Um truque muito usado por calvinistas quando atacam o arminianismo é se colocarem como “os ortodoxos” e jogarem para longe da ortodoxia aqueles que não são calvinistas. Desta forma, como ninguém vai querer ser considerado “heterodoxo”, eles vão estar do lado da ortodoxia, e, portanto, do calvinismo. Mas será mesmo que o calvinismo é a única posição ortodoxa que pode ser aceita? Na verdade, os indícios apontam exatamente o contrário.
Todos os Pais da Igreja, exceto Agostinho, eram arminianos em sua teologia da salvação. Até mesmo o próprio Agostinho defendia o livre-arbítrio até a sua controvérsia com os donatistas, quando passou a defender a ideia de que os pagãos deveriam se converter à força à fé cristã, porque Deus mesmo trazia com uma “força irresistível”. Mesmo assim, a ideia de Agostinho foi contraposta pela grande maioria dos doutores da Igreja que viveram depois dele e a posição majoritária permaneceu sendo a contrária ao sistema calvinista.
Isso é reconhecido pelos próprios calvinistas. Norman Sellers reconhece que “Agostinho discordava dos Pais que o precediam no ensino da absoluta soberania de Deus”[1], e Boettner diz que “ele foi muito além dos primeiros teólogos”[2]. O mesmo Boettner admite que “esta verdade fundamental do Cristianismo [referindo-se ao calvinismo] foi claramente percebida primeiro por Agostinho”[3]. Se Agostinho foi o primeiro, então todos os outros que viveram antes dele criam no contrário.
De fato, o próprio João Calvino reconhecia que, à exceção de Agostinho, os outros Pais da Igreja estavam contra ele. Ele disse que foi acusa sobre isso:
“Tudo indica que grande preconceito atraí contra minha pessoa quando confessei que todos os escritores eclesiásticos, exceto Agostinho, nesta matéria se expressaram tão ambígua ou variadamente que de seus escritos não se pode ter coisa alguma certa. Ora, alguns haverão de interpretar isto exatamente como se os quisesse privar do direito de opinião, já que todos me são contrários”[4]
Spurgeon também parece reconhecer isso. Ele tenta traçar uma “linhagem calvinista” de seus tempos para trás, passando por Bunyan, depois pelos Reformadores, depois por Huss e então por Agostinho, e então diz:
“Não podemos traçar nossa genealogia através de toda uma linhagem de homens como Newton, Whitefield, Owen e Bunyan diretamente até chegarmos a Calvino, Lutero e Zwinglio? Deles então podemos voltar a Savonarola, Jerônimo de Praga, a Huss e então de volta a Agostinho, o pregador mais poderoso do cristianismo. E de Santo Agostinho até Paulo é somente um passo!”[5]
Interessante é notar que Spurgeon, ao invés de mostrar um único Pai da Igreja entre Paulo e Agostinho que cria no calvinismo, diz que “de Agostinho [século IV para o século V] para Paulo é somente um passo”, parecendo reconhecer que entre Paulo e Agostinho não houve sequer um único pregador calvinista, em um intervalo de quatro séculos! Veremos no segundo apêndice deste livro dezenas de citações de dezenas de Pais da Igreja confirmando a crença arminiana como a predominante nos primeiros séculos da Igreja, até a Reforma.
Isso nos mostra, como bem aponta Geisler, que, “com exceção do Agostinho posterior, nenhum teólogo importante da patrística até a Reforma sustentou essa ideia”[6], e que “se não fosse por um lapso na história da pré-Reforma, não teria havido ‘calvinistas’ extremados[7] notáveis nos primeiros 1.500 anos da Igreja. Essa exceção é encontrada nos últimos escritos de Agostinho”[8]. Foi por isso que Thomas Oden disse que “a remonstrância representou uma reapropriação substancial do consenso patrístico oriental pré-agostiano”[9].
Então, temos um quadro em que uma doutrina (arminianismo) foi pregada unanimemente por todos os Pais da Igreja exceto Agostinho, até chegar a Jacó Armínio, e outra (calvinismo) em que quase ninguém creu nisso durante quinze séculos, excetuando Agostinho e alguns poucos nomes, sendo “restaurado” por João Calvino e outros reformadores.
Com que moral, então, um calvinista acusa o arminianismo de heterodoxia? Se ele quer mesmo ser intelectualmente honesto, deverá reconhecer que o arminianismo é a posição ortodoxa na Igreja em todos os séculos e que o calvinismo nada mais é senão um lapso na história pré-Reforma, que não tem nada de ortodoxo, a não ser que a ortodoxia que resuma a Agostinho.
Outra tática de calvinistas é expor nomes pós-Reforma (como um quadro comparativo) de teólogos calvinistas e teólogos arminianos, para depois dizer que os mais notáveis estão entre eles, e, portanto, são a “posição ortodoxa”. Essa tática foi empregada, por exemplo, por R. C. Sproul em seu livro “Eleitos de Deus”, quando ele traçou o seguinte quadro comparativo:
Este quadro por si só já é tendencioso, pois ele coloca Pelágio no mesmo grupo dos arminianos, ignora diversos nomes notáveis do arminianismo (como todos os outros Pais da Igreja à exceção de Agostinho) e ainda inclui na lista “calvinista” nomes que nunca assinariam embaixo os cinco pontos da TULIP. Se Tomás de Aquino fosse “reformado”, Calvino nunca teria refutado a sua visão sobre a predestinação nas Institutas.
Em seu terceiro volume das Institutas, Calvino dedica um tópico apenas para refutar Aquino, intitulado: “Não é procedente a cavilação de Tomás de Aquino de que a predestinação diz respeito à graça mercê da qual extraímos méritos que são objeto da presciência divina”[10]. Então, o que o nome de Tomás de Aquino está fazendo ali? E quanto a Martinho Lutero, que foi um enfático pregador de que o crente pode perder a salvação e que Cristo morreu por todos?
Contra a expiação limitada, Lutero disse:
“[Cristo] não ajuda apenas contra um pecado, mas contra todos os meus pecados; e não contra meu pecado apenas, mas contra o pecado de todo o mundo. Ele vem para levar não apenas a doença, mas a morte; e não minha morte apenas, mas a morte de todo o mundo”[11]
Lutero cria na expiação ilimitada, e essa é a razão pela qual as igrejas luteranas creem que Cristo morreu por todos. Lutero também descria na dupla predestinação de Calvino[12] e zombava daqueles que criam que o crente não pode perder a salvação, chamando-os de “pessoas tolas”:
“Alguns fanáticos podem parecer (e talvez eles estão já presentes, como eu vi com meus próprios olhos no tempo da revolta) que mantém que assim que eles receberam o Espírito do perdão de pecados, ou assim que eles se tornaram crentes, eles irão perseverar na fé mesmo se eles pecarem depois, e tal pecado não irá prejudicá-los. Eles gritam, ‘Faça o que você quiser, não importa contanto que você creia, pois a fé apaga todos os pecados’, etc. Eles adicionam que se alguém peca depois que recebeu a fé e o Espírito, ele nunca realmente teve o Espírito e a fé. Eu encontrei muitas pessoas tolas como estas e eu temo que tal demônio ainda reside em alguns deles”[13]
E também:
“É então necessário saber e ensinar que, além do fato de que eles ainda possuem e sentem o pecado original e diariamente se arrependem e lutam contra ele, quando homens santos caem em pecado abertamente (como Davi caiu em adultério, assassinado e blasfêmia), a fé e o Espírito abandonaram eles”[14]
Portanto, ainda que Lutero cresse em alguns princípios calvinistas, ele estava longe, muito longe de crer em tudo. É por isso que Calvino não citou Lutero nem uma única vez em todos os quatro volumes das Institutas, embora tenha citado diversos outros autores em várias ocasiões diferentes para justificar suas teses. Se Lutero estivesse no Sínodo de Dort, seria mais provável que ele se unisse aos remonstrantes do que aos calvinistas[15]. E vale sempre ressaltar que o braço direito de Lutero, Felipe Melanchton, era sinergista[16], como reconhece Sproul, o colocando na lista de “visões opostas” ao calvinismo.
Nos tempos modernos, é fato que existem extraordinários pregadores calvinistas, assim como existem extraordinários pregadores arminianos. Assim como os calvinistas tem nomes fortes como Charles Spurgeon, John Piper e Paul Washer, os arminianos têm C. S. Lewis, Norman Geisler, Billy Graham e outros. É simplesmente tolo argumentar em favor da ortodoxia expondo uma lista de nomes proeminentes na teologia, pois isso não define a verdade e nós temos tantos nomes (ou mais) do que eles.
Jerry Walls também observa que “os calvinistas não tomam conta da academia de filosofia – William Lane Craig e Alvin Plantinga, por exemplo, dois filósofos protestantes renomados, são arminianos”[17]. Quando Craig debateu com o ateu Christopher Hitchens e foi indagado por este sobre se ele considerava alguma denominação cristã falsa, ele respondeu:
“Certamente. Eu não sou um calvinista, por exemplo. Eu acho que certos dogmas da teologia reformada estão incorretos. Eu estou mais no campo wesleyano[18]”[19]
Finalmente, devemos ressaltar que a acusação de heterodoxia por parte dos calvinistas é simplesmente falsa e difamatória. O pai da teologia liberal, Friedrich Schleiermacher, era calvinista e sequer foi tocado pelo arminianismo[20]. E os calvinistas se esquecem de mencionar que o mesmo concílio que declarou o pelagianismo herético também condenou aquilo que viria a ser calvinismo. O Sínodo de Orange (529) condenou qualquer crença de que Deus tenha determinado o pecado. Ele definiu:
“Não só não aceitamos que certos homens têm sido predestinados ao mal pela divina disposição, mas lançamos anátemas horrorizados contra quem pensar coisa tão perversa”
Da mesma forma, o Concílio de Kiersy (853) declarou:
“Deus conheceu pela sua presciência os que devem se perder, mas ele não os predestinou a se perderem. Porque Deus é justo, ele predestinou uma pena eterna para a sua falta”[21]
E o Concílio de Valença (855), sete séculos antes de Calvino, condenou exatamente aquilo que foi explicitamente ensinado por Calvino, que alguns homens são predestinados ao mal pelo poder de Deus:
“Com o concílio de Orange nós lançamos o anátema a todos os que disserem que alguns homens são predestinados para o mal pelo poder de Deus”[22]
Portanto, se devemos considerar alguma doutrina não-ortodoxa, essa é certamente o calvinismo, que foi condenado pelos mesmos concílios que condenaram heresias como pelagianismo e semipelagianismo. O arminianismo nunca foi condenado em concílio nenhum até a época da Reforma, foi crido por todos os Pais da Igreja à exceção de um, e hoje possui grandes teólogos, filósofos e pregadores de nome tão forte quanto os próprios calvinistas. A acusação de heterodoxia é, portanto, simplesmente injuriosa – mais um espantalho.
[1] Norman Sellers, Election and Perseverance (Miami Springs Schoettle Publishing Co., 1987), p. 3.
[2] Boettner, Predestination, p. 365.
[3] Boettner, Predestination, p. 365.
[4] Institutas, 2.2.9.
[5] SPURGEON, Charles H, Sermão sobre: “A Soberana Graça de Deus e a Responsabilidade do Homem”.
[6] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 32.
[7] Vale lembrar que o termo “calvinismo extremado” em Geisler significa nada a menos que o próprio calvinismo, pois o próprio Geisler rejeita 4 dos 5 pontos da TULIP calvinista – é um arminiano na prática.
[8] GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida: 2001, p. 189.
[9] ODEN, Thomas C. The Transforming Power of Grace. Nashville: Abingdon, 1994, p. 152.
[10] Institutas, 3.22.9.
[11] Margarete Stiener and Percy Scott, Day By Day We Magnify Thee (Philadelphia: fortress Press, 1982), 1. Veja também D. Martin Luthers Werke 37: 201, Sermon for first Sunday in Advent, 1533.
[12] Lutero cria em predestinação, mas em uma “predestinação única” (para a salvação), e não em uma “predestinação dupla”, como Calvino e os calvinistas creram.
[13] Tappert, The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical Lutheran Church, 309.
[14] Tappert, The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical Lutheran Church, 309.
[15] Relembrando, mais uma vez, que estamos tratando do arminianismo clássico, que defende princípios cridos enfaticamente por Lutero, como a depravação total e a escravidão da vontade, e não do arminianismo popular, que Lutero certamente rejeitaria com todo vigor.
[16] Iremos abordar a questão do sinergismo arminiano em contraste ao monergismo calvinista no capítulo 6 deste livro.
[17] WALLS, Jerry. Disponível em: <https://www.facebook.com/JerryLWalls/posts/10151976296005676>.
[18] Por “campo wesleyano”, Craig se refere à doutrina metodista de John Wesley, que era um arminiano convicto e militante.
[19] Debate: Deus Existe? William Lane Craig vs Christopher Hitchens. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=mgLhRmUV0mM>.
[20] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades. Editora Reflexão: 2013, p. 315.
[21] 316.I.
[22] Cânon III.
Extraído do livro “Calvinismo X Arminianismo: quem está com a razão?” cedido pela comunidade de arminianos do Facebook.