre vocês e os atingirão” (Deuteronômio 28:1,15)
“Se você voltar, ó Israel, volte para mim’, diz o Senhor. ‘Se você afastar para longe de minha vista os seus ídolos detestáveis, e não se desviar, se você jurar pelo nome do Senhor, com fidelidade, justiça e retidão, então as nações serão por ele abençoadas e nele se gloriarão’” (Jeremias 4:1-2)
“Escolhi o caminho da fidelidade; decidi seguir as tuas ordenanças” (Salmos 119:30)
“Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Deuteronômio 30:19)
“Assim diz o Senhor: ‘Estou lhe dando três opções de punição; escolha uma delas, e eu a executarei contra você’” (2ª Samuel 24:12)
Laurence Vance comenta:
“Note o que mais a Bíblia diz sobre o livre-arbítrio: ‘Por mim se decreta que no meu reino todo aquele do povo de Israel, e dos seus sacerdotes e levitas, que quiser ir contigo a Jerusalém, vá’ (Es 7.13). Adão e Eva tinham livre-arbítrio (Gn 2.16). Durante o tempo dos juízes o povo ‘se ofereceu voluntariamente’ (Jz 5.2). Davi encorajou Salomão a servir a Deus ‘com uma alma voluntária’ (1Cr 28.9). Durante o tempo de Neemias, algumas pessoas ‘voluntariamente se ofereciam para habitar em Jerusalém’ (Ne 11.2). No Novo Testamento, vemos que as promessas da oração estão baseadas sobre o livre-arbítrio: ‘Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito’ (Jo 15.7)”[3]
Outro caso que desperta a atenção é o de Caim. Deus aceitou a oferta de Abel e rejeitou a de Caim, porque este não deu das primícias, como seu irmão[4]. Então, a Bíblia diz:
“Por isso Caim se enfureceu e o seu rosto se transtornou. O Senhor disse a Caim: ‘Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo’” (Gênesis 4:6,7)
Tudo isso nos passa vividamente a ideia de que Caim possuía livre-arbítrio. Ele não foi obrigado a pecar. Ele pecou porque ele quis. Deus não determinou o pecado de Caim, senão de modo nenhum teria dito que poderia fazer o bem e seria aceito. Mas se não havia qualquer possibilidade de Caim não pecar (pois Deus já havia determinado que ele pecaria), então Ele estava sendo sádico e falso com Caim, apresentando-lhe uma falsa possibilidade, a qual ele nunca poderia optar.
Da mesma forma, Deus diz que o pecado (o desejo pelo pecado, a tentação) “está à porta”, mas que Caim teria que ter controle sobre esse desejo. Isso mostra, em primeiro lugar, que há a possibilidade de agir diferente do desejo mais forte, contra o que ensinava Edwards[5]. Em segundo lugar, isso nos mostra mais uma vez que Caim tinha uma opção real. Ele, de fato, poderia ter dominado aquele desejo pecaminoso, e a única forma de ele dominá-lo é se ele possuía livre-arbítrio para poder optar pelo bem ou pelo mal, pelo pecado ou pela santidade. Sem o livre-arbítrio, Caim não tinha escolha e nada neste texto faria sentido algum.
Outro texto que implica em livre-arbítrio é o de Gênesis 15:16, onde Deus diz:
“Na quarta geração, os seus descendentes voltarão para cá, porque a maldade dos amorreus ainda não atingiu a medida completa” (Gênesis 15:16)
Mesmo Deus sabendo (pela presciência) que os habitantes de Canaã não iriam se arrepender dos seus pecados, ainda assim ele esperou quatro gerações até que os pecados deles atingissem a medida completa. Se não existisse livre-arbítrio, dificilmente Deus teria que esperar pacientemente uma ação humana para depois tomar uma atitude. Ele teria simplesmente agido, já que o livre-arbítrio ou as atitudes humanas não influenciam em nada o decreto divino, segundo os calvinistas. Aqui Deus respeita o livre-arbítrio humano e lhes dá tempo para se arrependerem, mesmo sabendo que não iriam se arrepender.
Finalmente, há também aquelas passagens – as quais trataremos mais adiante, no tópico sobre o determinismo na Bíblia – que dizem abertamente que o propósito ou vontade de Deus foi rejeitado pelos homens. Mateus 23:37, como já vimos, diz que Jesus queria ajuntar Jerusalém como a galinha ajunta seus pintinhos debaixo das suas asas, mas eles não quiseram. Como consequencia disso, a “casa” deles ficou deserta (Mt.23:38).
Se não existe livre-arbítrio, então foi Deus que determinou a rejeição dos israelitas e Deus que determinou também que eles seriam punidos por causa da própria determinação dEle! Além disso, Jesus estaria sendo completamente insincero em dizer que Deus muitas vezes quis ajuntar Jerusalém para si, quando, na verdade, o que Deus havia feito mesmo foi decretar o contrário, de forma imutável e incondicional. Sem o livre-arbítrio, este texto é o maior nonsense de toda a Bíblia.
Outro texto semelhante é o de Lucas 7:30, que diz:
“Mas os fariseus e os peritos na lei rejeitaram o propósito de Deus para eles, não sendo batizados por João” (Lucas 7:30)
Deus tinha um propósito da vida de cada um dos fariseus, mas eles rejeitaram este plano de Deus para eles. Se o livre-arbítrio não existe, então Jesus mentiu quando disse que o propósito de Deus para eles era que eles fossem batizados por João, quando, na verdade, já havia determinado exatamente o contrário. Ou Deus tem dois planos contraditórios e conflitantes entre si, dizendo uma coisa e fazendo o contrário, ou os fariseus realmente, por seu próprio livre-arbítrio, se opuseram e resistiram ao plano individual de Deus para a vida deles. Aqui é valioso o comentário de Clark Pinnock, que disse:
“Jesus deixou claríssimo que os fariseus ‘rejeitaram, quanto a si mesmos, o desígnio de Deus’ (Luc. 7:30). Não estavam numa posição em que poderiam impedir’ a consecução da vontade de Deus para o mundo todo, mas podiam rejeitá-la totalmente, para si mesmos”[6]
Ainda que ninguém possa resistir ao plano geral de Deus para toda a humanidade (por exemplo, ninguém pode impedir a volta de Jesus, da mesma forma que ninguém poderia impedir o nascimento dele), as pessoas podem resistir e se opor ao plano individual de Deus na vida delas. É por isso que pessoas se perdem e caminham para a morte eterna. Não é porque Deus, de forma negligente e tirânica, não tinha nenhum propósito para a vida delas a não ser a morte, mas sim porque elas, deliberadamente e por seu próprio livre-arbítrio, rejeitaram o plano de redenção que era o propósito de Deus para elas.
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[1] Concordância de Strong, 1596.
[2] É verdade que em alguns casos a iniciativa parte de Deus, e não do homem, como quando em certa ocasião Paulo diz que “Deus pôs no coração de Tito o mesmo cuidado que tenho por vocês” (2Co.8:16). Em resposta a isso, é necessário reafirmar que nenhum arminiano indeterminista crê que a iniciativa parte sempre do ser humano. Nem todos os atos são autocausados, mas muitos atos o são. Arminianos não negam que certas coisas são externamente determinadas. Em segundo lugar, quando o texto diz que “Deus pôs”, se refere à vontade, que, à luz da Bíblia, trata-se de uma oferta que pode ser aceita ou rejeitada livremente pelo ser humano, e não uma vontade irresistível (cf. Lc.7:30; Mt.23:37). Assim sendo, mesmo nas vezes em que Deus coloca uma vontade no coração do homem, ao invés da vontade humana ser autocausada, isso não implica em um ato autocausado, a não ser que o texto diga que Deus não apenas colocou a vontade, mas também a colocou de modo irresistível. Iremos estudar mais sobre isso no tópico que trataremos sobre o pensamento compatibilista de Jonathan Edwards.
[3] VANCE, Laurence M. O outro lado do calvinismo.
[4] As primícias eram os “primeiros frutos”, os mais importantes. O verso 4 diz que Abel ofereceu “as partes gordas das primeiras crias do seu rebanho”, ou seja, aquilo que ele tinha de melhor. Caim, por sua vez, apenas “trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor”, não a mais importante, mas uma qualquer. É por isso que Deus aceitou a oferta de Abel, que colocou Deus em primeiro lugar, e rejeitou a de Caim, que colocou Deus em segundo plano.
[5] Iremos abordar o determinismo moderado de Edwards alguns tópicos adiante.
[6] PINNOCK, Clark H. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 78.
Fonte: – “Calvinismo X Arminisnismo” cedido pela comunidade Arminiana do facebook.