Meditações sobre “A Reforma Protestante”

No próximo domingo, dia trinta e um de outubro de dois mil e dez, a igreja do Senhor Jesus Cristo relembra, em justa tonalidade celebratória, do aniversário de um dos mais memoráveis acontecimentos da sua triunfante e sofredora caminhada na face da terra: a Reforma Protestante do século dezesseis, glorioso e impar movimento de avivamento espiritual e reencaminhamento da igreja às fontes doutrinárias de natureza apostólica, as quais, por sua vez, tinham nos ensinamentos de Jesus Cristo o seu indesviável fundamento.

O Senhor Jesus Cristo, após consumar a obra de redenção do seu povo e ressuscitar dentre os mortos, ordenou que a sua igreja pregasse o evangelho da graça salvadora a toda criatura, fizesse discípulos em todas as nações, através do ensino fiel e da pregação honesta de todas as verdades que Ele havia transmitido às suas ovelhas, ao longo de todo o seu ministério.

Durante um certo período, hegemonizado pela presença dos apóstolos e, mais tarde, dos chamados pais da igreja, a igreja preservou, em meio a ferozes perseguições e à ameaça nunca ausente do fermento das heresias, o tesouro da fé e guardou, com zelo exemplar, o bom depósito da doutrina verdadeira, procedente do próprio Deus. Por causa da sua inegociável fidelidade às Escrituras Sagradas, a igreja pagou um alto preço, sendo exposta às mais perversas formas de perseguição.

Cristãos eram impiedosamente jogados em arenas para serem devorados por leões famintos, sob a égide do olhar cúmplice e festivo de plateias impiamente debochadas. Cristãos eram queimados nos pátios dos palácios imperiais a fim de que os seus corpos em chamas iluminassem as tendas da impiedade. Cristãos eram despedaçados pelas lanças de soldados dominados pelo ódio mais veemente e diabólico. Diante da força avassaladora de um império extremamente poderoso e regido por (anti) valores inteiramente contrários à Palavra de Deus, imaginava-se, por certo, que a igreja não resistiria, estaria, enfim, fadada à desaparição completa na laje fria do mais completo esquecimento. Entretanto, provada e aprovada pelo fogo de ardentes perseguições, a igreja permaneceu. E, como asseverou certo pai apostólico, “o sangue dos mártires era a sementeira da igreja”.

Quanto mais os cristãos eram afligidos e mortos, mais se multiplicavam. O tempo passou, a igreja cresceu, hierarquizou-se, ficou poderosa, afastou-se da “simplicidade e pureza devidas a Cristo” e, com impressionante velocidade, mundanizou-se, despojou-se do manto da santidade do seu Senhor e, ato contínuo, fez alianças espúrias e perigosas com o mundo, desfigurou-se, perdeu a identidade, já em pouco ou quase nada se parecia com Aquele que a amou e deu a sua vida por ela.

Nesse percurso de decadência espiritual, deparamo-nos com um episódio emblemático: “a conversão de Constantino”, imperador romano, ao cristianismo. Alegando ter tido uma visão, na qual Cristo lhe dizia que ele venceria os seus adversários por intermédio da cruz, Constantino passa a não somente declarar-se cristão como, de igual modo, transforma, por decreto, o cristianismo na religião oficial do império. Esse acontecimento foi celebrado por muitos como uma grande vitória para o povo de Deus. Por esse prisma, o cristão passaria, agora, a ser usufrutário de duas bênçãos: a de Deus, e a do império. Ser cristão nesse contexto significava desfrutar da proteção estatal e de inúmeras benesses oriundas do poder público. Estava, pois, decretado o fim das perseguições aos cristãos e, em direção contrária, iniciando-se uma fase áurea para a vida da igreja.

Cristo havia preconizado, em sua infalível Palavra, que a sua igreja, na exata medida em que se mantivesse fiel às Escrituras Sagradas, teria aflições e seria alvo da perseguição, não raro do ódio de todas as gentes. Entretanto, a igreja, na contramão do ensino de Filho de Deus, preferiu o caminho do evangelho fácil e das acomodações descriteriosas aos estilos de vida adotados pelo mundo. Com a “conversão” de Constantino, as portas da igreja se escancararam, e o caminho para os pecadores ficou fartamente largo. O dique doutrinário se rompeu, e as águas da impureza de toda espécie, litúrgica, ética, espiritual, moral, invadiram a igreja e corromperam, inteiramente, o conteúdo do evangelho, “poder de Deus e salvação para todo aquele que crê”, conforme atestou inspiradamente o apóstolo Paulo em sua Epístola aos Romanos. Eis-nos, pois, diante das relíquias, indulgências, veneração das imagens, dentre outras invencionices flagrantemente destoantes das Escrituras Sagradas. E, tudo isso, aliado a um culto espalhafatoso, antropocêntrico, pródigo em todo tipo de cerimonialismo vão e, pior que isso, não prescrito pela Palavra de Deus.

Foi nesse contexto marcado por densas trevas, que o Deus Todo-Poderoso, que prometeu que “as portas do inferno não prevaleceriam contra a sua igreja”, levantou os reformadores para reconduzir a igreja à Palavra de Deus, ao intocável coração das grandes verdades do cristianismo histórico e revelado. Nesse sentido, a primeira grande lição que aprendemos é que a Reforma Protestante não inventou nenhuma doutrina nova, não recebeu de Deus nenhuma revelação adicional às Escrituras Sagradas, mas simplesmente redescobriu as grandes doutrinas da graça que haviam sido abandonadas pela igreja e, assim procedendo, promoveu o reencontro da igreja com o genuíno, transformador e simples evangelho da cruz do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, loucura para gentios, escândalo para judeus, mas para os que são salvos, poder e sabedoria de Deus, conforme o arrazoado de Paulo em sua Primeira Epístola aos Coríntios.

Contra o antropocentrismo dominante, que valorizava as obras humanas e as erigia como base suprema da salvação do pecador, os reformadores enfatizaram a doutrina da depravação completa dos homens, a radical corrupção da sua natureza, realidade teológica dramática que a Bíblia chama de morte espiritual. Enfatizaram, também, a suprema da graça de Deus (SOLA GRATIA) na salvação dos pecadores. Graça encarada como favor imerecido que Deus estende ao caído. Graça, inefável dom de um Deus que, por pura bondade, tomou a iniciativa de ir à procura daqueles que se haviam perdido.

O SOLA GRATIA empunhado bem alto pelos reformadores significava que o homem não pode cooperar com Deus em nada para a obtenção da sua vida eterna, a não ser com a vileza do seu pecado, como afirmou certo pensador cristão. Já o profeta Isaías, contundentemente, sentenciou: “mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapos de imundícia” (Isaías 64.6a). Noutras palavras: a justiça que presumimos possuir, e com a qual imaginamos tornar-nos portadores de méritos diante de Deus, é absolutamente inútil, sem serventia alguma no tocante à nossa salvação.

Outra bandeira hasteada altaneiramente pelos reformadores foi a da suficiência e autoritatividade das Escrituras Sagradas. Como bem pontua o teólogo presbiteriano Hermisten Maia Pereira da Costa, a bandeira do SOLA SCRIPTURA (somente a Escritura) não queria dizer que a Bíblia era a única autoridade da igreja, mas sim a única autoridade infalível da igreja, acima de concílios, tradições, da palavra do Papa e de quem quer que fosse. Para os reformadores, a Palavra de Deus era absolutamente confiável em matéria de fé, ética, espiritualidade e moral, regra única de fé e de prática para os cristãos.

Os reformadores também afirmaram o princípio do SOLA FIDE (somente a fé), com isso querendo dizer que somos justificados diante de Deus única e exclusivamente pela graça mediante a fé na pessoa e na obra de Jesus Cristo no calvário. Tal fé, por meio da qual somos salvadoramente unidos ao Filho de Deus, não é uma obra que nos torna aceitáveis diante de Deus, mas sim um dom que Deus nos concede, um resultado imediato da eficaz ação regeneradora em nós realizada pelo Espírito Santo de Deus mediante a instrumentalidade da pregação do evangelho. Tal fé, transcendendo o estatuto de um mero assentimento intelectual, é uma irrestrita atitude de confiança de todo o nosso ser em Cristo Jesus: em sua graça salvadora, poder redentor e perfeita justiça.

Os reformadores, de igual modo, hastearam o pendão da suficiência de Jesus Cristo (SOLUS CHRISTUS), somente Cristo, para a nossa completa e eterna redenção. Na pregação dos reformadores, cristocêntrica em seu cerne, Jesus Cristo foi superlativamente apresentado como o Profeta inigualável, o Sumo Sacerdote e o Rei supremo do universo, Aquele em que todas as profecias bíblicas encontram o fiel e cabal cumprimento. Na teologia e pregação dos reformadores, Jesus Cristo se impunha como o Cordeiro ressurreto de Deus, digno de toda honra e louvor, e não como o Jesus terapeuta e clínico geral dos nossos dias, desfigurado de sua majestade, despido da solenidade dos seus variados e harmoniosos atributos, serviçal de crentes mundanos que trocaram a legítima e bíblica condição adoradores submissos pela de sócios majoritários da divindade, sempre pródigos, como se possível fosse, em exigir do seu Senhor o que julgam ser a expressão dos seus mais lídimos direitos.

Por fim, os reformadores ergueram, indisputavelmente, o estandarte do SOLI DEO GLORIA (glória somente a Deus). Numa quadra histórica permeada por humanismo exacerbado, destoante daquele que nos é apresentado nas Escrituras Sagradas, e grosseira idolatria, os reformadores pontuaram, com justa ênfase, que somente o Senhor é digno de toda honra e glória. Somente Ele é digno de glória, porque em todas as coisas imprimiu o seu indisputável selo criador. Da mais imponente galáxia à mais imperceptível partícula subatômica, tudo obedece aos sábios, santos e misteriosos desígnios de Deus. Somente Ele é digno de glória, porque a tudo tem sustentado com o seu onipotente braço. Somente Ele é digno de glória, porque antes da fundação do mundo decretou, soberanamente, a salvação do seu povo, e o tem preservado até o aguardado dia em que o glorificará na eternidade. Somente Ele é digno de glória, porque, na consumação da história, levará para junto de Si o seu povo, ao mesmo tempo em que brandirá a sua espada inflamada, trazendo eterna vingança contra todos os que rejeitaram ao seu Filho e, ato contínuo, preferiram continuar deleitando-se na senda ignominiosa do pecado.

Por tudo isso, recordar da Reforma Protestante é exaltar a Deus em suas grandes intervenções no tecido concreto da história, de modo a fazer com que todos os seus propósitos cumpram-se cabalmente. Falamos aqui em intervenção um tanto inapropriadamente, porque como bem lembra o aludido teólogo presbiteriano Hermisten Maia, Deus não está fora da história, nela intervindo circunstancial e episodicamente, antes a tem em suas potentes mãos, controlando-a soberanamente.

Contudo, precisamos ter cuidado para que a nossa remembrança da Reforma Protestante não se converta num culto nostálgico estéril e inútil, consubstanciado naquela famosa e quase mítica asserção: “naquele tempo…” A mensagem da Reforma Protestante é de ontem, de hoje e de sempre, dado que a sua essência é o atemporal conteúdo do imutável evangelho da graça de Deus. O que os reformadores fizeram, como tentamos demonstrar ao longo do nosso arrazoado, foi resgatar as grandes verdades do evangelho que haviam sido corrompidas e abandonadas pela igreja de então. Devemos, pois, ao recordarmos da Reforma Protestante, fazer-nos as seguintes indagações: o que estamos pregando hoje guarda alguma semelhança como o que foi proclamado pelos reformadores? Nós ainda cremos mesmo na suficiência das Escrituras Sagradas ou, ao contrário, na busca pelo mito da relevância cultural, estamos fazendo adaptações seriamente comprometedoras da mensagem da cruz? Nós ainda cremos mesmo que o homem irregenerado é depravado e completamente inabilitado para crer em Cristo, a não ser que seja sobrenaturalmente vivificado pelo Espírito Espírito Santo ou, noutra direção, julgamos que está apenas razoavelmente afetado pelo pecado e, consequentemente, capacitado para “aceitar a Cristo ou dar uma chance a Jesus?” Nós ainda pregamos a Cristo como Salvador e Senhor das nossas vidas, Profeta, Sumo Sacerdote e Rei, ou o temos transformado numa mercadoria de segunda mão oferecida de conformidade com o variado e exigente gosto do freguês? Nós ainda nos satisfazemos com o conceito bíblico de igreja como um ajuntamento de pecadores que foram redimidos, transformadores em santos adoradores e “chamados para proclamar as virtudes dAquele que os tirou das trevas para a sua maravilhosa luz” ou, ao contrário, seduzidos pelas ideologias do mercado religioso e desejosos de alcançar notoriedade e crescimento numérico, custe o que custar, temos convertido a igreja num híbrido de entretenimento, clube social e psicologia de autoajuda? Temos perseverado na promoção da glória de Deus, teleologia suprema de todas as coisas, ou temos nos enredado nas teias do personalismo de lideranças carismáticas, autoritárias e autocentradas? Temos aceitado, com humildade, que a nossa missão evangelizadora, que deve ser desempenhada com crescente fervor e paixão, não deve ter compromisso com resultados, mas sim com a infrangível fidelidade que devemos a Deus e à sua Palavra, repousando na convicção de que é do Senhor que procede o crescimento, ou temos assumido a condição de barateadores da graça e marqueteiros dos sublimes valores do reino de Deus?

Em suma: se a nossa relembrança da Reforma Protestante não for pautada por reflexões dessa natureza, se ela não nos impelir a um escrutínio rigoroso de nossa teologia, culto e vida, ela não passará de reminiscência oca, saudosismo inútil, nostalgia romântica e vã, celebração ruidosa e inteiramente desconectada do real espírito que norteou o grande movimento que abalou o século dezesseis, impactou toda a cultura ocidental e promoveu a restauração ético-doutrinário do cristianismo do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. SOLI DEO GLORIA NUNC ET SEMPER.

José Mário da Silva – Presbítero da Igreja Presbiteriana de Campina Grande – PB – Artigo da VINACC

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