Lei ou escrito de dívida?

Uma resposta ao adventista Sérgio Monteiro

Semanas atrás o programa “Vejam Só”, da RIT, levou ao debate o seguinte tema: “A lei foi cravada na cruz?” – uma reflexão acerca do significado de Colossenses 2.14 – “e havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário, removeu-o do meio de nós, cravando-o na cruz”.

Um dos debatedores era o pastor Paulo Sérgio Batista, da Igreja Batista, defendendo que o texto diz respeito à lei mosaica e que ela fora cravada na cruz. Do outro lado, estava o teólogo adventista, Sérgio Monteiro, sustentando que não. Na sua opinião, Paulo estaria falando de um cheirographon, “escrito de dívida”, conhecido dentro da cultura judaica e até em livros apócrifos (Apocalipse de Elias) como simplesmente “um débito para com Deus”.

Entretanto, o texto fala que este “escrito de dívida” tinha força de “ordenanças”, claramente uma referência à lei em Efésios 2.14. Para negar a força da expressão, Monteiro alegou que, ali, “ordenanças” (dogmasin) eram meras “interpretações erradas sobre a lei”. Ora, ficou clara a confusão cometida pelo adventista ao tentar desvencilhar-se da lei, posto que, ao mesmo tempo em que nega que o “escrito de dívida” esteja falando sobre a lei, admite que as ordenanças deste “escrito” eram interpretações erradas sobre essa mesma lei. Uma lei que, segundo ele, nem aparece no texto em lide. Argumento um tanto confuso e pouco convincente, que poderia ter sido mais bem explorado pelo pastor Paulo Sérgio Batista no debate.

Fica difícil entender como as “ordenanças” do “escrito de dívida” eram “interpretações erradas a respeito da lei” se ele mesmo afirmara que nem no texto original aparece o termo “nomos”(lei), e que a expressão “escrito de dívida” era apenas “um débito para com Deus” e não a lei em si.

Partindo da premissa de que o texto não fala sobre a lei, Monteiro elaborou algumas perguntas ao interlocutor: “Como a lei foi ‘cravada’ quando nem a palavra lei ou a palavra cravar aparece no texto?” Outra: “Se porventura o texto estiver realmente falando sobre a lei, como essa lei poderia ser contrária e prejudicial a nós, sendo que Paulo diz que ela é santa e boa?”. Segundo ele, não fica claro em que sentido a lei poderia ser prejudicial.

Bom, quanto à palavra “cravou”, está no texto original sim. O verbo grego traduzido por cravarproséloó” está no tempo aoristo, prosēlōsas. Referente às outras duas perguntas merecem uma resposta à parte, sobretudo quanto à ausência do termo “nomos”.

Outra flagrante contradição do adventista foi tentar descartar o fato de que o verso não esteja tratando da lei simplesmente porque, segundo ele mesmo declarou, “quando o judeu lia este texto, ele não ligava com a lei”. Ora, mas foi ele mesmo quem descartou que os destinatários da epístola fossem de procedência judaica, mesmo que, a contragosto, admita que o verso 16 fale realmente sobre o sistema judaico! O que ele está tentando fazer é algo contraproducente, isto é, querer que uma audiência gentia leia o texto com as categorias da mentalidade judaica!

Salvo engano, o senhor Monteiro está seguindo à risca os argumentos de Samuelle Bacchiocchi em “Do sábado para o Domingo”. Sendo assim, seus argumentos sofrem da mesma fraqueza daqueles constantes no livro do adventista italiano.

Um pastor em desacordo com a teologia da sua igreja

É bom destacar que o senhor Monteiro não está nem mesmo de acordo com a interpretação da sua própria igreja quando afirma que o verso 14 não trata sobre a lei. A igreja adventista sempre enxergou na “cédula” uma metáfora da lei, mesmo que seja a cerimonial. Observe:

Nichol –  “Em vista disso, não temos dificuldades em compreender a que Paulo se refere quando fala da ‘lei dos mandamentos na forma de ordenanças’ e do ‘escrito de dívida…que constava de ordenanças’, nos dois textos que estamos examinando. Ele quer dizer simplesmente a lei cerimonial.” (NICHOL, Francis D. Respostas a Objeções: uma defesa bíblica da doutrina adventista. Tatuí: CPB, 2004, p. 79 – grifo nosso)

“É dito, por outro lado, que a lei abolida é ‘contra nós’ e ‘nos é prejudicial’. Seria alguém tão presunçoso a ponto de dizer que os Dez Mandamentos são ‘contra nós’ e ‘nos são prejudiciais’? Longe de ensinar que a lei dos Dez Mandamentos foi abolida, esses textos nem mesmo a mencionam.” (Ibidem, p. 80)

Christianini – “d) Notemos que esta cédula de ordenanças nos era contrária. Sim, porque a complicadíssima e onerosa lei cerimonial, com suas exigências difíceis e até penosas, tendo preenchido a sua efêmera finalidade com a morte de Cristo, perdeu a vigência, tornou-se desnecessária e mesmo contrária ao cristão.” (CHRISTIANINI, Arnaldo B. Subtilezas do erro. Tatuí: CPB, 1965, p. 79 – grifo nosso)

Comentário Adventista do Sétimo Dia – “Outros veem uma referência mais geral à lei mosaica, especialmente como interpretada pelos judeus. O último ponto de vista parece mais harmônico com o contexto seguinte. A similaridade com a linguagem de Efésios 2.15 e a natureza paralela dessas duas epístolas sugere fortemente que o “escrito de ordenanças” é o mesmo que a lei dos mandamentos na forma de ordenanças” (ver com. Efésios 2.15).” (Comentário Adventista do Sétimo Dia. Tatuí: CPB, vol. 7, 2014, p. 199)

Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia -“É dito ainda que essa dívida ou condenação apresenta ação judicial contra nós. Não só não era hostil; esta nota de débito se compunha de ‘ordenanças que eram contra nós’ (NASB). Curiosamente essa frase que descreve a nota promissória inclui uma de somente duas ocorrências paulinas da mesma palavra grega dogma, ‘opinião’ ou ‘decreto’; a outra aparece em Efésios 2.15. Percebe-se claramente em ambos os textos um sistema de regulamentos […] Em ambos os casos dogma tem a ver com a lei cerimonial judaica […] Não se trata, portanto, da lei moral, incluindo os dez mandamentos […]” (Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia. CPB, 2011, p. 531 – grifo nosso)

Bíblia de Estudo Andrews assim define a passagem: “Isso pode se referir à lei cerimonial de Moisés e ao fim de exigências cerimoniais, como os sacrifícios. Ou ainda a linguagem vívida pode descrever um certificado de dívida ou nota promissória que lista o débito que temos por nossos pecados […]” (Tatuí: CPB, 2015, p. 1554 – grifo nosso)

Há algumas coisas que devemos notar aqui.

1) A interpretação de todos eles é que o cheirographon é a lei cerimonial;

2) O verso de Colossenses 2.14 estaria falando da mesma coisa que Efésios 2.15;

3) A lei cerimonial era “contra nós” e foi cravada na cruz;

4) O termo dogmata “ordenanças” diz respeito às exigências cerimoniais da lei.

Lembrando que a igreja adventista já deu a entender que Efésios 2.15 pode estar falando da lei moral: “Segundo, Cristo ‘aboliu na sua carne a lei dos mandamentos na forma de ordenanças’ (Efés. 2:15). Embora tenha havido um grande debate sobre a que lei Paulo está se referindo aqui (moral ou cerimonial), o argumento dele é que por meio de Cristo tudo o que dividia judeus e gentios foi abolido em Jesus.” (Lição da Escola Sabatina: Efésios, o evangelho dos relacionamentos.  Adultos/Professor, 4ª Trimestre – outubro/dezembro, 2005, p. 72 – grifo nosso)

Uma divergência aconteceu recentemente com o artigo do teólogo Wilson Paroschi, quando disse: “Mas, em Gálatas, como em Colossenses 2.14 e 2 Coríntios 3:7-11, o apóstolo se referiu sobretudo à lei moral.”  (Wilson Paroschi – Lições de Gálatas – Revista Adventista, maio de 2012, p.18 – grifo nosso).

Não sei como ele consegue inferir tal coisa sem prejudicar a teologia adventista sobre a vigência da lei dentro do Novo Testamento, o que é obviamente contraditório, mas o fato é que sua interpretação levada às últimas consequências, infere que a lei moral foi cravada na cruz.

Outra versão apresentada vem de um artigo acadêmico da revista adventista Kerigma. Neste artigo a pesquisa contrapõe tanto a versão tradicional, quanto a de Paroschi:

“O texto diz que algo contra nos foi cravado na cruz. Devemos tomar cuidado em dizer que uma lei foi cravada, pois a palavra lei (nomos) nem aparece no livro todo de Colossenses. A Lei Cerimonial não foi contra nós. Ela nos mostrava o plano da salvação. A Lei Moral é contra nós no sentido de que nos mostra o que é pecado (Rom 3.20; 7.7-11). Mas a Lei Moral, apesar de mostrar o pecado é ‘santa, justa e boa’. Não se pode entender na palavra cheirografon a ideia da Lei Mosaica, pois é um registro de pecados que foi destruído.(LIMA, Heber Nicholas de. Cerimonial ou moral?: um estudo sobre o sábado em Colossenses 2:14-17. In: III Jornada Bíblica-Teológica, 9, 2003. São Paulo: UNASP: Kerigma Ano 1 – Número 1 – 1º. Semestre 2005. Disponível em: < https://revistas.unasp.edu.br/kerygma/article/view/354/358>. Acesso em: 16.10.2017 – grifo nosso)

Ainda, segundo essa interpretação, “ordenanças” não teria nada a ver com  “interpretação errada” do senhor Monteiro, mas a base legal do escrito.

“O que são as ordenanças? Aqui a expressão grega é dogmasin e significa ‘opinião,’ ‘decreto,’ ‘estatuto.’ A Bíblia de Jerusalém traduz o texto da seguinte forma: ‘apagou, em detrimento das ordens legais, o título de dívida que existia contra nós; e o suprimiu, pregando-o na cruz’ (v. 14). Estas ‘ordens legais’ seriam a sentença de morte do regime da Lei. Bacchiocchi diz que a base legal do registro dos pecados eram os estatutos ou regulamentos, ou seja a base legal, a lei. Mas isto não foi destruído. O que foi destruído foi o registro escrito dos nossos pecados.” (Ibidem)

É interessante observar que recentemente pontos delicados do que eles chamam de “verdade presente” estejam passando por um sutil revisionismo.

Os adventistas não estão bem certos do que seja o “escrito de dívida”. Para a teologia tradicional adventista é a lei cerimonial, pois ela seria contra nós. Entretanto, os revisionistas atuais romperam com a teologia de sua igreja acreditando que nenhum tipo de lei estaria presente no verso. Mas seu argumento é contradito por alguns deles, como Paroschi, quando afirma que Col. 2:14 fala da lei moral. Monteiro, Bacchiocchi e Lima seguem na direção da exclusão total das leis, mas acreditam que mesmo que não estejam presentes no texto, as ordenanças são a base legal desta cédula ou escrito.

Cheirographon – apenas um escrito das nossas dívidas?

Para Monteiro, sim. Era apenas um “débito da nossa culpa” que foi apagado. Para reforçar seu argumento, ele apela às pesquisas de Bacchiocchi apontando para o contexto literário fora do cânon, no qual os judeus teriam em mente simplesmente um “caderno com nossas faltas”.[1] Mas, e o contexto geral e imediato da passagem, não diz nada sobre o que seria ou conteria esse tal “escrito de dívida”? O contexto imediato da passagem foi deixado de lado por Monteiro durante o debate.

A primeira coisa que precisamos saber sobre Cheirographon é que ele não era unicamente um escrito de dívida.

O teólogo R. C. H. Lenski, em sua “Interpretação das epístolas paulinas”[2], mostra que cheirographon  pode recorrer a um contrato de trabalho, para um documento que dá autoridade para agir ou até mesmo para acordos empresariais. Portanto, engana-se o senhor Monteiro ao dizer que cheirographon significa apenas um escrito para se lembrar ou registrar uma dívida. Significa simplesmente um documento escrito.

O Dicionário Strong, no verbete 5498 χειρογραφον cheirographon, afirma que é uma palavra composta de 5495 χειρ cheir que traz o sentido de 1) pela ajuda ou ação de alguém, por meio de alguém; 2) fig. aplica-se a Deus simbolizando sua força, atividade, poder; e 1125 γραφω grafo que possui os seguintes sentidos:

1) escrever, com referência à forma das letras;

1a) delinear (ou formar) letras numa tabuleta, pergaminho, papel, ou outro material;

2) escrever, com referência ao conteúdo do escrito;

2a) expressar em caracteres escritos;

2b) comprometer-se a escrever (coisas que não podem ser esquecidas), anotar, registrar;

2c) usado em referência àquelas coisas que estão escritas nos livros sagrados (do AT);

2d) escrever para alguém, i.e., dar informação ou instruções por escrito (em uma carta);

3) preencher com a escrita.

Portanto esse termo traz as seguintes possibilidades:

1) manuscrito, o que alguém escreveu por sua própria mão;

2) nota manuscrita na qual alguém reconhece que recebeu dinheiro como depositário ou por empréstimo, e que será devolvido no tempo determinado.[3]

O referido documento registrado no v.14 deve ser determinado pelo contexto. Diz Paulo que cheirographon consiste em “regulamentos”, “ordenanças”, “decretos” (da palavra dogmasin no grego). Colossenses 2.14, portanto, não descreve pura e simplesmente um documento que nós assinamos, mas algo que foi escrito em decretos divinos. Essa mesma palavra “dogmasin” (δόγμασιν) aparece em Efésios 2.15, onde Paulo discute sobre a lei mosaica obviamente. Colossenses 2.14 e Efésios 2.15 estão falando do mesmo documento, fato este que fora ratificado até mesmo pelas autoridades da sua própria igreja como consta nos documentos mencionados acima.

Quando nós examinamos o contexto de Colossenses 2.14, vemos que é precedido por uma referência à circuncisão[4] e é seguido por uma referência sobre festas, luas novas e sábados. Paulo chama isto de “stoicheia”, ou seja, “de princípios de regulamentos deste mundo” (Col. 2.8,20), da mesma maneira que ele fez em Gálatas 4:9,10. É bom ter em mente que Paulo escrevia aos gálatas para combater aqueles que queriam impor a lei mosaica aos cristãos gentios.

Comentando sobre a mesma passagem, o conhecido Aníbal Pereira Reis, ex-padre, chega à seguinte conclusão: “As ofensas procediam contra as disposições morais do decálogo. Se se tratasse aí de ordenanças puramente cerimoniais, o texto teria se valido do termo “dikaioma” aplicado no plural “dikaiomata” com este sentido ao aludir a cerimônias judaicas em Hb 9:1,10, e não a forma verbal “dogmatizomai”. Ou ter-se-ia valido do vocábulo “ethos” que significa “ritos e costumes”, encontrado em Lc 1.9; Jo 19.40; At 6.14; 15.1;16.21; 21.21;25.16;26.3;28.17 e Hb 10.25.”[5]

Dogmasin – era mera “interpretações erradas sobre a lei”?

Surpreendentemente, contrariando o contexto tanto do Antigo, quanto do Novo Testamento, da teologia protestante em geral e até da sua própria denominação, o pastor adventista acredita que o termo “ordenanças” significava “interpretações erradas sobre a lei”, o que é obviamente absurdo como ficou sobejamente demonstrado no tópico anterior.

Paulo irá relacionar todas as regras e exigências, tanto judaicas como pagãs, como parte destas ordenanças, “Se, pois estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêssemos no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies?” (vs.20,21 – grifo nosso). É interessante observar que Paulo em Gálatas liga estes rudimentos aos dias de festas judaicos (Cf. Gl. 4.9,10) o que justamente aparece no contexto da passagem em apreço (Cf. 2.16).

Duas perguntas que merecem respostas

1º – Monteiro questionou que o verso 14 não pode estar tratando sobre a lei porque o termo grego para lei, nomos, nem aparece no texto original.

Esse argumento é improcedente, pois, apesar do termo nomos (lei) não estar registrado literalmente na epístola, seu conteúdo pode ser encontrado lá.

Os estudiosos têm observado que Colossenses é uma carta singular em diversos aspectos, mas principalmente quanto ao seu vocabulário, estilo e cristologia. Há palavras que só aparecem nessa epístola; outras ela compartilha somente com Efésios e ainda outras, presentes nas demais epístolas, estão ausentes em Colossenses. Dentre elas destacamos as seguintes: justificação, fé, salvação e lei.

É difícil não enxergar ensinos que apontam para a justificação, a fé e a salvação nesta epístola, apesar destes termos não aparecerem na grafia do texto.

Alegar que o verso 14 não trata da lei, ancorado na pura e simples ausência da grafia no texto, é o mesmo que negar a doutrina da Trindade tendo por justificativa a ausência do termo na Bíblia ou negar a presença de Deus no livro de Ester porque o tetragrama hebraico não aparece nesse livro. Ridículo!

Ellen White, a profetisa da Igreja do senhor Monteiro, tinha convicção que a lei fazia parte, pelo menos a lei cerimonial, daquela passagem: “Então cessariam todas as ofertas sacrificiais. Foi esta a lei que Cristo ‘tirou do meio de nós, cravando-a na cruz’. Colossenses 2:14.” [6]

O documento acadêmico, já referido acima, contesta dizendo: “Ela espiritualiza o texto. Pode ser que ela está fazendo uma aplicação espiritual, ela não estaria interpretando e nem reinterpretando o texto, ela está fazendo uma espiritualização do texto. Lembramos que o que foi cravado na cruz era contra nós. A lei cerimonial não era contra nós, e se dissermos que foi, então a obra de Jesus Cristo também foi e é contra nós, pois Ele é o antítipo.” (Lima – grifo nosso)

Como a autoridade de Ellen White é inquestionável dentro desta igreja, não podendo ser contrariada, a saída foi fazer uma leitura espiritualizada do que afirmou a “profetisa” para não colidir com ela. Entretanto, é bom frisar que EGW estava apenas repetindo a crença da IASD sobre esse versículo. Será que o restante dos escritores adventistas citados acima estariam espiritualizando esse verso também? Claro que não. O fato é que eles não sabem o que fazer com Colossenses 2:14 e 16.

Observe o que diz o teólogo N.R. Champlin sobre a ausência do termo nomos nesta passagem: “O termo grego ‘dogma’ é usado em lugar de ‘nomos’ (palavra normalmente usada para indicar a ‘lei’), a fim de enfatizar sua ‘natureza exigente’, a fim de dar a entender que ninguém, nem mesmo os falsos mestres, que a advogavam, como se a mesma trouxesse bem-estar espiritual, realmente obtém tal beneficio da lei” (CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo. Vol. V Colossenses. São Paulo: Candeia, 1995, p. 122)

2º – Como a lei poderia ser contra nós e em que sentido?

Bom, em primeiro lugar a lei está contra nós em diversos sentidos. Até Lima admite isso quando afirma: “A Lei Moral é contra nós no sentido de que nos mostra o que é pecado (Rom 3.20; 7.7-11).”, mas sem assumir todas as consequências daí advindas. É bom lembrar que a lei, apesar de ser santa e boa, era uma testemunha contra nós. Ela não foi dada para nos ajudar, ao contrário, ela nos incentiva a quebrantá-la. Sendo assim, resta-nos perguntar às Escrituras: para que a lei foi dada?

Deuteronômio 31.26 afirma: “Tomai este livro da lei, e ponde-o ao lado da arca da aliança do Senhor vosso Deus, para que ali esteja por testemunha contra ti” (NVI).

Lembre-se que ninguém conseguiu cumprir a lei, e isso nos colocava como devedores e amaldiçoados perante Deus. Desta maneira, ela era uma testemunha contra nós. Jesus, ao cumprir integralmente a lei e ao morrer por nossos pecados, pagou e apagou nossas dívidas, cravando o documento legal na cruz. O escrito de dívida tinha por fundamento a lei.

Agora essa pergunta do adventista tem por base outra bem costumeira: “Se Jesus cravou a lei na cruz, então ficamos sem lei? Podemos então roubar, matar, adulterar já que estamos sem lei?”

Claro que não. Paulo mesmo responde da seguinte maneira: “Pois quê? Pecaremos porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum.” (Cf. Rm 6.15)

Não estamos sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo (Cf. 1 Co 9.20,21).

A lei mosaica com suas exigências pode muito bem ir para cruz sem que com isso nos cause algum prejuízo moral, por exemplo, de nos tornarmos anarquistas ou anomistas.

Como outros teólogos interpretaram Cl. 2.14

Muitos teólogos acreditam que o verso esteja se referindo à lei mosaica de fato. Bacchiocchi, ao comentar essa passagem, cita em seu livro “Do sábado para o domingo” alguns teólogos que afirmam esse ponto de vista. Dentre eles, encontra-se “F. Prat, The Theology of St. Paul, 1927, II, pp. 228-229, categoricamente defende esta posição. C. Masson (nota 19), p. 127, lista, como defensores desta posição, Oltremare, Abbott, Haupt e Kittel.”

Desde o antigo Matthew Henry até os mais recentes, como o leitor pode averiguar abaixo, todos assumem a posição de que Paulo teria em mente a lei mosaica no verso 14:

Matthew Henry – “Cristo tirou do caminho a lei das ordenanças que foi o jugo dos judeus, e muro de separação para os gentios. As sombras fugiram quando a substância se fez presente. Como todo mortal é culpável de morte, pelo escrito na lei, quão espantosa é a situação dos ímpios réprobos que pisoteiam o sangue do Filho de Deus.” (Comentário Bíblico Matthew Henry)

Jamieson, Fausset, Brown – “Cancelando a acusação da lei contra você. A lei (incluindo, especialmente, a lei moral, em que a principal dificuldade é a de obedecer) é revogada para o crente, na medida em que era um código obrigatório e acusador […]

“O Escrito” (aludindo ao Decálogo, o representante da lei, escrito pela mão de Deus) é toda a lei, o vínculo obrigatório, segundo o qual todos se encontram; os judeus principalmente estavam sob o vínculo, mas eles, a esse respeito, eram as pessoas representativas do mundo (Romanos 3:19); e na sua incapacidade de manter a lei, envolvida a incapacidade dos gentios também, em cujo coração “a obra da lei foi escrita” (Romanos 2:15)” (Robert Jamieson, A. R. Fausset, David Brown. Commentary Critical and Explanatory on the Whole Bible. Colossenses. 1871)

John Gill’s, em seu Exposition of the Bible, parece seguir o mesmo raciocínio ao declarar que “toda a lei de Moisés […] era o escrito de Deus e obrigava a obediência e punição em caso de desobediência; e isso os judeus chamam […], ‘o escrito de dívida’”

A.T. Robertson – “Sem dúvida, ‘o escrito em decretos’ (dogmasin, a lei mosaica, Efésios 2:15) foi contra os judeus (Êxodo 24: 3; Deuteronômio 27: 14-26), pois eles a aceitaram, mas os gentios também deram um assentimento moral a Deus pela Lei escrita em seus corações (Romanos 2:14). Então, Paulo diz ‘contra nós’ […] e acrescenta ‘o que era contrário a nós’ […] porque nós (nem judeus nem gentios) não conseguimos mantê-la […] ‘Quando Cristo foi crucificado, Deus cravou a Lei em Sua cruz’ (Peake).” (Word Pictures of the New Testament, 1930)

Comentário Bíblico Expositivo – “Livres da Lei nele (v. 14). Jesus Cristo não apenas tomou sobre si nossos pecados na cruz (1 Pe 2:24), mas também levou a Lei para a cruz, onde a pregou e tirou do caminho para sempre. A Lei era indiscutivelmente contrária a nós, pois era impossível cumprir suas exigências santas. Apesar de Deus não ter dado os Dez Mandamentos aos gentios, as exigências justas da Lei – as normas sagradas de Deus – foram “gravadas no seu coração” (Rm 2:12-16).” (Wiersbe, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento: volume II. Santo André, SP: Geográfica Editora, 2006, 166,167)

Comentário Bíblico Beacon – A acusação é contra nós. A cédula é a lei e a consciência. A obrigação legal nos é contrária. Agora Paulo declara o modo no qual Deus retirará a pena de morte. “Havendo riscado” significa que a acusação foi “lambuzada” como se dá quando se aplica cera.36 “Outro modo de dizer é que, considerando que Cristo morreu e que fomos mortos com ele pelo batismo ‘na sua morte’, então o título de dívida não é mais válido; nossa morte (com Cristo) nos liberta da obrigação. (Comentário Bíblico Beacon. Rio de janeiro: CPAD, 2006, p. 325)

Comentário Bíblico Moody – “O escrito é um certificado de débito (Deiss, BS, pág. 247) e presumivelmente se refere à lei escrita de Moisés. Para os gentios ela também pode incluir a lei com a qual suas consciências concordavam (cons. Rm. 2:14, 15; Êx. 24:3; Ef. 2:15). Esta obrigação que, não estando quitada, permanecia contra nós foi paga na cruz.” (Comentário Bíblico Moody)

Comentário Bíblico Pentecostal – “Paulo explica dois fatos sobre este certificado de dívida: 1) Era acompanhado de certas ‘ordenanças’. Não somos informados, com exatidão, sobre o completo teor destas ‘ordenanças’; porém é muito provável que estivessem relacionadas às exigências da lei de Moisés, que jamais poderiam ser cumpridas.” (Comentário Bíblico Pentecostal: Novo Testamento. 4 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 1345)

Comentário Bíblico Popular – “A certidão de dívida contra nós descreve a lei. Em certo sentido, os Dez Mandamentos foram contra nós, condenando-nos porque não os cumprimos perfeitamente. Mas o apóstolo Paulo está a pensar não só sobre os Dez Mandamentos, mas também sobre a lei cerimonial dada a Israel. A lei cerimonial está presente em todos os mandamentos, no tocante aos dias santos, alimentos e outros rituais religiosos. Isso fazia parte da prescrição da religião judaica.” (Comentário Bíblico Popular do Novo Testamento versículo por versículo, p. 928)

O Novo Comentário da Bíblia – “Primeiro, Ele cancelou o escrito de dívida (14). A lei é aqui contemplada como débito do homem pelo que ele é responsável. É contra nós porque permanece como testemunho da nossa falência, mas Deus, em Cristo, cancelou o título da dívida. Segundo, Ele fez ainda mais. Ele a tomou e a jogou fora (14). Lightfoot parafraseia “a lei de… ordenanças foi cravada na cruz, rasgada com o corpo de Cristo, e destruída com a sua morte”” (O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 2184)

Conclusão

O debatedor adventista teve dificuldades em conseguir provar de maneira convincente que Paulo não tinha em mente a “lei” em Cl 2.14. Sua estratégia em procurar a interpretação fora do contexto imediato também falhou, já que o “escrito” constava de ordenanças, justamente uma palavra que remete às exigências da lei mosaica. Para solucionar essa contradição, ele preferiu reinterpretar “dogmasin” como “interpretações erradas sobre a lei”, indo contra o contexto das cartas paulinas, contra a interpretação do “espírito de profecia” (leia-se “Ellen G. White”) e da teologia evangélica em geral.

As evidências parecem corroborar com o fato de que esse “escrito” ou “cédula de ordenanças” de que fala Paulo e que era contra nós, diz respeito a toda a lei.

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[1] Outro teólogo lembrado pelos adventistas que dá margem a essa interpretação é o professor de Novo Testamento Ralph P. Martin em seu comentário “Colossenses e Filemon: introdução e comentário”. São Paulo: Mundo Cristão, 1984.

[2] The Interpretation of St. Paul’s Epistles to the Colossians, to the Thessalonians, to Timothy, to Titus and to Philemon, p.114.

[3] Dicionário Bíblico Strong: Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil: 2002.

[4] Samuelle Bacchiocchi tenta refutar essa evidência alegando que Paulo usa o termo “circuncisão” em um sentido espiritual. Todavia, o texto lido atentamente mostra que o termo aparece nos dois sentidos: metafórico e literal.

[5] Reis, Aníbal Pereira. A guarda do Sábado. Ed. Caminho de Damasco, s/d, pp 95-99.

[6] White, Ellen G. Patriarcas e profetas. CPB, 2007, p.323.

 

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