Uma caudalosa enxurrada de testemunhos de pessoas que supostamente estiveram no céu ou no inferno tem proliferado no meio evangélico. São relatos surpreendentes, porém extremamente sensacionalistas e repletos de aberrações teológicas. Revelam ser, na verdade, produto de uma mente brilhante, excelentes gêneros da ficção, capaz de produzir filmes como Guerra nas Estrelas, E.T. e tantos outros, arrancando até mesmo aplausos do gênio da ficção científica hollywoodiana, Steven Spielberg.
A Divina Revelação do Inferno1 foi publicada originalmente em inglês com o título: A Divine Revelation of Hell, em 1993, nos Estados Unidos e tem sido desde então um best seller de vendagem por lá. A autora, Mary K. Baxter, é ministra da Igreja Nacional de Deus, em Washington, EUA. Nasceu em Chattanooga, Tennessee, EUA. Segundo relata, começou a ter “visões” de Deus na década de 60, em Michigan, mas foi em 1976, que Jesus teria aparecido para ela, na forma humana, em sonhos, visões e revelações, durante quarenta noites e mandou-a transmitir as profundezas, degradações e tormentos das almas perdidas no inferno (pp. 183, 184).
Recomendações
Entre as pessoas citadas, que indicam o referido livro, encontra-se a Sra. Marilyn Hickey, que num de seus livros ensina ter Noé, sob o efeito da embriaguez, praticado atos homossexuais com seu neto Canaã, além de dizer que o homem possui a natureza de Deus, tornando-se participante de “todos os seus atributos”2. Percebe-se,pois, que a insensatez acompanha não apenas a obra indicada, mas também quem a indicou.
Outro nome de peso é David (Paul) Yonggi Cho, que declarou3: “Eu li este livro, tremendo no meu coração. Eu realmente creio que Rev. Baxter teve um verdadeiro encontro com a realidade do inferno na sua experiência da revelação de Jesus Cristo nosso Senhor” (quarta capa). Apesar de ser notável no meio evangélico, o Sr. Cho pode cometer erros (ele não é infalível!); aliás, não seria a primeira vez que ele ensina algo inconsistente (teologicamente falando). Em uma de suas obras, Cho diz que pediu a Deus três coisas: uma escrivaninha, uma cadeira e uma bicicleta; contudo, Deus disse que não poderia atendê-lo pela seguinte razão: Cho não especificou o que queria. Deus lhe teria dito: “Será que você não sabe que há dezenas de tipos de escrivaninhas, cadeiras e bicicletas? Mas você simplesmente pediu-me uma escrivaninha, uma cadeira e uma bicicleta. Não pediu uma escrivaninha específica, nem uma cadeira nem uma bicicleta específicas”4. Sem perceber, creio eu, o Sr. Cho atentou contra a onisciência de Deus que, segundo o próprio Jesus, sabe de tudo que necessitamos, antes mesmo de pedirmos (Mateus 6:25-32).
Assim, devemos analisar as declarações da Sra. Baxter à luz da Bíblia, e não nos fiarmos em declarações de pessoas que, assim como nós, estão propensas a análises errôneas, não importa quão afamada seja tal pessoa no círculo evangélico (Atos 17:10-11).
Contradições
O caráter contraditório de algumas declarações desqualificam a “revelação” da Sra. Baxter. Por exemplo, na p. 16 encontramos a suposta declaração de Jesus para ela: “Minha filha, levarei você até o inferno (…). Quero que escreva um livro e conte todas as coisasque vou revelar a você” (grifo acrescentado). Desobedecendo à ordem de Jesus, porém, ela comenta na p. 20: “Algumas coisas, por serem horríveis demais, não consegui passar para o papel”(grifo acrescentado). Ora, por mais que a mensagem a ser transmitida fosse dura, os profetas de Deus declaravam o que Ele ordenava, independentemente do que sentiam a esse respeito; tal foi o caso de Jonas, Jeremias, Oséias e outros. A Sra. Baxter revela não possuir características próprias de um profeta de Deus. Para terminar o festival de contradições, diz: “Como obreira de Deus, submeti-me ao comando de Nosso Senhor Jesus Cristo e registrei fervorosamente as coisas que me foram mostradas e reveladas por Ele” (p. 181) — grifo acrescentado.
O Inferno
A Sra. Baxter relata sua “visita” ao inferno nos seguintes termos: “Jesus veio a mim em 1976 (…). Jesus levou-me ao inferno por um período de 40 dias5(…) No mesmo momento, minha alma foi retirada do meu corpo. Saí com Jesus do meu quarto em direção ao céu(…) Meu corpo permanecia na cama, enquanto o meu espírito ia com Jesus através do telhado da casa(…) Depois, começamos a subir cada vez mais, e eu já podia ver a Terra embaixo. Saindo dela, de vários pontos, havia tubos girando em direção a um ponto central, indo e vindo. Eles se moviam como gigantes, continuamente e envolviam a Terra toda. (…) “São os portões do inferno” (pp. 11, 16-18).
A imaginação da Sra. Baxter é fertilíssima. Ela retrata o inferno como se fora um corpo humano. O livro tem alguns capítulos interessantes, como, por exemplo: A perna esquerda do inferno (02); a perna direita do inferno (03); o ventre do inferno (07); o coração do inferno (10), o braço direito do inferno (13); o braço esquerdo do inferno (14); as mandíbulas do inferno (19) etc. Relata a Sra. Baxter (aparentemente citando as palavras de Jesus): “O inferno tem a forma de um corpo (semelhante à forma humana) deitado no centro da Terra. Ele tem a forma de um corpo humano – grande e com muitos compartimentos cheios de tormentos(…). O corpo está deitado de costas, com os braços e as pernas estendidas para fora” (pp. 31, 32,52,53). Nada há nas Escrituras (nem mesmo na literatura apócrifa) que apoie essa versão da Sra. Baxter.
Curiosidades Infernais
O inferno da Sra. Baxter é sui generis. Nada há igual. Numa realidade totalmente espiritual, a Sra. Baxter usa e abusa de seu profuso talento artístico. Veja o que ela “viu” no inferno:
• Ratos e serpentes (p. 53). Como foram parar ali?
• Uma alma — com coração e sangue — dentro de um caixão (p. 57). De que era feito esse caixão só a Sra. Baxter sabe.
• Uma mulher presa numa cela, cujas paredes eram de “barro” e a porta de “um metal escuro com barras e uma fechadura”, e sentada numa “cadeira de balanço, balançando e chorando copiosamente” (p. 70). Pelo que parece, o inferno anda contratando pedreiro, ferreiro e carpinteiro.
• Há uma cena curiosa: Satanás está despachando com um grupo de mulheres, instruindo-as para enganar a muitas pessoas. De repente “uma estante alta foi trazida para perto de Satanás e lá havia muitos papéis. Ele pegou alguns e começou a ler para as mulheres” (p. 63). De que eram feitos aqueles papeis que não queimavam nas profundezas ardentes do inferno da Sra. Baxter?
Aberrações Doutrinárias
Doutrinariamente, Baxter se revela herege ao ensinar um conceito errôneo sobre a Trindade. Ela afirma ouvir de Deus, o Pai, o seguinte: “O Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma única pessoa” (p 158) – grifo acrescentado. Essa heresia, que não faz distinção entre as “pessoas” da Trindade chama-se patripassionismo (ou modalismo, também conhecida como sabelianismo). Para os patripassianos foi o próprio Pai que assumiu a natureza humana, sofreu, morreu e ressuscitou. Diziam que a expressão “Filho” refere-se a carne de Jesus (= natureza humana), e que “Pai” é o elemento divino unido à carne (= Deus)6. Hoje, muitas seitas ensinam tal heresia, como por exemplo, Voz da Verdade, Igreja Pentecostal Unida do Brasil, Tabernáculo da Fé, Igrejas de Deus do Sétimo Dia etc.
No inferno da Sra. Baxter, Satanás jamais sofre; ao contrário, ele conta com um “Centro de Divertimento” (p. 80), onde ele e seus demônios deleitam-se com a desgraça alheia (p. 82). O apóstolo João, porém, diz que Satanás, ao invés de ter um “centro de divertimento”, será atormentado pelos séculos dos séculos (Apocalipse 20:10).
Torturada no Inferno
Ao visitar o “coração” do inferno (capítulo 10), juntamente com Jesus, ele a abandonou, entregando-a aos demônios. Ela conta que sofreu tormentos, foi aprisionada, ajoelhou-se diante de Satã. Diz Baxter: “Espíritos em forma de morcegos me mordiam por toda parte” (p. 90). Ao indagar de Jesus a razão desse incidente, a resposta foi: “Minha filha, o inferno é real. Mas você jamais poderia ter certeza até que experimentasse por si mesma. Agora você sabe da verdade e o que é estar perdido para sempre lá. Você poderá relatar para os outros a sua experiência, sem sentir nenhuma dúvida” (p. 92). O “Jesus” que conduziu a Sra. Baxter ao inferno não era o Jesus da Bíblia (II Coríntios 11: 4). O que a Sra. Baxter conheceu não se deu por satisfeito e, após essa experiência traumática, enviou-a mais uma vez para os tormentos infernais, desta vez às mandíbulas do inferno (capítulo 20). Depois de entrar em colapso, ela declarou que queria “estar bem longe – longe de Jesus, da minha família e de qualquer pessoa” (p. 92). Certamente que o Jesus dos Evangelhos não submeteria nenhum de seus “irmãos” a horrendas atrocidades, como se ele fosse um carrasco nazista.
Sábios conselhos
Não há muito que aproveitar d’ A Divina Revelação do Inferno. A Sra. Baxter deveria levar a sério o que seu “Jesus” lhe disse: “Mantenham-se afastados dos falsos profetas que falam em Meu nome e espalham doutrinas falsas. Despertem! Despertem!” (p. 114). Para concluir, o “Jesus” da Sra. Baxter revelou medíocre conhecimento sobre o inferno, mas, em contrapartida, estava certo quando disse: “Minha filha, algumas pessoas ao lerem o livro que você vai escrever, acharão que tudo isso é uma obra de ficção” (p. 129).
Notas finais
1BAXTER, Mary. Tradução de Leda M.C. Pulcherio. Rio de Janeiro: Danprewan Editora, 1996, 184 pp.
2HICKEY, Marilyn. Quebre a cadeia da maldição hereditária. Rio de Janeiro: ADHONEP, 1988, pp. 30-32, 98.
3O comentário de Mary Schultze (pesquisadora de religiões, membro do Centro de Pesquisas Religiosas, RJ, e da International Academy of Letters of England) é oportuno: “A tradução é de péssima qualidade, com erros de concordância e outros, que tirariam o prazer da leitura, se o livro fosse de leitura agradável”. Ao citarmos o livro, mantivemos o conteúdo original, mesmo com erros de Português.
4CHO, Paul Yonggi. A quarta dimensão. 17ª impressão. Miami: Vida, 1989, pp. 17-20.
5É curioso o fato de que em alguns relatos de visitas ao mundo espiritual, o número de dias seja sempre 40. No livro Paraíso – a cidade santa e a glória do trono, de Elwood Scott (São Paulo, Palavra da Fé Produções, 1992), ele relata que a experiência de um homem que morreu (Séneca Sodi) e de como Deus o ressuscitou após a estada de quarenta dias no Céu; tendo visitado, por incrível que pareça, o local onde fora sepultado o corpo de Moisés. Esses relatos fantasiosos são repletos de revelações extra-bíblicas. Os sensatos espanhóis diriam: “tonterias!”
6FRANGIOTTI, Roque. História das heresias (séculos I-VII). São Paulo, Paulus, 1995, pp. 45-51 e BARDY, D.G. & TRICOT, DA. Chistus – Enciclopédia popular de la doctrina cristológica. Madrid: Afrodísio Aguado SA 1951.
Se você gostou do presente artigo do trabalho do pastor Robert Liichow, do Ministério Cristão Apologético “Inner-City Christian Discernment Ministry, no site.
Pr. Robert Liichow
Tradução do Pr. Natanael Rinaldi