Leitura: Mateus 16.13-23; I Pedro 2.5 Mateus 18.18; 26.31-41, 69-75; Marcos 14.54,66-68.
A estabilidade é outra das qualidades que se deve encontrar na vida de todo obreiro cristão. Infelizmente, muitos crentes são extremamente inconstantes. O seu humor se altera com as condições atmosféricas, de tal modo que por muitas vezes se tornam brinquedos das circunstâncias; em conseqüência, não se pode depender deles. Suas intenções são boas, mas, em vista de serem emocionalmente instáveis, freqüentemente perdem a estabilidade.
A Bíblia retrata para nós um homem de temperamento irresoluto, que conhecemos pelo nome de Simão Pedro. Certo dia o Senhor perguntou aos Seus discípulos quem o povo pensava que Ele era, ao que eles retrucaram que alguns julgavam-No ser João Batista, outros pensavam que Ele fosse Elias, ao passo que ainda outros viam Nele Jeremias ou algum dos profetas. Então Ele fez a mesma pergunta aos discípulos, dizendo: “Mas vós, quem dizeis que eu sou? ”
A resposta de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, provocou de imediato a réplica de Jesus: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mateus 16.13-18).
Note-se a declaração: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Parece que o Senhor tinha em mente o contraste que estabelecera, no Sermão da Montanha, entre o sábio que edificou a sua casa sobre a rocha, em razão do que ela pôde resistir à tempestade e à inundação, e o insensato que edificou a sua casa sobre a areia, e sob o mesmo embate das intempéries esta ruiu completamente. Por mais que a Igreja seja sujeitada a pressões, jamais poderá entrar em colapso, visto estar firmemente estabelecida sobre a Rocha, que é Jesus Cristo.
Em data posterior, Pedro escreveu as seguintes palavras: “Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual” (I Pedro 2.5). A estrutura superior da Igreja se compõe da mesma substância de que é formado o seu alicerce; e assim como a estabilidade caracteriza o alicerce, igualmente caracteriza o edifício inteiro. A estabilidade, pois, é um distintivo necessário do caráter de todo obreiro cristão, pois cada qual é uma “pedra que vive”. Cristo disse a Pedro: “Tu és Pedro” (em grego, petros, uma pedra) “e sobre esta pedra” (em grego, petra, rocha) “edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Uma pedra que faça parte de um edifício não é uma rocha imensa, à semelhança do alicerce; porém, embora o alicerce e a estrutura superior sejam diferentes quanto às suas dimensões, no tocante à substância são do mesmo material. Cada um daqueles que participam do edifício da Igreja poderá ser pequeno em suas medidas, mas no tangente à sua natureza em nada difere do Cabeça da Igreja.
Observemos em seguida como prossegue a passagem que acabamos de citar: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus”. Essa promessa, aqui dirigida a Pedro, também foi feita, mais tarde, à Igreja toda (ver Mateus 18.18). É claro que Pedro ouviu essas palavras como um indivíduo, mas foi em sua capacidade de ministro de Cristo que as chaves do reino dos céus lhe foram confiadas. Foram-lhe entregues aquelas chaves a fim de que pudesse agir como quem abre as portas; e ele atuou claramente nessa capacidade, no dia de Pentecoste e, posteriormente, na casa de Cornélio. Na primeira instância, ele abriu a porta do reino dos céus para os judeus, e, no segundo caso, para os gentios. Entretanto, quando o Senhor Jesus se dirigiu a Pedro, em Cesaréia de Filipe, o caráter desse apóstolo não correspondia ainda ao seu nome, pois naquela altura dos acontecimentos era incapaz de fazer uso das chaves do reino dos céus. Todavia, quando, pela graça do Senhor, foi libertado da instabilidade que o caracterizava até então, e se tornou um ministro de Cristo, firme como uma rocha, pôde usar as chaves que lhe haviam sido conferidas, e pôde valer-se da autoridade de abrir ou fechar.
Nenhum indivíduo marcado por um temperamento irresoluto pode exercer um ministério dessa natureza. Deve haver equiparação entre o caráter do ministro e o caráter do ministério. Ambos devem trazer o caráter da Igreja contra a qual as portas do inferno jamais poderão prevalecer. Infelizmente, contudo, as portas do inferno prevalecem contra muitos obreiros cristãos em vista de serem sempre vacilantes; por esse motivo, não se pode depender deles na obra do Senhor. A menos que essas naturezas instáveis sejam transformadas, seremos incapazes de funcionar no ministério específico do qual tenhamos sido incumbidos; mas, louvado seja o Senhor, Ele conta com recursos plenamente capazes de transformar o nosso caráter, tal como transformou o de Pedro. Ele pode abordar qualquer espécie de fraqueza que porventura esteja maculando as nossas vidas, e pode reconstituir-nos de tal maneira que nos tornemos aptos para o Seu propósito.
A Bíblia esclarece que foi por revelação que Pedro foi capaz de reconhecer que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo. Jamais teria podido fazer sozinho essa maravilhosa descoberta, nem poderia outro homem ter-lhe implantado tal conhecimento; mas Deus é que lhe fizera saber disso. A partir do momento em que Pedro fez sua confissão, Jesus começou a falar aos discípulos acerca dos sofrimentos que já esperavam por Ele para breve; e lhes falou abertamente sobre a Sua iminente crucificação e ressurreição, após o que Pedro, “chamando-o à parte, começou a reprová-lo, dizendo: Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá. Mas Jesus, voltando-se, disse a Pedro: Arreda! Satanás” (Mateus 16.22,23).
Podemos observar como o pêndulo inclinou-se subitamente para o lado oposto. Pedro, que tão recentemente atingira tão sublimes alturas na sua experiência espiritual, agora caía em abismos perigosos. Nem bem acabamos de ouvir o Senhor reconhecendo que Pedro recebera magnífica revelação divina, e imediatamente O ouvimos dizer que o apóstolo servia de instrumento nas mãos de Satanás. Num momento Pedro declarava ao Senhor: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo; mas, no instante seguinte, começou a repreendê-Lo. Esses dois momentos, tão próximos um do outro, estavam separados um do outro, espiritualmente falando, como os povos se opõem um ao outro; e o mesmo homem que fora um vaso da revelação divina, naquele brevíssimo espaço de tempo, se transformara em instrumento de Satanás, mediante o qual este procurava impedir que o Senhor galgasse à cruz.
O Senhor, porém, reagiu de pronto, e, dirigindo-se diretamente a Pedro, a quem tão recentemente declarara “Bem-aventurado és tu”, agora lhe dizia: “Arreda! Satanás”. Brevíssimo período se escoara desde que Ele declarara “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Mas como poderia um homem, vencido pessoalmente por Satanás, ser usado para edificar a Igreja, acerca da qual o Senhor declarara que as portas do inferno jamais prevaleceriam contra ela? Se Pedro tivesse de ser alguma vez usado, certamente teria de passar por uma transformação fundamental. E foi exatamente isso que aconteceu. Examinemos o relato segundo se acha registrado no capítulo vinte e seis do evangelho de Mateus.
Quando os discípulos estavam reunidos em torno do Senhor, após a celebração da páscoa, Jesus lhes disse: “Esta noite todos vós vos escandalizareis comigo; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão dispersas”. Pedro, entretanto, com sua característica impulsividade, protestou imediatamente: “Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o serás para mim”. Pedro estava claramente contradizendo ao Senhor, mas ao fazer assim usava de uma bravata: estava convencido de que expressava a verdade. Foi devido ao fato que Pedro confiava tão firmemente em si mesmo que o Senhor reforçou a Sua declaração geral a respeito de todos os discípulos, e, dirigindo-se pessoalmente a Pedro, para que não mais restasse dúvida alguma de que ele também estava incluído no número daqueles que O abandonariam, Jesus acrescentou detalhes que descreviam a profundeza a que Pedro cairia, ao desertar do Senhor. Porém, tão arraigada era a auto-confiança de Pedro que todas as afirmações do Senhor não tiveram o dom de convencê-lo; e ele protestou, mais veementemente do que nunca: “Ainda que me seja necessário morrer contigo, de modo nenhum te negarei”. Pedro não estava tentando enganar a quem quer que fosse: era sincero em cada palavra que dizia. Amava ao Senhor e queria segui-Lo sem reservas. Ao falar como o fez, expressava de todo o coração o seu desejo; mas equivocava-se, por não ser o homem que julgava ser. Pedro desejava pagar o preço supremo para seguir ao Senhor, mas não pertencia à categoria de homem que pensava ser; não era capaz de pagar tal preço.
Pouco depois de Pedro haver feito suas reiteradas declarações de que seguiria ao Senhor a qualquer custo, o Senhor disse a ele e aos outros dois discípulos que levara Consigo em particular, até o jardim do Getsêmani: “A minha alma está profundamente triste até à morte; ficai aqui e vigiai comigo”. Mas todos os três caíram no sono. Novamente o Senhor se dirigiu especificamente a Pedro, dizendo-lhe: “Então, nem uma hora pudestes vós vigiar comigo? ” Porém, não esperou pela resposta de Pedro; mas Ele mesmo forneceu a resposta: — “O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”. Sim, assim era Pedro. Estava tão pronto, mas era tão fraco.
Em um próximo instante a cena foi alterada novamente. E Pedro mudou conforme as circunstâncias. Uma grande multidão viera aprisionar a Jesus, e as emoções de Pedro foram despertadas. Estendeu a mão, puxou da espada e decepou a orelha do servo do sumo sacerdote. Não era essa uma prova de sua disposição de morrer em companhia de seu Senhor? Mas, esperem um instante. Jesus foi detido, e agora está sendo levado sozinho. Para onde ter-se-ia ido Pedro? ‘Então os discípulos todos, deixando-o, fugiram”. Pedro havia desertado a seu Senhor.
Marcos registra: “Pedro seguira-o de longe até ao interior do pátio do sumo sacerdote e estava assentado entre os serventuários, aquentando-se ao fogo” (14.54). Subitamente, uma das criadas do sumo sacerdote o reconheceu e exclamou: “Tu também estavas com Jesus, o Nazareno. Mas ele o negou, dizendo: Não o conheço, nem compreendo o que dizes” (versículos 67 e 68). Seria esse o mesmo Pedro, que ainda naquele dia ousara cortar fora a orelha do servo do sumo sacerdote? Sim, era Pedro, realmente, mas agora tão dominado pelo temor, quando uma simples criada do sumo sacerdote o identificava como um dos discípulos, que chegou ao ponto de renegar ao seu Senhor. Há poucos minutos queria segui-Lo a todo custo, ainda que isso significasse perder a própria vida, mas agora queria preservá-la a todo custo. A grande explosão emotiva que se apoderara dele já havia amainado; e enquanto Jesus sofriaopróbrios no salão de julgamento, Pedro procurava evitar qualquer ligação com os Seus sofrimentos. Por conseguinte, mudou de lugar e foi para o pórtico. Ali conseguiu ouvir outro servo, que dizia a alguns dos presentes: “Este é um deles”, e imediatamente se viu compelido a fazer nova negação. Escreve Mateus: “E ele negou outra vez, com juramento: Não conheço tal homem” (26.72). Não se passou muito tempo quando outras pessoas, que se achavam de pé, aproximaram-se dele e lhe disseram: “Verdadeiramente és também um deles, porque o teu modo de falar o denuncia. Então começou ele a praguejar e a jurar: Não conheço esse homem” (versículos 73 e 74). Porventura tratar-se-ia do mesmo Pedro, este homem que agora negara ao Senhor por três vezes, que negara conhecê-Lo em meio a juramentos e pragas? Sim, era Pedro, verdadeiramente.
O problema de Pedro não era algo meramente superficial. Havia uma falha fundamental em seu caráter. Ele se deixava controlar pelas suas emoções, e a sua conduta era sempre imprevisível, tal como o comportamento de todos aqueles que são controlados pelos sentimentos. O entusiasmo dessa gente as eleva, ocasionalmente, a alturas excelsas; noutras ocasiões, a depressão as conduz às maiores profundezas. É possível que tais pessoas recebam a revelação divina, mas também é possível que sirvam de obstáculo no caminho dos propósitos divinos. Inclinam-se por falar e agir com precipitação, sob a pressão de algum impulso súbito, mas esse impulso não tem origem divina. Muitos problemas na obra do Senhor surgem por causa desse defeito radical nas vidas de Seus servos; e visto que a dificuldade é radical, ela requer uma correção radical.
Pedro era possuidor de um caráter franco. Não era dado à diplomacia ou às meias medidas; mas era dotado de emoções fortes, e confiava nessas emoções, até que a prova por que passou certo dia mostrou que ele não era homem de devoção inflexível ao Senhor, conforme os seus sentimentos o tinham levado a acreditar.
Irmãos e irmãs, é tragicamente possível que nosso suposto amor ao Senhor não passe de pouco mais que um apego sentimental. Nossas relações emocionais para com o Seu amor não são necessariamente tão profundas nem tão puras como pensamos. Sentimos que O amamos totalmente; mas vivemos tanto no campo da alma que julgamos ser do tipo de pessoas que sentimos que somos. Sentimos que queremos viver exclusivamente para Ele e que queremos morrer por Ele, se Ele assim o desejar; mas, se o Senhor não destruir a nossa auto-confíança. como destruiu a de Pedro, continuaremos sendo enganados pelos nossos sentimentos, e a nossa vida consistirá de intermináveis flutuações.
Pedro não mentiu deliberadamente ao asseverar a sua devoção ao Senhor; mas os seus sentimentos fizeram-no acreditar naquilo que não era verdade. É horrível dizer-se uma mentira; mas é digno de compaixão acreditar-se numa mentira. Se continuarmos confiando em nossos sentimentos, o Senhor poderá ter de permitir que descubramos, através de queda séria, quão indigna de confiança é a nossa vida emocional.
A medida de nossa habilidade de seguir ao Senhor não é aquilatada pela medida de nosso desejo de segui-Lo.
Quem nos dera reconhecer o fato que a Igreja é uma estrutura eternamente estável! O alicerce da Igreja é um fundamento rochoso, e cada uma das pedras que formam o edifício é tirada dessa mesma rocha. Se nosso caráter não corresponde ao caráter da verdadeira Igreja, como podemos esperar fazer parte de sua construção? Se procuramos edificar com material inferior, então estamos pondo em perigo a estrutura inteira. Pedra de outra qualidade que não aquela do alicerce não resistirá à tensão imposta sobre ela, e assim nossa tentativa de edificar resultará tão-somente em ruína, e a ruína significará perda para nós mesmos e para outros, e perda de tempo precioso, durante o qual poderia ser completado o trabalho. Verdadeiramente, precisamos dar ouvidos à palavra que nos exorta, em I Coríntios 15.58: — “Sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor”.
Graças a Deus que Pedro foi conduzido à queda a fim de descobrir a sua própria fraqueza, e essa queda foi profunda o bastante para esmagar a sua auto-confiança. Nossos fracassos passados não têm sido suficientemente sérios para nos convencermos de nosso caráter indigno de confiança? Continuamos orando e pedindo luz sobre nossa própria condição, mas o conhecimento de nossos fracassos passados não é bastante iluminador para nos levar a cair de joelhos perante Deus, em profunda contrição, permitindo-Lhe que nos refaça, tal como reconstituiu a Pedro? Quando a queda de Pedro lhe mostrou de que naipe era feito, “saindo dali, chorou amargamente”. Dali por diante o Senhor começou a reformá-lo, até que o seu caráter pudesse estar à altura de seu novo nome, quando então pôde usar as chaves do reino dos céus com poderosos efeitos.
Não podemos esperar ser transformados em instrumentos notáveis, à semelhança de Pedro, mas confiamos em que o Senhor se compadecerá de nós e operará uma transformação tal em nossas vidas como operou na vida daquele apóstolo. Nosso caráter precisa passar por uma transformação radical, se tivermos de ser obreiros cristãos dignos desse nome.
Extraído do livro O Obreiro Cristão Normal, Watchman Nee, Editora Fiel