O fatalismo e o amor de Deus

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John Wesley uma vez disse:

“Agora o que pode, porventura, ser uma contradição mais clara do que esta, não apenas para toda a extensão e tendência geral da Escritura, mas também para aqueles textos específicos que expressamente declaram: ‘Deus é amor?’”[1]

A verdade é a seguinte: se o Deus determinista é verdadeiro e ele é quem determina todos os pecados e todo o mal moral existente no planeta, então deveríamos repensar o conceito de “amor” que a Bíblia tanto diz e que nós tanto pensamos. Pois não creio que haja um único ser humano nesta terra – nem mesmo o fatalista mais fanático – que sustente que o terrorismo, o estupro, a pedofilia ou a tortura sejam “atos de amor”. Se alguém sustenta isso, tem que ser internado urgentemente. Mas, se tais atos pecaminosos e horríveis são determinados por Deus, então que tipo de amor ele possui?

Essa questão tem levado fatalistas a refletirem e a chegarem a conclusões ainda mais absurdas do que a alegação de que ele determina os pecados. Muitos deles sustentam que em Deus há “duas faces”. Há um “amor revelado”, aquele do Senhor Jesus Cristo, aquela parte em que Deus envia o Seu Filho unigênito como propiciação pelos nossos pecados, e há também uma “outra face” escondida em Deus, aquela que ele joga suicidas contra prédios, que determina que maridos espanquem suas esposas e que o homem cometa pecado.

Mas, se há “duas faces” em Deus, então a Bíblia erra quando diz que Deus é amor (1Jo.4:8), e não que Deus meramente “possui” amor. Um Deus que é essencialmente amor não pode apenas “ter” amor, ou “exercer” esse amor algumas vezes, enquanto, por outro lado, determina todos os atos que a Bíblia considera “impiedade”. Para resolver esse dilema, os fatalistas alegam que aquilo que é pecado para nós não é pecado para Deus. Ou seja: que Deus pode fazer o que quiser (incluindo pecar ou determinar o pecado) que aquilo que ele faz é certo porque ele faz. É assim que Calvino cria:

“Pois a vontade de Deus é a tal ponto a suprema regra de justiça, que tudo quanto queira, uma vez que o queira, tem de ser justo. Quando, pois, se pergunta por que o Senhor agiu assim, há de responder-se: porque o quis”[2]

Arthur W. Pink resume essa crença fatalista da seguinte maneira:

“Não há nenhum conflito entre a vontade divina e a natureza divina, todavia precisamos insistir que Deus é lei para si mesmo. Deus faz o que Ele faz, não simplesmente porque a justiça requer que Ele assim aja, mas o que Deus faz é justiça simplesmente porque Ele faz. Todas as obras divinas resultam da mera soberania”[3]

Em outras palavras, para o fatalista, não há moralidade para Deus, porque tudo o que Deus faz é justo porque ele faz. Dito em termos simples, se Deus decidir mentir daqui para frente, ele permanecerá sendo justo e santo porque ele é lei para si mesmo. Por isso, qualquer coisa que Deus faça, ainda que seja considerada uma crueldade ou uma aberração em um padrão humano, para Deus é justo, porque é Deus que age, e ele age da forma que ele quer. Deus não tem, no fatalismo, nenhuma limitação moral.

Em resumo, os fatalistas creem que Deus não mente porque ele não quer mentir, e não porque ele não pode mentir. Os não fatalistas, ao contrário, creem que Deus não mente porque ele não pode mentir (em razão de sua natureza essencialmente moral), e não porque ele simplesmente não quer mentir, como se Deus pudesse decidir mentir amanhã e ele continuaria sendo justo e verdadeiro mesmo assim.

Então, ainda que ambos creiam que Deus não mente, fatalistas e não fatalistas se divergem quando a questão é o porquê que Deus não mente. Como os arminianos creem que Deus é amor em Sua essência e que ele não poderia mentir e permanecer verdadeiro, ou pecar e permanecer santo, cremos que Deus não mente porque ele não pode mentir, porque isso é impossível para ele, e não simplesmente porque ele não quer, embora possa.

A questão crucial é: qual das duas visões sobre a natureza de Deus tem apoio bíblico? Os escritores bíblicos diziam que Deus não mente porque ele não quer ou porque ele não pode? Eles criam que a mentira era possível para Deus ou impossível? Vejamos:

“Em esperança da vida eterna, a qual Deus, que não pode mentir, prometeu antes dos tempos dos séculos” (Tito 1:2)

“Para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta” (Romanos 6:18)

Como vemos, o testemunho bíblico é de que Deus não mente porque ele não pode mentir, porque isso é impossível para ele. Sendo assim, a natureza de Deus não lhe permite cometer ou determinar algo que vá contra a sua própria essência. Isso refuta a tese das “duas faces” de Deus e do “amor diferente”, como se tudo o que Deus fizesse fosse bom simplesmente pela única razão de Deus ter feito.

Se isso fosse verdade, Deus poderia mentir e somente não mentiria porque não quer mentir, mas mesmo que quisesse a mentira se tornaria verdade porque se refere a Deus. Este é, como vimos, um ensino estranho à Bíblia, que prega o contrário. E, se este ensino é falso, então até Deus está “limitado” a certos padrões morais, sendo impossível que ele alguma vez determine algo que é essencialmente imoral ou pecaminoso.

O padrão de justiça e moral que Deus nos impôs como obrigação é o mesmo que permeia Sua própria natureza de forma imutável e permanente. Se Deus é amor, e se esse amor é compatível com o amor revelado nas Escrituras e na consciência de cada pessoa, então é completamente inadmissível que ele seja amor e ao mesmo tempo determine todas as maldades e impiedades que existem no planeta.

Ou os fatalistas terão que rever seu conceito de “amor” com um pseudo-amor contrário ao sentido das Escrituras, da consciência e da razão, ou então terão que assumir que Deus não é plenamente e essencialmente amor sempre, ou então assumem que Deus não determina nada que seja contrário à sua natureza de amor, o que, como vimos, não pode implicar em pecados que ele não pode cometer em função de sua própria essência.

Considero, portanto, os versículos que dizem que “Deus é amor” como a maior prova de que Deus não é como os calvinistas imaginam. Este versículo, em apenas três palavras, refuta o fatalismo por completo. As tentativas de relativizar o conceito de amor como algo diferente do amor revelado nas Escrituras e na consciência moral de cada um tem fracassado miseravelmente.

Se o amor de Deus fosse diferente do conceito de amor que nós possuímos em nossa consciência moral, teríamos que entender que o verdadeiro conceito de “amor” à luz de Deus é o estupro, a tortura, a pedofilia, o terrorismo e todas as outras coisas que Deus determina à luz de seu conceito pessoal de “amor” e que nós humanos erroneamente consideramos “maus”. Neste caso, o nosso conceito de amor não somente estaria completamente falho, mas também todas as nossas tentativas de amar verdadeiramente seriam inúteis, se o amor real é bem diferente do que entendemos pelo termo.

Imagine, por exemplo, que uma moça está sendo estuprada na rua. A sua consciência lhe aponta que reagir ao criminoso e salvar a moça é a atitude que deve ser tomada, pautada pelo amor. Mas, se este conceito de amor não é verdadeiro, mas o real conceito de amor inclui o próprio estupro que foi predestinado por Deus, então não há nenhuma razão real para considerarmos que a ajuda a moça estuprada seja um ato de amor maior do que fingir que nada está acontecendo e deixá-la sendo estuprada. Afinal, para o calvinista, ambas as atitudes seriam determinadas por Deus, e seriam fruto do “amor” dEle.

Também por esta linha, teríamos que presumir que Deus colocou em nossas consciências um padrão de amor completamente distinto do amor verdadeiro. Nós cremos que o altruísmo é uma coisa boa, mas pode não ser, pois nossa consciência pode ser falha. No determinismo, Deus nos engana infundindo em nós uma consciência moral com padrões completamente diferentes daquilo que realmente é moral e não-moral.

Para o determinismo divino incluir tudo o que conhecemos como moral e tudo o que conhecemos como imoral, de que modo Deus determina ambos e permanece sendo amoroso em ambos os casos? Apenas se tudo aquilo que nós consideramos imoral for, na verdade, moral. Neste caso, a própria moralidade vai para a lata do lixo e se perde completamente. Nós pensamos que há certos padrões objetivos de moral, mas tudo é moral, incluindo o que pensamos ser imoral.

É esta a única forma de os calvinistas salvarem sua crença no determinismo divino à luz do ensinamento bíblico de que Deus é amor. É um amor diferente, completamente à parte do conceito de amor que possuímos, diferente do padrão de moralidade que o próprio Deus colocou em nossos corações, e que envolve tudo aquilo que entendemos como antiético, promiscuo, imoral e antibíblico. Deveríamos ter realmente medo de um Deus desses, e não amor. Essa visão é conhecida como fideismo, que “assevera que Deus é bom contra toda noção de bondade conhecida pela humanidade ou revelada na Escritura”[4].

Até mesmo o autor Paul Helm rejeita essa noção de que o amor de Deus seja diferente da nossa noção de amor e do amor divino revelado nas Escrituras:

“A bondade de Deus deve possuir alguma relação positiva com os tipos de relações humanas que consideramos como boas. De outra forma, por que deveríamos atribuir bondade a Deus?”[5]

Mas se o amor de Deus é “diferente” e inclui também todas as monstruosidades do “decreto”, então “amor” seria uma palavra genérica que não compreende nada daquilo que a Bíblia entende pelo termo. Para ser mais claro, esse Deus não seria amor da forma que entendemos, mas de uma forma completamente oposta à que entendemos. Um amor relativo e assustador, que deveria fazer cada cristão rever seus conceitos sobre o mesmo. Felizmente, não é este “amor” que a Bíblia nos apresenta, nem é este deus que a Bíblia nos mostra.

Biblicamente, o Deus que amou o mundo é um Deus que nunca teve parte com qualquer determinismo que envolvesse o pecado, e amor é um conceito bem definido, pautado por princípios morais existentes na consciência de cada indivíduo e que remete ao seu Criador, que é o próprio Deus, o qual, por sua vez, não pode ter princípios morais diferentes ou que violem aqueles que ele impôs a nós por sua soberania e graça.

Roger Olson aborda isso nas seguintes palavras:

“Se o amor de Deus é absolutamente diferente de nossas mais elevadas e melhores noções de amor na medida em que as extraímos da própria Escritura (principalmente de Jesus Cristo), então o termo é simplesmente sem sentido quando em relação a Deus”[6]

Ele também diz:

“De que maneira Deus poderia ser amável para com os que ele incondicionalmente decretou enviar para as chamas do inferno para todo o sempre? Dizer que Deus os ama de qualquer forma (ainda que apenas de certa maneira) e transformar o amor em um termo ambíguo, esvaziando-o de seu sentido. Deus não pode ser um Deus de amor ainda que ele prescreva e determine os destinos eternos das pessoas, incluindo alguns para o tormento infindável? Novamente, qual seria o significado de amor neste caso? E de que maneira tal Deus é diferente do diabo, a não ser em termos da população total do inferno? Citarei Wesley novamente: ‘Este amor não nos faz gelar o sangue nas veias?’”[7]

Bruce Reichenbach também aborda a questão do decreto que envolve o mal e o pecado feito por um Deus que a Bíblia descreve como plenamente bondoso e amoroso:

“Fazer um decreto é determinar que algo deverá ocorrer de certa maneira. Visto que o decreto de Deus faz parte de Sua soberania, cada acontecimento deveria ocorrer e de fato ocorrerá conforme foi decretado. Mas, que é que um Deus de bondade haveria de decretar para acontecer? Certamente o que Ele decreta deve derivar tanto de Seus desejos (porque de outra forma Ele agiria irracionalmente) como de Seu caráter moral (de outra forma Ele não seria bom). É impossível que Deus decrete algo que Ele não deseje, e que seja inconsistente com Sua bondade. Porém, se Deus é bom, e só almeja o que é bom, Ele só poderá decretar o que é bom, e não o bem e o mal. Se assim é, de onde então vem o mal, e o pecado?”[8]

Mas ninguém resume melhor a questão do que Andrey Moore, quando disse:

“O fatalismo não é acidentalmente, mas essencialmente imoral, visto que faz a distinção entre o certo e o errado uma questão de decreto positivo, e através disso faz ser possível afirmar que o que é imoral do homem é moral para Deus, pois Ele está acima da moralidade”[9]


[1] WESLEY, John. “Free Grace”, Works. v. 3, Sermão 3, p. 552.

[2] Institutas, 3.23.2.

[3] PINK, Arthur W. The Satisfaction of Christ (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1955), p. 20.

[4] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 143.

[5] HELM, Paul. A providência de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 149.

[6] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 96.

[7] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 146.

[8] REICHENBACH, Bruce R. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 120.

[9] Andrey Moore, citado em Alan P. F. Sell, The Great Debate (Grand Rapids: Baker Book House, 1982), p. 21.

Nota: Adaptado da Apostila “Fatalismo X Arminianismo”.

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