“E eis que Miguel, um dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me…” (Dn 10.13).
A sentença acima, da maneira como consta na maioria das traduções, não deixa dúvidas: além de Miguel, existem outros arcanjos (“primeiros príncipes”) no mesmo nível de poder e glória que ele. Tal declaração, portanto, inviabiliza quaisquer tentativas de alguns grupos religiosos sectários de identificarem Miguel com a segunda pessoa da Trindade, Cristo.
A fim de tentar se desvencilhar da declaração bíblica acima, o debatedor adventista apresenta uma interpretação alternativa e excepcional dessa passagem:
A palavra hebraica para “UM”, ‘echad’, também se traduz por PRIMEIRO. Então, pode-se traduzir tranquilamente Dan. 10:13 no sentido de “o primeiro dentre os primeiros príncipes”, como entende o comentarista bíblico evangélico John Gill. Isso se comprova comparando-se Bíblias em diferentes versões. A Reina Valera em espanhol, por ex., traduz Gên. 1:5 como, “y fué la tarde y la mañana, um día”. Também a versão da Sociedade Americana de Publicações Judaicas, traduz o texto como “and it was afternoon and morning, day one”. Já as versões em português, como é sabido, traduzem o “um” (“echad”) por “primeiro”.
Segundo ele, o vocábulo hebraico “echad” (“um”), a exemplo do que ocorre na passagem de Gênesis 1.5, pode ser “tranquilamente” traduzido, em Daniel 10.13, por “primeiro”. Essa tradução alternativa diz que Miguel é “o Primeiro dos príncipes”, ou seja, Miguel é um ser superior e, portanto, distinto dos demais “príncipes” mencionados, sendo o próprio Filho de Deus. “Se ‘echad’ é traduzido, em Gênesis 1.5, por ‘primeiro’, então qual o problema em fazermos o mesmo com o texto de Daniel 10.13?”, raciocina o autor adventista.
Abaixo apresentamos uma análise da sentença hebraica de Daniel 10.13, objeto deste tópico, por meio da qual demonstramos que essa tradução alternativa e incomum, apresentada pelo autor adventista, não se sustenta.
הַרִאשֹׁנׅים הַשָֹּרִים אַחַד מִיכָאֵל “primeiros”, “principais”, “importantes”, “cabeças”, “líderes” “príncipes”, “cabeças”, “líderes”. Número cardinal “um”, gênero masculino, singular, estado construto. Miguel (“Quem é como Deus?)
A falha fundamental no argumento do debatedor adventista reside no fato de que o número cardinal “um”¸ no texto de Daniel 10.13, aparece no estado construto, אַחַד-҆aḥāḏ, e não no estado absoluto, אֶחָד-҆eḥāḏ, como ocorre em Gênesis 1.5. Nessa passagem do Pentateuco, אֶחָד-҆eḥāḏ pode ser traduzido, “tranquilamente”, por “um” ou “primeiro”. No entanto, essa mesma “tranquilidade tradutológica” não é cabível em Daniel 10.13, pois nesse versículo esse numeral foi utilizado no estado construto, אַחַד-҆aḥāḏ, explicando por que praticamente todos os tradutores (inclusive os tradutores da pervertida bíblia das Testemunhas de Jeová) vertem adequadamente essa sentença por “Miguel, um dos [אַחַד-҆aḥāḏ] primeiros príncipes”.
E o que significa uma palavra ser utilizada no “estado construto”? Quando um substantivo, na língua hebraica, é usado dessa maneira, ele transmite a ideia de posse ou partitividade (fazer parte de algo), e equivale, em linhas gerais, ao uso da nossa preposição “de” (“Casa de Deus”, “dois dos guerreiros de Israel”, etc.), ou, então, ao “caso genitivo” encontrado em línguas como grego e latim. Desse modo, a única tradução aceitável para a sentença objeto do debate (מִיכָאֵל אַחַד הַשָֹּרִים הַרִאשֹׁנׅים) é: “Miguel, um dos primeiros príncipes”, e não a tradução proposta e defendida pelo adventista.
Outro detalhe: a tradução advogada pelo adventista, ao trecho de Daniel 10.13, faz com que “um de” (אַחַד-҆aḥāḏ) funcione, erroneamente, como adjetivo. E não apenas isso: como adjetivo que qualifica somente Miguel, pois a intenção do debatedor adventista é fazer com que Miguel (e somente Miguel) seja “o primeiro [ou seja, o Maior dos maiores, o Mais Poderoso dos poderosos, o Mais Glorioso dos gloriosos, O Líder dos líderes] dos primeiros príncipes”. Entretanto, já vimos que אַחַד-҆aḥāḏ não é adjetivo, mas, sim, o número cardinal “1” no estado construto: “1 de”. E se אַחַד-҆aḥāḏ não é adjetivo, segue-se que esse vocábulo hebraico não qualifica Miguel, mas apenas aponta-o como um ser pertencente ao grupo dos “primeiros príncipes”. Na sentença de Daniel 10.13, o único adjetivo existente é רִאשֹׁנׅים (ri’šônîm, forma masculina plural do número ordinal רִאשׁוֺן-ri’šôn, “primeiro”, “principal”, “cabeça”, “líder”), que serve para qualificar o grupo de “príncipes” (שָֹרִים) ao qual Miguel pertence. Todos esses “príncipes” — incluindo Miguel — são רִאשֹׁנׅים-ri’šônîm, ou seja, “primeiros”, “cabeças”, possuindo, portanto, o mesmo poder e glória. Nesse caso, Miguel não pode ser igualado a Cristo.
Antes de finalizar, só mais um detalhe: אַחַד-aḥaḏ (e, também, אֶחָד-҆eḥāḏ) não é artigo indefinido. Em hebraico não existe uma partícula para marcar o artigo indefinido, mas somente o artigo definido (הַ, ha). Em Daniel 10.13, אַחַד é apenas e tão somente o número cardinal 1, que se encontra, como já dissemos, no estado construto, significando: “1 de”. Quando o texto de Daniel 10.13 diz que Miguel é אַחַד (“um de”), significa que, dentro da hierarquia angelical, existem anjos que fazem parte do grupo dos “primeiros príncipes” (= arcanjos), e que 1 (e não 2) desses anjos, chamado “Miguel”, veio auxiliar o anjo Gabriel.
Autor: Paulo Sergio