A consequência fatal do conceito equivocado do calvinismo acerca da soberania de Deus (aonde tudo o que acontece é decretado ou determinado por Deus) é um choque de frente com aquilo que conhecemos como sendo “responsabilidade humana”. É inegável que a Bíblia culpa os pecadores por seus próprios pecados, e os condena à morte no lado de fogo, da mesma forma que recompensa os justos a uma existência eterna. Mas com que base poderíamos justamente considerar alguém responsável pelos delitos cometidos em vida, se tudo nesta vida foi previamente determinado?
Em outras palavras, se foi Deus quem determinou que o ladrão roubasse e este ladrão não poderia fazer outra coisa a não ser roubar, por que o ladrão deveria ser considerado responsável pelo roubo? Culpar um ladrão nestas circunstâncias seria tão ilógico quanto culpar uma faca por um assassinato cometido por meio dela. A faca é simplesmente um meio, e não a causa. A faca não é culpada, ela é meramente um instrumento, o mesmo que os calvinistas pensam em relação aos seres humanos. O real responsável, neste caso, deveria ser a causa primeira do ato (o que os calvinistas remetem a Deus).
Thomas Summers disse:
“A liberdade e responsabilidade seriam destruídas ou postas de lado se necessitássemos agir seguindo motivos dos quais não temos controle algum, tão certamente como se alguma força maior nos agarrasse e, mecanicamente, nos forçasse a realizar qualquer ato contrário à nossa vontade”[1]
De fato, se alguém mais forte do que eu me amarra, coloca uma arma na minha mão e usa o meu dedo para puxar o gatilho e matar alguém, eu não sou responsável pelo assassinato, pois eu fui meramente utilizado, fui um meio, não fui a causa. Eu não tive escolha, eu fui coagido a isso. Se os seres humanos não possuem livre-arbítrio, mas apenas agem conforme o que Deus determinou desde a eternidade, então eles não são responsáveis, mas estão apenas cumprindo obedientemente um decreto divino, contra o qual é impossível resistir.
Como já vimos anteriormente, Calvino em momento algum negou que era Deus quem determinava os pecados e que o homem não possui escolha, mas a todo instante buscava resgatar algo da responsabilidade humana dizendo que, embora o homem não possa não pecar, ele é culpado porque desejou pecar. Isso não resolve nada e nos leva a problemas maiores, porque, em primeiro lugar, para Calvino o desejo também vem de Deus. Então, com que lógica o homem deveria ser responsável pelo desejo e não pela ação se tanto o desejo quanto a ação vieram de Deus?
Mesmo que algum calvinista divergisse de Calvino neste ponto e dissesse que os desejos vêm do próprio homem e que somente a ação é determinada por Deus, ele estaria em maus lençóis. Isso porque, em primeiro lugar, ele estaria assumindo que os desejos são autocausados, o que destroi e põe por terra toda a teoria de Edwards, aceita por quase todos os calvinistas, de que nada é autocausado pelo homem, mas tudo é determinado por Deus.
Se abrirmos brecha para a tese de que os desejos podem ser autocausados, então por que as ações também não poderiam ser autocausadas? Um calvinista que recua neste ponto teria que abrir mão também da alegação de que os atos não podem ser autocausados e devem ser externamente determinados, o que o levaria, irremediavelmente, ao arminianismo indeterminista. Seria um grande nonsense afirmar que as ações não podem ser autocausadas, se os desejos podem.
Em segundo lugar, a alegação de que os desejos são autocausados mas as ações são determinadas por Deus nos leva a outro problema, que é o fato de que nós agimos em conformidade com os nossos desejos. São os nossos desejos que nos leva a agirmos, de outra forma não agiríamos. Se você está dormindo em sono profundo e não tem vontade nenhuma de acordar, você continua dormindo. Mas quando começa a pensar nas consequências que teria em não acordar (como perder o emprego ou faltar em algum dia importante) você passa a desejar acordar, pensando nas consequências.
Então, ainda que calvinistas e arminianos discordem quanto a se o desejo seguido é sempre o maior, eles concordam que nós agimos porque desejamos agir. Mas, se são os desejos que nos levam a ação, então como pode uma ação ser determinada e um desejo não ser? Se desejamos uma coisa e agimos de modo contrário, toda a teoria de Edwards estaria derrubada e os nossos desejos não levariam às nossas ações.
Se Deus não influencia ou determina a vontade (ou, melhor dizendo, se não a causa), então teríamos um cenário estranho onde o desejo é autocausado pelo próprio ser humano livremente e a consequência do desejo é determinada por Deus e não autocausada. Em outras palavras, o efeito não seguiria à causa. E se o homem desejasse não pecar, mas Deus determinou o pecado? O homem pecaria mesmo sem desejar pecar? Não, pois o homem só peca quando deseja o pecado.
Então, de uma forma ou de outra, para atingir seus objetivos Deus teria que agir e causar de forma irresistível o próprio desejo, para poder levar à ação. É assim que Edwards cria e muitos calvinistas creem. Deus causa o desejo e a ação, ambos estão determinados e nenhum deles é autocausado, pois é o desejo determinado que leva à ação determinada. E, se ambos estão determinados, então não há nenhuma razão lógica para culpar o homem pelo desejo, da mesma forma que não se pode responsabilizá-lo pela ação.
Calvino seguia um non sequitur, onde admitia que o homem não poderia ser responsabilizado pela ação porque a ação é determinada por Deus, mas deveria ser culpado mesmo assim porque desejou pecar, sendo que esse desejo também foi igualmente determinado e causado por Deus, e não autocausado. Ele era inconsistente neste ponto. Simplesmente não existe nenhum método lógico ou racional de conciliar o determinismo exaustivo com a responsabilidade humana, ou, melhor dizendo, o calvinismo com a Bíblia. John Wesley fala sobre isso nas seguintes palavras:
“Ele não punirá ninguém por fazer qualquer coisa que não poderia possivelmente evitar, nem por omitir qualquer coisa que não poderia possivelmente fazer. Toda punição supõe que o ofensor poderia ter evitado a ofensa pela qual ele é punido. De outra forma, puni-lo seria claramente injusto, e inconsistente com a característica de Deus nosso Governador”[2]
Bruce Reichenbach diz também:
“Para que as pessoas possam ser responsabilizadas moralmente por suas ações, precisam ser capazes de agir livremente, tomando decisões diferentes. Para que determinada pessoa seja responsabilizada por um roubo, é preciso que tal pessoa tenha tido a possibilidade de não roubar, sob aquelas circunstâncias. Generalizando: se ser livre significa que poderíamos ter agido de maneira diferente daquela como agimos, as pessoas precisam ser livres, então, a fim de poderem agir moralmente. É diferente o caso da pessoa que teve de agir coagida. Nenhuma pessoa é livre se um ato desempenhado por outra pessoa – humana ou divina – empurra-a para pensar, desejar ou agir de determinada maneira”[3]
Ele também aborda a diferença na questão da responsabilidade entre um ato coagido e um ato livre:
“Verifica-se esta abordagem do comportamento moral em outra esfera. A lei faz distinção entre assassinar uma pessoa (o assassino poderia ter agido de maneira diferente) e matar uma pessoa (quando fatores relevantes, críticos, estavam além do controle da pessoa que mata, como quando um motorista não pode evitar atropelar uma criança que surge correndo à sua frente, saindo dentre carros estacionados). Há também o caso da alegação de insanidade mental, para desculpar pessoas que cometem assassinato. O que se discute não é se a pessoa cometeu ou não o ato. Discute-se se a pessoa o praticou livremente, ou se seu estado psicológico era de tal ordem que não poderia ter feito outra coisa senão matar”[4]
O problema da responsabilidade humana é tão grande para os calvinistas que a grande maioria deles apenas afirma que o homem é responsável, mesmo admitindo que isso é um paradoxo que não pode ser satisfatoriamente explicado à luz de sua crença no determinismo. No fundo, eles sabem que afirmar a responsabilidade do homem e ao mesmo tempo o determinismo divino é uma contradição de termos, mas preferem chamar isso de outro nome: “mistério”. Roger Olson fala sobre isso:
“No processo de raciocínio, certos calvinistas param e apelam ao mistério e recusam ser logicamente consistentes ao afirmar as conseqüências lógicas e necessárias de seu sistema de crença”[5]
Eles não seguem as consequências lógicas de seu calvinismo porque sabem que essas consequências são biblicamente devastadoras. Por isso, preferem simplesmente afirmar ambos – responsabilidade e determinismo – e jogar a contradição para o “mistério”. Seria o mesmo que eu afirmasse que João é casado e João é solteiro, e na hora de explicar como que João pode ser solteiro e casado eu respondo dizendo que isso é um “mistério”, mas que não deixa de ser verdade!
Alguns fazem analogias com a doutrina da trindade para explicar que isso é inexplicável. Mas essa analogia falha exatamente em não reconhecer que, diferente do paradoxo do calvinismo, a trindade não é uma contradição. Seria uma contradição se afirmássemos que Deus é uma pessoa em três pessoas, ou que Deus é um ser em três seres, mas afirmar, como os cristãos afirmam, que Deus é um ser em três pessoas, não é contradição. Pode ser difícil de se entender, mas não é contraditório[6].
O calvinismo, em contrapartida, é totalmente contraditório. O “mistério” que eles chamam não tem outro nome senão contradição não explicada, porque eles sabem que não tem explicação. Os calvinistas seguem as consequências lógicas de suas premissas apenas até certo ponto, e, depois que veem que a consequencia irredutível é algo claramente antibíblico, ao invés de voltarem e reformarem o sistema ou corrigir as premissas eles preferem manter as premissas e se opor à conclusão. É algo simplesmente contra a razão e o bom senso[7].
Algo semelhante ocorre nos debates entre ateus e cristãos. Os cristãos afirmam que da premissa: (1) Tudo o que passa a existir tem uma causa; (2) O Universo passou a existir; segue que: (3) O Universo possui uma causa. Mas os ateus, sabendo que isso levaria à crença na existência de uma Causa Primeira (que chamamos Deus) e também conscientes de que não podem negar a premissa 1 e a 2 (que são filosoficamente e cientificamente comprovadas), preferem negar a conclusão lógica que levaria à existência de Deus, preferindo apelar ao “mistério”.
É o mesmo que os calvinistas fazem com o calvinismo. Eles enxergam veracidade em suas próprias premissas, mas se recusam a admitir as consequencias lógicas de suas premissas. Enquanto o determinismo calvinista tem como consequência lógica um conflito entre a “soberania” (no conceito deles) de Deus e a responsabilidade do homem, o indeterminismo arminiano, ao contrário, tem como consequência lógica a afirmação de ambos como sendo igualmente verdadeiros e totalmente compatíveis, além de resgatar o livre-arbítrio e de dar algum sentido real à vida, onde os seres humanos são livres e responsáveis sob o governo de um Deus soberano, e não onde seres autômatos são condenados por pensamentos e atos determinados por Deus.
[1] SUMMERS, Thomas O. Systematic Theology. Nashville: Publishing House of the Methodist Episcopal Church, South, 1888, v. 2, p. 68.
[2] John Wesley, citado em Arthur S. Wood, “The Contribution of John Wesley to the Theology of Grace”, p. 211.
[3] REICHENBACH, Bruce R. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 132.
[4] REICHENBACH, Bruce R. Predestinação e Livre-Arbítrio: Quatro perspectivas sobre a soberania de Deus e a liberdade humana. Editora Mundo Cristão: 1989, p. 132-133.
[5] OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. Editora Reflexão: 2013, p. 98.
[6] Outra analogia dada pelos calvinistas é de dois trilhos de uma ferrovia que se encontram na eternidade, e que agora parecem não se encontrar. A falha nessa analogia é óbvia: os trilhos não se encontram, e se eles se encontram “na eternidade” é mera suposição (ou seja, é um mistério usado para explicar outro mistério!). Até o calvinista Sproul rejeitou essa analogia.
[7] O mais interessante de tudo é que se um arminiano se opõe a uma doutrina calvinista (como o determinismo, por exemplo) com base no “mistério”, ele é taxado pelos calvinistas de “antibíblico”, mas os calvinistas fazem o mesmo com a sua própria doutrina e não querem ser taxados do mesmo. Se o “mistério” fosse alguma refutação, toda a apologética seria inútil e desnecessária e este livro não teria razão de existir – bastaria dizer que eu sou arminiano e a razão para isso é um “mistério”.
Extraído do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?”, Biazoli, cedido pela comunidade de arminianos do Facebook