Mulheres relatam abusos sexuais do médium João de Deus durante atendimentos espirituais
Dez mulheres dizem que sofreram abuso em visitas à Casa Dom Inácio de Loyola.
Dez mulheres relatam terem sofrido abusos sexuais do médium João de Deus durante atendimentos espirituais na Casa Dom Inácio de Loyola, na cidade de Abadiânia, em Goiás. As histórias foram reveladas no programa Conversa com Bial desta sexta-feira (7). Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, João de Deus afirma que “rechaça veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos”.
João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, é famoso pelos atendimentos e cirurgias espirituais que faz desde 1976, em Abadiânia, uma cidade com menos de 19 mil habitantes. A Casa Dom Inácio de Loyola recebe até 10 mil pessoas por mês – a maioria, estrangeiros. Os relatos sobre as curas obtidas pelo médium espírita, incorporando entidades, se espalharam pelo mundo.
Apenas uma das mulheres ouvidas por Bial, Zahira Leeneke Maus, uma coreógrafa holandesa, aceitou se identificar. Outras, todas brasileiras, preferiram não mostrar o rosto, por sentirem medo e vergonha.
Zahira fez recentemente uma denúncia pública no Facebook, quatro anos após ter sofrido a violência sexual. “Eu sei que tenho sido criticada: ‘Por que você está vindo com a sua história, se ele está curando milhares de pessoas?’ E essa é uma das razões do porquê eu não disse nada. Porque se fosse só eu, eu que engula, porque ele está curando milhares de pessoas, certo? Mas agora eu sei, ele está abusando de centenas de mulheres e meninas”, afirmou Zahira.
Depois da publicação na internet, ela começou a ter contato com outras mulheres que diziam ter passado pela mesma situação.
Padrão de comportamento
De acordo com os relatos, João de Deus agiu de forma similar em todos os casos. Durante os atendimentos espirituais coletivos, o médium disse para as mulheres que, segundo a entidade, elas deveriam procurá-lo posteriormente em sua sala, porque tinham sido escolhidas para receber a cura. As entrevistadas dizem que, uma vez que elas estavam sozinhas com ele, eram violentadas sexualmente.
“Pegava na minha mão para eu pegar no pênis dele. (…) Ele falava: ‘Põe a mão, isso é limpeza. Você precisa dessa limpeza, é o único jeito de fazer isso'”, disse uma mulher que procurou João de Deus para cura espiritual.
De acordo com Zahira, ao ouvir os relatos de outras mulheres, ela percebeu que “existe um sistema. A primeira coisa é ‘vire de costas, eu vou te curar’. Existe um padrão (…) Você é manipulada a acreditar na cura”.
Segundo uma das mulheres, o médium demonstrou saber que aquilo que estava fazendo com ela poderia ser considerado assédio sexual.
“Calma, eu não estou com tesão, mas preciso fazer isso para te curar”, uma delas relatou ter ouvido de João de Deus durante o abuso.
Segundo ela, o religioso a obrigou a masturbá-lo enquanto ela chorava, aos soluços.
“Eu sei muito bem o que estou fazendo e que isso seria considerado assédio, eu não sou louco. Dizia que estava me livrando das energias negativas”, relatou a segunda mulher, que disse ter sido constrangida a segurar o pênis do médium. Ele também teria tocado partes do corpo dela, como os seios. Em um determinado momento, ele teria dito que não era mais a entidade ali, que era o homem.
‘Não vai falar para ninguém’
Uma das brasileiras entrevistadas disse que já costumava frequentar a casa em Abadiânia. E que em 2013, depois de se divorciar, voltou a procurar o médium. Ela contou que participava de um atendimento em grupo, quando também foi convidada por João de Deus para encontrá-lo mais tarde na sala dele.
“Então ele me conduziu para um baheiro, que mais parece uma sala, poque é muito grande e fechou a porta. Ali ele pediu para ficar de costas pra ele. Ele perguntou se tinha metal. Falei que sim, o sutiã. Pediu pra eu tirar. Pus o braço por dentro e tirei. Ele falou: ‘vou ficar atrás de você e fazer realinhamento energético. Aí ele ficou muito próximo, colocou minha mão pra trás, isso ele já estava com o pênis pra fora, ele falou: “Põe a mão aí, isso é limpeza, você precisa da minha energia, que só vem dessa maneira pra fazer a limpeza em você.”
Disse que o médium pediu pra ela voltar outras vezes.
“Às 7h da manhã, ele fez a mesma coisa, só que dessa vez ele sentou numa cadeira e pediu para eu fazer sexo oral nele.”
“Eu fiz com muito nojo, e realmente eu não fazia, porque… Eu não chegava perto. E ele dizia: ‘Faça isso direito, menina. Você não quer as coisas? Como é que fazendo as coisas desse jeito você vai ter as coisas na sua vida?’”
Essa outra mulher, que deu entrevista ao lado do marido, disse que procurou a casa de Abadiânia depois de passar por um tratamento de câncer de mama. Lá, se submeteu a uma cirurgia espiritual – e foi orientada a voltar para uma revisão.
No encontro, recebeu um pedido de João de Deus: “O que eu fizer aqui dentro, você não vai falar pra ninguém”. “E ele falou assim: ‘você levante que vou te curar’. E você vai ter que se entregar. Aí pediu pra ficar de costas e nisso ele começou a passar a mão no meu corpo, no meu abdômen, no meu seio, pela minha nádega, que até então, ele ja tava comprimindo meu corpo. Aí eu comecei a chorar, comecei a ficar desesperada e eu só pensava assim: ‘como eu vou sair daqui’. Eu olhava pra uma porta, olhava pra outra, e eu pensava: ‘se eu gritar, tem milhares de pessoas aí fora que endeusam ele, chamam ele de João de Deus’.”
Ela conta que o médium ficou irritado e fez uma espécie de ameaça: “Você está sendo ingrata, você não esta se entregando. Se você não fizer o que eu estou falando, a sua doença vai voltar. Você quer que volte?”
‘Eu tava ali sendo abusada’
Outra mulher, de 33 anos, contou que procurou João de Deus porque tinha depressão e síndrome do pânico. Segundo ela, logo que ficou sozinha com o médium na sala, ele trancou a porta.
“‘Levanta aqui q vou limpar seus chacras’ [ele disse]. Nisso ele ficou em pé, eu fiquei na frente dele, e ele já começou a fazer movimento, passando a mão no meu peito. Nisso ele me virou e pediu pra fazer massagem na barriga dele. Eu fazendo essa massagem, ele pedia pra eu fazer com força, pedia pra eu ficar de olho aberto, e eu não conseguia porque eu já tava incomodada. Aí ele me afastou um pouco e já tirou o pênis pra fora. E pegava na minha mão pra pegar no pênis dele, eu tirava a mão e ele falava: ‘Você é forte, você é corajosa. O que você tá fazendo tem um valor enorme’. Eu não tava fazendo nada. Eu tava ali sendo abusada. Eu não tava fazendo nada.”
O que é considerado crime
Gabriela Manssur, promotora de Justiça do Estado de São Paulo, diz que, segundo a legislação penal, o ato sexual compreende qualquer ato que a pessoa faça para a satisfação de seu desejo sexual. Não precisa ser necessariamente a conjunção carnal, que é a introdução do pênis na vagina. Pode ser, por exemplo, sexo anal, oral, passar as mãos no seio, apalpar a pessoa fazendo força.
“Não há necessidade de violência física, há situações em que essa violência está presumida. Mas, se a mulher não conseguir por alguma circunstância oferecer resistência e evitar que isso ocorra, pode ser considerado estupro uma violência presumida em situação de vulnerabilidade temporária naquele momento do ato sexual”, diz a promotora Gabriela Manssur.
A lei aborda a questão da violação sexual mediante fraude, chamada de estelionato sexual, e situações de estupro mediante violência presumida, que são essas situações de vulnerabilidade.
“Na violação sexual mediante fraude, essa mulher acaba consentindo com a relação sexual, ela está sendo enganada, então ela acaba tendo esse consentimento viciado, ela não está manifestando a sua vontade livre e consciente. Esse poderia ser um estelionato sexual. E há a questão da vulnerabilidade, quando ela não consegue oferecer resistência, mas está sendo contra a vontade dela, ela não queria fazer aquilo, mas ela não consegue oferecer resistência, porque alguma circunstância tirou essa possibilidade de manifestar seu consentimento”, explica a promotora.
Gabriela Manssur diz que é comum que vítimas desse tipo de crime não falem sobre ele imediatamente após ocorrido.
“Esse tipo de abuso sexual, esse tipo de violência contra a mulher, ele paralisa, ele silencia a mulher vítima de violência. Ela não consegue reagir porque é como se ela estivesse congelada. Ela fica paralisada, naquele momento ela não entende o que está acontecendo. E depois de um tempo ela se sente muito envergonhada com aquilo que aconteceu e começa a perguntar: por que eu não gritei? Por que eu não saí correndo? Por que eu não reagi? Ela não consegue entender por que ela estava naquela situação, como ela foi parar naquela situação, principalmente nos abusos sexuais que não têm aquela violência física e ameaça de morte.”
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Extraído do G1 em 08/12/2018