O Dízimo e os Pais da Igreja

A ignorância acerca dos Pais da Igreja é enorme entre católicos e evangélicos. Os católicos não atentam para o fato de que muitas expressões hoje usadas por eles tinham outro sentido na época dos Pais. Lutero fez questão de mostrar essa mudança de significações em seu tempo. Os evangélicos, por sua vez, não leem os escritos dos Pais na íntegra e ficam confabulando com citações de trechos que encontram em livros e na internet.

Há, por exemplo, evolucionistas teístas e defensores da criação em longas fases que citam a interpretação simbólica do início do Gênesis, defendida por alguns Pais da Igreja, para questionar a ocorrência da criação em seis dias. O que eles não percebem é que os Pais (Orígenes, Hilário, Agostinho e Jerônimo) acreditavam que Deus tinha criado tudo de uma vez[1] (não em milhões de anos) – Salmos 33: 6-9; Salmos 148: 1-6; Gênesis 2:4 – e a representação em dias era vista como um artifício literário para apresentar uma divisão dos seres criados em graus de complexidade. A eles, parecia desnecessário que Deus precisasse de qualquer tempo para criar.

Agora, a moda é citar os Pais para dizer que eles não criam no dízimo. A verdade, porém, é que eles acreditavam que as pessoas do Velho Pacto, por não terem um novo coração em Cristo, precisavam ter o dízimo como uma OBRIGAÇÃO. Na Era da Graça, por outro lado, somos livres da OBRIGAÇÃO do dízimo, porque, agora, com um coração regenerado, DAMOS VOLUNTARIAMENTE MUITO MAIS DO QUE O DÍZIMO EM GRATIDÃO.

Na visão dos Pais, nós saímos da OBRIGAÇÃO do dízimo porque fomos libertados da avareza que tornava o dízimo uma obrigação. Agora damos muito mais do que o dízimo, mas por amor. O modelo de Jesus para a igreja não é o dizimista, mas a viúva pobre que deu, sem que fosse obrigada, muito mais do que o dízimo. Na verdade, deu tudo o que tinha (Lucas 21: 1-4). Para aqueles que falam que dízimos e ofertas eram apenas da produção de gado e da terra, eis o relato de pessoas dando moedas nos cofres do templo. O dízimo e as ofertas não foram apenas para agropecuaristas, mas se adaptaram a moeda, quando ela ganhou maior expressão no mercado.

Conforme Irineu, Pai da igreja do século II, o verdadeiro cristão dá (voluntariamente, não por obrigação institucional) muito mais que o dízimo para a obra de Deus:

“Os judeus dedicavam os dízimos de seus produtos a Ele (Deus), mas os que foram libertados destinavam todos os seus bens à obra do Senhor. O dizimar é lei judaica que não se requer dos cristãos, porque os cristãos receberam a liberdade e devem dar sem constrangimento.” (Contra Heresias – 180 d.C. p. 18,2).

Os cristãos seguem o exemplo de Jacó, que sem lei que lhe impusesse, deu o dízimo em gratidão pela provisão divina (Gênesis 28: 20-22). Notemos que Jacó não deu só o dízimo, mas disse que “certamente” daria o dízimo (v. 22). Isso significa que, pelo menos, o dízimo ele daria, ou, ainda, que o dízimo daria com certeza. O dízimo para o cristão, portanto, não é uma obrigação, mas um mínimo que serve de advertência contra a avareza. Os fariseus davam o dízimo (Mateus 23: 23), mas Jesus disse:

“Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mateus 5: 20).

A igreja primitiva entendeu isso claramente. Irineu disse: “A lei não exigirá os dízimos de quem consagrou TODOS seus bens a Deus e deixou pai, mãe e toda sua família para seguir ao Verbo de Deus”.

Charles H. Spurgeon disse em seu sermão “Deus Ama o Que Dá com Alegria” (pregado na noite de quinta-feira, 27 de agosto de 1868):

Muito foi dito sobre dar um décimo – dízimo – do ingresso ao Senhor. Sou do parecer que se trata de um dever cristão que ninguém deveria questionar nem por um instante. Se se tratava de um dever sob a lei judaica, é agora um dever muito maior sob a dispensação cristã. Mas é um grande erro supor que o judeu dava o dízimo somente. O judeu dava muito, muito, muito mais que isso. O dízimo era o pagamento que devia realizar, mas depois disso vinham todas as ofertas voluntárias, todas as várias doações em diversas épocas do ano, de tal forma que, talvez, ele dava um terço, ou certamente algo muito mais aproximado a isso, do que o dízimo. E é estranho que em nosso tempo, os seguidores de ídolos, tais como os hindus, também deem essa proporção de seus ingressos, envergonhando assim totalmente a falta de liberalidade de muitos que professam serem seguidores de Jesus Cristo… Vocês não estão sob a lei, mas sob a graça; portanto, não devem dar nem fazer coisa alguma para Deus como por compulsão, como se escutassem o velho chicote mosaico estalando perto de seus ouvidos. Vocês não devem se encurvar diante do Senhor como o filho de Agar, a escrava, como recém-chegados da Arábia e dos tremores do Sinai; vocês têm de avançar alegremente como alguém que veio do Monte Sião, como o filho da promessa: como Isaque, cujo nome significa riso; alegrando-se porque vocês são capacitados, favorecidos e privilegiados para fazer tudo por Quem os amou até a morte. Aquele que dá com alegria é um que dá de todo coração, e há uma maneira de dar de todo o coração, especialmente quando a oferta é a de seu tempo ou de seu serviço.”[2]

É importante notar que a igreja, na época dos Pais Apologistas, tinha duas contribuições. Uma para o trabalho regular da igreja e outra para os necessitados (postas no dia da ceia do Senhor debaixo da Mesa). Tertuliano (século II) estava falando da contribuição para os necessitados, quando disse: “Temos uma espécie de caixa, seus rendimentos não provem de quotas fixas, como se com isso se pusesse um preço à religião… senão em alimentar ou enterrar aos pobres, ou ajudar aos meninos e meninas que perderam a seus pais e seus bens, ou aos anciãos confinados em suas casas, aos náufragos, ou aos que trabalham nas minas, ou estão desterrados nas ilhas ou prisões ou nos cárceres”.

Justino (século II) também está falando da oferta para os necessitados, quando diz: “Os que possuem alguma coisa e queiram, cada um conforme sua livre vontade, dão o que bem lhes parece, e o que foi recolhido se entrega ao presidente. Ele o distribui a órfãos e viúvas, aos que por necessidade ou outra causa estão necessitados, aos que estão nas prisões, aos forasteiros de passagem, numa palavra, ele se torna o provedor de todos os que se encontram em necessidade.”

Notemos que não se fala nesses textos sobre manutenção de missionários ou pastores, pois não era a contribuição para a obra, mas para os necessitados. Tertuliano e Justino estão falando do serviço das mesas, do diaconato.

Em relação à manutenção da obra, na parte dos deveres para com os ministros, o Didaquê (80- 140 A. D.) fala de dar SEGUNDO A LEI (uma referência ao dízimo como limite mínimo), dando oportunidade a que, se for oportuno a alguém, complete o valor dado em dinheiro com roupas e bens:

“E Toma AS PRIMÍCIAS do dinheiro, das vestes e de todas as posses, segundo lhe parecer oportuno, e os dê conforme a lei.” (Didaquê, 13.7).

É claro que hoje em dia há problemas relativos à entrega do dízimo, dos quais eu destaco dois: o problema da motivação e o problema da igreja que recebe o dízimo. A teologia da prosperidade faz interpretação incorreta sobre o motivo para dar o dízimo e, por outro lado, o dízimo deve ser dado a uma igreja de governo congregacional e que defenda a sã doutrina. Mas isso é para outro artigo!

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Rev. Glauco Barreira Magalhães Filho

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[1] John W. Klotz. Studies in Creation. St. Louis: Concordia Publishing House, 1985, p. 68.

[2] https://www.projetospurgeon.com.br/2013/05/deus-ama-o-que-da-com-alegria/

Extraído do site https://anabatistasemfortaleza.blogspot.com/

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