Quando se pensa na paixão de Jesus, uma das primeiras perguntas que vêm à mente está relacionada à questão da historicidade de Jesus. Para determinar se Jesus foi, de fato, um personagem histórico, é necessário saber, antes, se os evangelhos, os principais relatos existentes de sua vida, obra, morte e ressurreição, são dignos de confiança. Até o início do século 18, poucos se atreviam a duvidar da autenticidade dos evangelhos, porém, com o advento do racionalismo, alguns teólogos passaram a questionar sua historicidade e a atribuir os aspectos sobrenaturais dos mesmos, como a divindade de Jesus, seus milagres e ressurreição, a mitos desenvolvidos pelos primitivos cristãos, para fornecerem uma aura de revelação divina à sua religião e propagarem com sucesso sua mensagem entre tantas outras superstições. A confiabilidade dos evangelhos, como documentos autênticos, é, portanto, a pedra de toque do cristianismo.
A datação dos evangelhos
Em primeiro lugar, vem a questão envolvendo a época em que os evangelhos foram escritos. Os críticos dos séculos 18 e 20 chegaram a aventar datas extremamente tardias, como, por exemplo, meados do século 2o d.C. Hoje, entretanto, sabe-se, com razoável certeza, que todos os quatro evangelhos foram produzidos no século 1o, enquanto os apóstolos e outras testemunhas oculares dos eventos neles narrados ainda estavam vivos.
Para o evangelho de Marcos, supostamente o primeiro a ter sido escrito, alguns estudiosos atribuem a data de 45 d.C., aproximadamente quinze anos após a morte e ressurreição de Jesus, embora a maioria o date entre 65 e 67 d.C.[iii] Dos documentos antigos do Novo Testamento existentes ainda hoje, o mais antigo é o Papiro Rylands 457, datado de cerca do início do século 2o d.C. Contendo trechos do capítulo 18 do evangelho de João, este papiro faz que o manuscrito, saído das mãos do autor, conhecido como autógrafo, seja datado de pelo menos fins do século 1o. Outro papiro, conhecido como P75, também datado do século 2o, contém grande parte dos evangelhos de João e Lucas.
Entretanto, alguns estudiosos concluíram que um fragmento do evangelho de Mateus antecede os dois papiros mencionados, estipulando sua data para 68 d.C., aproximadamente. De qualquer modo, fica estabelecida uma datação para os evangelhos que não excede os limites do século 1o.
O conteúdo dos evangelhos é fidedigno?
Uma questão, ainda mais importante, vinculada à datação, é se os evangelhos são testemunhos autênticos da vida, morte e ressurreição de Jesus. Em outras palavras, podemos aceitar o relato dos evangelhos como verídico? Quando os evangelhos foram escritos, muitas testemunhas oculares ainda estavam vivas, inclusive a maioria dos inimigos de Jesus. Estas testemunhas poderiam ter agido para corrigir possíveis erros contidos nos evangelhos.
A idéia de que os evangelhos contêm elementos místicos não procede. Isso porque as testemunhas estavam vivas e um mito, geralmente, leva séculos para se desenvolver. Para dar um exemplo: as duas biografias mais antigas de Alexandre, o Grande, datam de mais de quatrocentos anos após sua morte, em 323 a.C. Muito material lendário foi criado acerca de Alexandre, mas somente depois que as duas biografias foram escritas. Ainda hoje, ambas são aceitas como dignas de crédito. Esta comparação serve para mostrar como teria sido praticamente impossível os mitos a respeito de Jesus se desenvolverem em tão pouco tempo.
Os evangelhos foram corrompidos ao longo dos séculos?
Outra acusação feita por alguns críticos é que os evangelhos foram corrompidos ao longo dos séculos. Os evangelhos que temos, portanto, não seriam exatamente iguais aos originais, mas o resultado de alterações feitas por motivos religiosos e políticos. Entretanto, o Novo Testamento é, escancaradamente, o documento mais bem atestado da antiguidade. Existem mais cópias do Novo Testamento do que de qualquer outro documento antigo. São mais de cinco mil manuscritos em grego e versões antigas em siríaco e outras línguas. A Ilíada de Homero, uma das maiores obras da antiguidade grega, empalidece quando comparada ao Novo Testamento. As cópias mais antigas existentes hoje são dos séculos 2o e 3o d.C. Em geral, estas cópias são aceitas pelos estudiosos como autênticas. Este exemplo serve para realçar a evidência em favor da integridade dos evangelhos.
E o que dizer das variantes nos manuscritos do Novo Testamento?
Este é outro ponto ressaltado para diminuir a confiabilidade dos evangelhos. Por terem sido produzidas em diferentes áreas e sob diferentes circunstâncias, e devido aos erros de ortografia dos copistas, alguns manuscritos contêm diferenças entre si. Bruce Metzger, uma das maiores autoridades em grego neotestamentário da atualidade, afirma que as diferenças não afetam substancialmente nenhuma doutrina cristã.[iv] Norman Geisler e William Nix acrescentam: “O Novo Testamento, então, não apenas sobreviveu em maior número de manuscritos que qualquer outro livro da antiguidade, mas sobreviveu em forma mais pura que qualquer outro grande livro – uma forma 99,5% pura”.[v]
O que dizer dos, às vezes, chamados “livros ocultos da Bíblia”, como o Evangelho de Tomás (Tomé)? Esses livros foram escritos nos séculos 2o e 3o d.C. por adeptos do gnosticismo. A reação dos cristãos a este tipo de literatura foi imediata e radical. O gnosticismo foi rechaçado e, com ele, toda sorte de literatura apócrifa, incluindo os falsos evangelhos e outros escritos. Dessa forma, nunca fizeram parte do cânon das escrituras cristãs. A sugestão de que sejam livros “perdidos” não se sustenta diante da evidência histórica, pois, em primeiro lugar, tais obras fantasiosas não foram aceitas pelos cristãos dos primeiros séculos.
Podemos confiar no Novo Testamento como um documento histórico
Autor Data em que Cópia Tempo Número Precisão das
foi escrito mais antiga aproximado de cópias em %
entre o cópias
documento
original e
a cópia
Lucrécio Aprox. 55 ——— 1100 anos 2 ———-
ou 53 a.C
Plínio 61-113 d.C. 850 d.C. 750 anos 7 ———-
Platão 427-347 a.C. 900 d.C. 1200 anos 7 ———-
Demóstenes Aprox 400 a.C. 400 d.C. 800 anos 8 ———-
Heródoto 480-425 a.C. 900 d.C. 1300 anos 8 ———-
Suetonius 75-160 d.C. 950 d.C. 800 anos 8 ———-
Tucídides 460-400 a.C. 900 d.C. 1300 anos 8 ———-
Eurípides 480-406 a.C. 1100 d.C. 1300 anos 9 ———-
Aristófanes 450-385 a.C. 900 d.C. 1200 anos 10 ———-
César 100-44 a.C. 900 d.C. 1000 anos 10 ———-
Tito Lívio Entre 59 a.C. ——– ???? 20 ———-
e 17 d.C.
Tácito Aprox 100 d.C. 1100 d.C. 1000 anos 20 ———-
Aristóteles 384-222 a.C. 1100 d.C. 1400 anos 49 ———-
Sófocles 496-406 a.C. 1000 d.C. 1400 anos 193 ———-
Homero 900 a.C. 400 a.C. 1400 anos 643 95%
(Ilíadas)
Novo Século 1o. d.C. Início Menos 5.600 99.5%
Testamento (entre 50-100 do século de
d.C.) 2o. d.C. 100 anos
O Jesus da história versus o Cristo da fé
Uma questão derivada da anterior é a relação entre o Jesus histórico e o Cristo adorado pelos cristãos. Seriam os mesmos? A historicidade de Jesus é reconhecida universalmente hoje em dia, tanto pelos cristãos como também pelos críticos da fé cristã. Nenhum estudioso sério duvida da existência do carpinteiro de Nazaré. A discussão, entretanto, centra-se na sua identidade. Para alguns críticos, como os do Jesus Seminar, os cristãos teriam alterado a imagem de Jesus, um camponês galileu, atribuindo-lhe uma identidade divina que o próprio Jesus nunca teria reclamado para si. Como um rabino obscuro, e possivelmente um operador de curas, poderia ter-se transformado num objeto de adoração de milhões de pessoas em todo o mundo?
A resposta oferecida pelos críticos baseia-se na mesma premissa utilizada para a questão da confiabilidade dos evangelhos. Cristãos de gerações posteriores teriam criado mitos, por meio dos quais o humilde galileu foi transformado no Filho de Deus, com prerrogativas que só o Deus dos judeus ou, em menor grau, os deuses greco-romanos e das religiões de mistério possuíam. A evidência histórica, entretanto, aponta em outra direção. Antes mesmo de os evangelhos terem sido escritos, a crença em Cristo como Deus já havia-se estabelecido entre os primeiros cristãos.
O apóstolo Paulo iniciou seu ministério no final da década de 40 d.C. e muitas de suas principais epístolas foram escritas na década seguinte. Nestas, Paulo incorporou credos e hinos dos cristãos, seus contemporâneos. Em Filipenses 2.6-11, por exemplo, Paulo fala inequivocamente de Jesus como “existindo em forma de Deus” antes de sua encarnação. Em Colossenses 1.15-20, o apóstolo Paulo chama Jesus de a “imagem do Deus invisível” no seu estado exaltado.
Alguns críticos chegam a acusar Paulo de ter sido um dos responsáveis pela transformação do homem Jesus no Cristo divino. Segundo eles, Paulo teria distorcido o evangelho original de Jesus, convertendo-o de um simples rabino inovador no objeto de devoção de seus discípulos posteriores. Estas acusações, entretanto, não se sustentam quando se leva em conta a totalidade dos ensinos de Paulo a respeito de Jesus. Para o apóstolo, o Cristo divino e exaltado pela ressurreição é o mesmo Jesus histórico que morreu crucificado e foi ressuscitado ao terceiro dia. Em 1Coríntios 15.3-7, Paulo afirma sua crença nos fatos históricos, circundando a morte de Jesus:
“Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E que foi visto por Cefas, e depois pelos doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos. E por derradeiro de todos me apareceu também a mim, como a um abortivo”.
Estes mesmos fatos foram, posteriormente, asseverados nos evangelhos pelas próprias testemunhas oculares da crucificação e ressurreição de Jesus ou por autores ligados a essas testemunhas. É relevante notar que Paulo disse ter recebido a informação concernente à morte e ressurreição de Jesus. Craig Blomberg nota que, se a crucificação se deu em 30 d.C., Paulo deve ter-se convertido ao cristianismo por volta de 32 d.C. e, possivelmente, se encontrou com os apóstolos em Jerusalém pela primeira vez em 32 d.C. Pode-se dizer, então, conclui Blomberg, que a crença na ressurreição de Jesus pode ser datada dentro de dois anos do próprio evento.
Quando comparada às biografias de Alexandre, escritas cerca de quinhentos anos após a sua morte, por exemplo, ou aos mitos criados em relação a personagens famosos da antiguidade, que levaram séculos para ser forjados, a crença na ressurreição tem muito mais apoio histórico, pois foi esposada por testemunhas dos fatos. Estas testemunhas depois a transmitiram a outros, entre os quais Paulo, que, por sua vez, afirmava claramente sua crença na historicidade da ressurreição.[vii]
A importância da ressurreição para o cristianismo
Ele ressuscitou! Essa é a diferença abissal que sempre permanecerá entre Cristo e os demais fundadores históricos das religiões. Muitos opositores do cristianismo aventam que não é um ato extraordinário ou inaudito sofrer martírio em prol de uma causa, pois há registros históricos de outros homens que assim fizeram. Entretanto, a diferença está aqui: no túmulo. Jesus não está mais lá! Isso o torna singular. Os evangelhos atestam um Cristo que esteve morto e está vivo, não um Cristo que esteve vivo e está morto. Veja que a diferença de enfoque é franca. Metaforicamente, podemos dizer que o cristianismo foi concebido de uma tumba vazia. Foi esta evidência que levou os discípulos a entregarem suas vidas ao martírio. Eles não morreram por algo que havia sido inventado por eles próprios e que reconheciam não ser verdadeiro, mas por terem vivenciado as circunstâncias que evidenciaram a ressurreição de Cristo. Como diz James Stewart: “O cristianismo é essencialmente uma religião de ressurreição”.
Se ignorarmos a ressurreição de Cristo, o surgimento da igreja será inexplicável. O evento histórico da ressurreição é a coroação dos fatos e motivos que permearam a vida de Jesus entre os homens. Pela narrativa bíblica, entendemos que: assim como somos compelidos a aceitar a veracidade da encarnação, assim também somos em relação à veracidade da ressurreição. O apóstolo Pedro declara a impossibilidade de Jesus não ter ressuscitado no plano divino da redenção: “Ao qual Deus ressuscitou, soltas as ânsias da morte, pois não era possível que fosse retido por ela” (At 2.24). Uma vez que Cristo morreu para ressuscitar — “Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos” (Rm 8.34) — reconhece-se uma lacuna indisfarçável, o fator ressurreição, quando nos propomos falar sobre a morte de Cristo.
Notas:
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[i] Miguel A. Albanez é consultor e correspondente do ICP nos Estados Unidos, Ph.D. em Estudos Interculturais do Seminário Teológico Fuller e pastor da Primeira Igreja Batista Brasileira de Los Angeles.
[iii] Bailey, Mark e Tom Constable, The New Testament Explorer. Nashville: Word Publishing, 1999.
[iv] In Strobel, Lee, The Case for Christ. Grand Rapids: Zondervan, 1998, p. 82-5.
[v] Geisler, Norman L. e William E. Nix, A General Introduction to the Bible, Chicago: Moody Press, 1980, p. 361.
[vi] Quadro extraído do Christian Apologetics and Research Ministry
[vii] In Strobel, Lee, Op. cit. Grand Rapids: Zondervan, 1998, p.42-3.