Homem algum existe que não possua uma escatologia. Mesmo desconhecendo o termo, mesmo não possuindo qualquer pensamento consciente ou sistemático acerca do futuro, ainda assim ele é um ser escatológico. Aquele que diz: “Quando eu morrer nada mais haverá” acredita na aniquilação do futuro. Ele crê que seu amanhã é um nada. Ele tem fé de que não deve esperar nada do depois. Nem sempre sua afirmação constitui de fato uma crença, não passando na maioria das vezes de uma rendição à sua convicção de que é impossível saber, um agnosticismo aplicado as coisas do porvir. Ainda assim ele acredita que algo acontecerá no futuro- mesmo que esse algo seja a não existência.
Talvez nem todos ousam pensar no futuro mais amplo, no futuro social, por exemplo, no futuro da humanidade, no futuro do planeta ou no futuro cósmico. Menos pessoas ainda procuram antever além do véu dos séculos, invadindo os milênios futuros, a eternidade. Todavia, a verdade é que o futuro escatológico ocupou e ocupa a mente de muitos pensadores, escritores e estadistas.
Os quadros sinistros para o futuro propostos pelos ecologistas, nada mais são do que escatologia. Os filmes de ficção científica retratando um futuro sob o domínio das máquinas ou um mundo povoado por viagens intergaláticas, nada mais são do que pensamento escatológico. Desde o The Day After da década de 80 até o Matrix, tudo isso nada mais é do que uma tentativa de antever o amanhã.
Cada religião, cada credo, cada ideologia e até mesmo o ateísmo procuraram expressar ou como teoria ou como revelação o que virá a ser. Essa atitude é natural no ser humano. E não podemos limitar tal comportamento apenas ao homem moderno ou aos iluministas. Também não devemos pensar que apenas as civilizações sofisticadas alimentaram conceitos escatológicos. Um mundo melhor no futuro esteve presente na maioria dos povos, até mesmo naqueles que comumente classificaríamos como “primitivos”.
Podemos citar como exemplo para esse fato, a chamada “terra sem males” dos primitivos guaranis da América Ocidental. Eles emigraram para a parte leste do continente, em busca desse lugar onde, segundo sua crença, não haveria doenças ou morte. Na obra Peabirú: Uma Trilha Indígena Cruzando São Paulo, temos uma descrição dessa “escatologia primitiva”, um conceito de tempos melhores em um lugar melhor que provocou tal migração.
Notável tradição dessas populações é o fenômeno da migração em massa com sentido religioso. O movimento migratório é resultado da crença de que o mundo caminha para o seu fim e será destruído por meio do fogo, conseqüência da maldade do homem. A tribo empreendia, antes da partida, a “dança da Terra sem Mal” a qual era destinada a ensinar-lhe a rota do paraíso. Caminhando por terra, a meta era atingir o oceano onde, segundo um índio entrevistado por Egon Schaden, “é preciso rezar com muita fé”. Ali os índios construíram uma casa de dança onde, imprimindo movimento ao corpo, julgavam ganhar agilidade para a travessia do mar a
pé enxuto. O mar então se abriria a seus pés e formava-se uma ponte, por onde passavam para a “Terra sem Mal”, ou “Terra onde ninguém morre”.1
Tais narrativas parecem confirmar a esperança de um uma solução para o problema do mal e da morte em algum lugar do futuro. Parecem também demonstrar que há no ser humano, tanto individual quanto coletivo, uma recusa em aceitar como normal o mal e a morte. A cura para tais elementos se encontra em algum outro lugar, seja na esfera geográfica ou histórica, ou ainda supra-histórica. Arriscaríamos até mesmo a dizer que pensar escatologicamente é inerente à espécie humana.
O momento em que isso se manifesta de forma mais clara está na recusa por parte do ser humano com relação à morte. Por mais que alguém saiba que a morte é o fato mais certo da vida, diante dela ele chora e reage negativamente, como que a protestar contra o fim de alguém que ama ou mesmo com sua própria extinção neste mundo. É como se um grito silencioso fosse dado, contestando que a morte e a corrupção devessem existir. Mas essa experiência íntima na qual cada pedacinho da vida é tocado por um pedacinho da morte transporta-nos além dos limites de nossa existência, fazendo-nos aguardar ansiosamente o dia em que nossos corações se encherão de alegria perfeita, uma alegria que ninguém nos arrebatará.2
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1 GONÇAVES, Daniel Issa. O Peabirú: Um trilha indígena cruzando São Paulo. São Paulo:USP, 1998.
2 NOUWEN, Henri. O fruto da solidão. São Paulo: Loyola, 2000
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