LIBERDADE DE EXPRESSÃO, MIDIA E TERRORISMO
REVISITANDO O CASO CHARLIE HEBDO
Este artigo faz parte de algumas elucubrações feitas por mim por ocasião do atentado ao Jornal Charlie Hebdo em janeiro deste ano, mas que não tiveram a oportunidade de serem publicadas na ocasião. Esquecidas, mas não descartadas, minhas suspeitas de então vieram a se confirmar ao observar atônito a França ser novamente abalada por um brutal assassinato em massa envolvendo o terrorismo islâmico. Aproveito algumas daquelas, não tão velhas reflexões, para concatenar ao episódio da última semana.
Charlie Hebdo um pavio ainda aceso
Apesar de os recentes atentados em Paris não ter aparentemente nenhuma relação com o jornal Charlie Hebdo, a motivação para a continuidade do terror na França, pode ser rastreada até às polêmicas suscitadas pelo periódico francês. O caso foi lembrado por um dos terroristas após o Estado Islâmico assumir a autoria da carnificina da fatídica sexta-feira treze. A mensagem quase subliminar nos alerta: o tempo não produz amnésia em gente dessa estirpe – ao contrário – parece que o elemento tempo serve mais como um dispositivo de retroalimentação para canalizar o ódio desses grupos. Para eles, de fato, a vingança é um prato que se come frio!
Apesar de reprovar o ataque covarde e criminoso dos terroristas islâmicos contra inocentes, contudo, em nome da sanidade, do bom senso e da justiça não posso deixar de revisitar a polêmica causada pelas charges do “profeta” e ver nas provocações, também um atentado contra a fé, a dignidade e o sentimento de milhões de pessoas não apenas islâmicas, mas de credos de todos os matizes, principalmente cristão.
JE SUI CHARLIE? Não, obrigado! Não fui e não quero ser Charlie. Não canto e não me encanto com o mantra codificado do establishment politicamente correto. Prefiro andar na contramão do sistema a ter que afinar meu diapasão por ele. É óbvio que a intenção das charges foi tão inconsequente quanto a motivação megalomaníaca dos loucos jihadistas, somente um obtuso não consegue ver isso. Mas o que esperar de uma sociedade que ainda respira a filosofia rousseauniana da bondade inata dos homens? Não nos iludamos, Charlie é o reflexo cultural de uma sociedade que pretende a maioridade baseada na ilusão da autonomia prometida pela modernidade.
Liberdade de expressão, o código da imprensa internacional
Do outro lado, assistimos a osmose do discurso hipócrita da mídia internacional que converteu a liberdade de expressão em moeda no mercado do discurso ideológico ocidental. Fica patente a hipocrisia velada dos meios de comunicação em massa, pois em nenhum momento a mídia televisiva expôs ao público o verdadeiro trabalho dos mentores do Charlie Hebdo e por uma simples razão, pois até mesmo para a TV seria indecente e ultrajante mostrar charges imorais e blasfemas envolvendo símbolos da fé cristã, judaica e islâmica ao cidadão comum.
A mídia deixou deliberadamente as pessoas alienadas do verdadeiro objetivo do jornal que é na verdade ultrajar e debochar da maneira mais vil a religião alheia. A França tem produzido desde a sua revolução o mito da liberdade e autonomia humana e se autoenganado com ela. É bom lembrar que em nome dessa tal liberdade, os paladinos da Revolução Francesa mataram milhares de religiosos. Agora em nome da liberdade de expressão pode-se desmoralizar quem quer que seja que não se configura em intolerância ou preconceito.[1]
A inversão de valores é embutida de maneira sutil com dispositivos linguísticos sofisticados para que os significados das palavras sejam enfraquecidos ou mesmo alterados criando uma grave confusão semântica na mente das pessoas. Preconceito e ofensa moral tornaram-se válidas quando são praticadas por jornalistas ateus e homossexuais. Mas imagine o contrário, e se fosse um jornalista cristão criticando o homossexualismo em suas charges. Qual seria a reação da mídia politicamente correta? Não é preciso muita imaginação para saber que algumas palavras estrategicamente selecionadas estampariam as manchetes dos principais jornais: homofobia, intolerância e preconceito, a tríade predileta dos modernos da atualidade. E aos politicamente corretos quero deixar claro que não se trata de criar nenhum straw man, mas de perceber que as questões são julgadas com dois pesos e duas medidas. Intolerância e preconceito só possuem o significado real quando lhes é conveniente, ainda mais quando ditas por aqueles que detêm o poder. É a verdade compartimentada do mundo da mídia!
Não sou Charlie, mas nem por isso sou insensível
Estou tão profundamente chocado e indignado quanto qualquer cidadão e muito solidário para com as famílias das vítimas, todavia meus sentimentos não estão entorpecidos o bastante para não perceber que os recentes atentados é parte também de uma construção histórica da sociedade francesa. Estão colhendo somente o que plantaram. Que Deus nos ajude!
[1] Mas veja como o destino é irônico, os franceses paladinos da liberdade, estão preferindo agora trocar a liberdade pela segurança. Enquanto eles vão ressuscitando o velho dilema filosófico, uma ameaça de bomba no Arco do Triunfo suscita novo desespero popular, símbolo de vitória e extremamente caro para os parisienses!