Uma fé carismática e cinematográfica
O significativo e acelerado crescimento evangélico, informado pelo censo demográfico do IBGE, vem acarretando grandes inquietações em alguns clérigos católicos. Os números bradam, em alto e bom som, que os brasileiros estão abandonando a fé católica romana e abraçando a fé evangélica.
Mas o que a cura católica poderia fazer para alterar este quadro? Assistir à marcha dos evangélicos de braços cruzados? Bem… braços cruzados não, mas assistir sim!
Na realidade, milhares de católicos assistiram… Mas, desta vez, “as cenas do filme” não sublimam a fé evangélica, pelo contrário, exaltam a devoção mariana que ganhou, literalmente, “as telas do cinema”. Estamos falando do filme Maria, mãe do Filho de Deus, que estreou nacionalmente em 10 de outubro do mês passado. A iniciativa da produção cinematográfica foi classificada pelos diversos veículos de informação secular como uma espécie de arma empregada na acirrada luta contra o domínio dos evangélicos na mídia.
O catolicismo romano no Brasil está-se avigorando na busca de estratagemas para transpor a apatia que o abraçou nas últimas três décadas e, neste escopo, a vertente católica que mais vem obtendo resultados é reconhecidamente a Renovação Católica Carismática (RCC), cuja representação exponencial encontra seu sinônimo no ícone simpático do padre Marcelo Rossi.
O longa-metragem demandou o expressivo custo de 6,8 milhões de reais e já usufrui o status de uma das produções mais onerosas já realizadas em solo brasileiro. Num momento em que o cinema nacional está em ascensão, um filme religioso desfrutar deste prestígio é um fator preponderante para que os católicos depositem suas esperanças em seus resultados. E não é para menos, pois, segundo estimativa mais pessimista, o filme deveria ser vislumbrado por pelo menos 2,5 milhões de pessoas.
É claro que diante de toda esta aclamação, nossa redação empenhou uma pesquisa com a finalidade de analisar o trabalho, sobretudo por se tratar de uma produção norteada por intenções e conteúdo religiosos. Ponderando a acurada diligência da RCC em se transfigurar num movimento semelhante ao evangélico, surgiu a necessidade de mensurar até que ponto o filme destoaria do evangelho bíblico, premissa que, caso fosse contrariada, causaria certa admiração. O resultado da análise não foi nada inesperado.
O título
Existe um chavão, cuja afirmação declara que “a primeira impressão é a que fica”. Certamente, não querendo gerar uma impressão pejorativa, percebemos que o próprio título do filme, Maria, mãe do Filho de Deus, abranda a exaltação mariana reclamada na clássica expressão Maria, mãe de Deus, cuja primeira aplicação ocorreu no Concílio de Éfeso (431 d.C.). Não é difícil interpretar que este termo, jamais encontrado nas Sagradas Escrituras, sugere uma pessoa acima (ou, no mínimo, ao lado) da Trindade, constituindo assim uma “quaternidade”, isto é, neste caso, uma deusa ao lado da Trindade. Obviamente, a seleção de um título ameno para com a posição protestante denota um intuito ecumênico, porém, em detrimento disso, é inegável o reconhecimento de que pelo menos o título do filme é ortodoxo.
Sobre o enredo
Como podemos observar no vocativo do título, os holofotes estão direcionados para Maria. A narrativa se passa numa pequena vila interiorana do Rio Grande do Norte. O filme desenvolve paralelamente duas histórias. A primeira delas se constrói na fatalidade de uma jovem viúva (Maria) que possui uma filha (Joaninha) com suspeita de um gravíssimo problema de saúde. Certo dia, a mãe tem de ir ao médico de uma cidade adjacente para obter a avaliação de um exame sobre o caso da menina, e, não podendo levá-la, a deixa sob a responsabilidade de um sacerdote (Marcelo Rossi) por algumas horas. Este, por sua vez, narra para a menina a outra história do filme, a angústia de Maria, a mãe do Filho de Deus.
A compaixão enfatizada pelo evangelho também se constata nas ações do padre que, enquanto conta a história para Joaninha, anda por toda a vila visitando os desafortunados e pregando sua fé.
A história “bíblica” é, na realidade, uma espécie de projeção da menina Joaninha que enxerga na Maria da Bíblia sua própria mãe e no anjo Gabriel, o padre Marcelo Rossi. Vejamos alguns pontos proeminentes do enredo:
Maria opera um milagre
O relato mostra uma Maria segundo o estereótipo dos adesivos católicos, exceto pelo fato de não possuir olhos azuis. Pouco após a anunciação da gravidez sobrenatural, informada pelo anjo Gabriel, Maria cura milagrosamente um pequeno bebê com o simples toque de suas mãos na face da criança. Seu pai, chamado no filme de Joaquim, que estava desesperado e desconfiado de sua integridade, presencia o milagre e a reverencia, ajoelhando-se diante dela. Mas Maria, ao contrário do que poderia se esperar, repreende o pai, dizendo-lhe para não fazer tal coisa.
O menino Jesus opera um milagre
Depois de mencionar brevemente o episódio da matança dos meninos delegada por Herodes, o filme mostra Jesus aos seis anos de idade dando a vida a um pombinho morto. Posteriormente, diante da morte de seu avô, o pequeno Jesus faz o sinal da cruz em sua testa (uma alusão à extrema-unção) e seus pais o indagam com quem ele aprendeu tal coisa. O menino responde que o seu Pai (Deus) o ensinou. A seguir, o pai de Jesus também falece e Jesus revela um pequeno conflito por ter ressuscitado um pombo e ter sido incapaz de fazê-lo em relação ao seu avô e seu pai. A partir daí, explora-se a solidão de Maria, que passa a ser viúva e sem filhos.
Maria pede perdão a Jesus
Esse diálogo extrabíblico se dá no contexto das bodas de Caná da Galiléia, quando Maria, segundo o filme, pede perdão a Jesus por ter insistido no episódio da transformação da água em vinho (Cf. Jo 2.1-12). É oportuno ressaltar que justamente neste trecho encontramos o evangelista João reprovando qualquer possibilidade de milagres realizados por Jesus quando criança. A afirmação bíblica, especialmente no evangelho de João 2.11, é de que “Jesus principiou assim os seus sinais em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele” (grifo do autor).
Maria conselheira
Mesmo após seu batismo – uma atitude consciente, pois sabia que deveria observá-lo para cumprir toda a justiça (Mt 3.15) -, Jesus se mostra, no filme, com grandes conflitos, revelando estar um pouco incerto em relação à sua missão. Assim, Jesus se despede de Maria com a escusa de descobrir o que o Pai (Deus) quer de si e recusa ser acompanhado por Maria, que súplica para segui-lo. A despedida é concluída com um conselho de Maria, que lhe diz para “nunca esquecer que é o seu coração que deve guiar os seus passos”.
Maria perseguida
Com a fama de Jesus alcançando diversos lugares, a solitária Maria é perseguida por uma mulher que afirma ser Jesus um “servo do maligno”. Esta mesma mulher também provoca Maria, perguntando ironicamente onde Jesus estaria naquele momento e por que ele a abandonou.
Maria intercessora
Maria intercede a Jesus, para que faça algo em relação à prisão de seu primo João Batista, porém, sem sucesso.
Maria auxiliadora
Maria está sempre a par dos acontecimentos que envolvem Jesus, porém, há ocasiões em que o próprio Jesus confidencia-lhe seu futuro. É o que notadamente acontece, por exemplo, quando Jesus ternamente revela-lhe que sua hora estava chegando (referindo-se ao seu martírio), dizendo: “Preciso da sua força”. Jesus ainda declara que Maria é sua fortaleza e amor.
Maria participa do sofrimento de Cristo
Maria roga ao Pai para que poupe o sofrimento do Filho, porém, considera: “Se eu não posso sofrer por ele, que eu sofra com ele”. Com a aproximação do clímax do sacrifício de Cristo, Maria passa a ter alguns presságios e se angustia. Também, Maria Madalena sonha com o sofrimento de Maria no monte Calvário.
Maria e a crucificação
Enquanto Jesus carrega a pesada cruz na “via dolorosa”, Maria o abraça, aflita. No momento em que os algozes romanos estão transpassando os cravos nas mãos de Jesus, Maria tenta impedir, mas sem conseguir. Após a consumação da morte de Cristo, seu corpo é retirado da cruz pelos soldados e é reclinado junto ao colo de Maria.
Maria, mãe da humanidade
Depois de sua ressurreição, que, a propósito, é primeiramente apregoada aos discípulos por Maria, Jesus diz-lhe que necessita ir para o Pai, e Maria roga para que Jesus a leve junto com Ele. Jesus não nega a sua petição, entretanto, pede-lhe que “fique um pouco mais”. E justifica seu pedido com a seguinte preocupação: “O que será de seus filhos?” (referindo-se a toda a humanidade).Maria e a ascensão
Como prometido, depois de algum tempo, Jesus retorna à terra, para buscar “sua mãe”, uma referência à ascensão corporal de Maria, cuja oficialização foi proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950.
Um holofote para Pedro
Apesar de os holofotes estarem direcionados à protagonista, a mãe do Filho de Deus, o apóstolo Pedro não poderia “passar em branco” nessa história, especialmente porque é nele em quem, segundo a igreja romana, inicia toda a sucessão papal. Assim, totalmente fora do contexto, na ocasião em que o Jesus ressurreto encontra os discípulos pescando e indaga a Pedro acerca de seu amor por Ele, também o declara que “se tornaria a pedra sobre a qual seria erguida a igreja de Cristo”.
Maria ainda opera milagres
Concluindo o enredo, desta vez na história paralela, a mãe de Joaninha retorna do médico para buscar sua filha, que estava com o padre, e traz consigo uma reconfortante notícia: “Joaninha havia sido curada milagrosamente”, causando espanto no médico e fazendo transbordar de alegria o coração de sua mãe. Esta emocionante cena fecha o filme, atribuindo o milagre a Deus e a Maria, justificando a declaração do Padre Marcelo que disse na pré-estréia do filme em Natal (RN): “Espero que vocês tenham trazido o lenço, porque a história faz chorar”.
Uma luz no fim do túnel
O leitor pôde perceber como o filme em análise, ao contrário da Bíblia, é mariocêntrico. É destacável que esse fato é reconhecido até mesmo pela mídia secular.”Curiosamente, os evangelhos não são muito ricos em informações sobre a Virgem – seu papel diminui na narrativa à medida que o de Jesus cresce. Entre os relatos da crucificação, por exemplo, só o evangelista João a menciona. No filme do padre Marcelo, ao contrário, Maria aparece em diversos episódios: a ressurreição de Lázaro, o perdão de Maria Madalena, a aparição de Jesus aos discípulos”, foi a declaração contida na matéria especial da revista Veja (08/09/03).
Considerações Finais
Finalmente, depois desta breve explanação, os otimistas conseguem enxergar um pequeno saldo positivo nisso tudo. Não podemos negar que a fé católica, em detrimento de seus desvios, está mais próxima do protestantismo do que muitos outros grupos religiosos, até porque o protestantismo foi gerado de uma reforma doutrinária dentro do catolicismo. Sabemos o quanto é difícil pregar o evangelho para aqueles que não reconhecem a Bíblia como livro sacro, como é o caso dos muçulmanos (Alcorão), dos hindus (Bagavad-gita), dos budistas (Tripitaka) e outros.
A bem da verdade, até mesmo entre os grupos pseudocristãos a apostasia da fé é difícil de ocorrer. Em contrapartida, os católicos estão mais propensos ao reconhecimento da fé evangélica. Apesar das diferenças, no entanto, também possuem pontos em comum. Isto é, metaforicamente, podemos dizer que há uma luz no fim do túnel. Haja vista os testemunhos de várias pessoas que deixaram de viver o catolicismo nominal para praticá-lo e acabaram conhecendo mais a Bíblia e se convertendo ao evangelho.
Portanto, e sobretudo, temos de enxergar os católicos carismáticos com amor, pois se estão abdicando de algumas regras tradicionais para se assemelhar aos evangélicos é porque, ao menos os fiéis deste grupo, reconhecem que há necessidade de mudança, e é justamente este ponto que temos de explorar, apontando a direção para a mudança completa, o nascimento de uma nova criatura, segundo os rudimentos da fé bíblica. A partir daí, naturalmente, tais pessoas entenderão o verdadeiro lugar de Maria na teologia bíblica.