Jó 42.2 ensina o determinismo?

Continuando nossa serie de estudos sobre os textos usados por deterministas para provar a soberania meticulosa (exaustiva ou determinismo) de Deus, chegamos ao livro de Jó no capitulo 42 onde vemos as belas declarações de Jó diante da grandiosidade de Deus.

O determinista ao olhar as palavras do verso dois de Jó 42, as entende como sendo uma prova cabal de que Deus determina cada coisa que acontece no universo e que Deus não somente permite o mal, mas também o torna certo. O texto referido diz:

“Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido.”

A questão primordial aqui é: esse texto está ensinando que tudo que acontece no mundo é proposito de Deus? Para o determinista a resposta é sim, mas será isso uma verdade? Mostraremos que os deterministas erram na exegese porque esse texto não dá base para declarar que tudo que acontece no mundo é meticulosamente determinado por Deus. Iniciaremos mostrando a compreensão teológica do contexto da época de Jó, depois daremos uma breve explicação respondendo a questão de “porque o justo sofre?”. Só após analisarmos esse contexto é que poderemos ter uma clara compreensão das palavras de Jó em 42.2.

  1. A teologia da época de Jó

É muito importante para nossa compreensão do texto em estudo entender como era a teologia da época relatada no livro, pois uma das chaves para entender é saber o pensamento sobre Deus que Jó e seus amigos tinham. O dr. Staneey Ellisen  nos diz o seguinte sobre o assunto:

“Uma teologia legalista. O ponto de vista legalista dos três amigos sobre pecado e sofrimento fazia parte da ortodoxia da época, também defendida por Jó. Deus era considerado uma divindade de “causa e efeito” que recompensava e punia imediatamente de um modo automático e indireto. Uma opinião errada a respeito de Deus deu aos três amigos uma opinião equivocada a respeito de Jó, de seu sofrimento e promoveu uma opinião errada sobre eles mesmos. Produziu também um ponto de vista falho sobre a maneira de Deus salvar e amadurecer indivíduos. Eles desconheciam o fato de Deus estar sempre pronto a estender sua misericórdia e graça aos indignos. Assim a recusa de Jó em aceitar a solução mecânica para o seu sofrimento foi julgada como blasfêmia. O resultado deste debate foi um golpe violento na errada ortodoxia, deixando espaço para a reconstrução da fé em uma verdadeira concepção de Deus.” [1]

De acordo com as palavras acima, vemos que a má ortodoxia levou os personagens a uma visão de um Deus completamente equivocada. A ideia dos amigos de Jó (e do próprio Jó) era de que riqueza e saúde eram evidencias que a pessoa era justa e gozava do favor do Senhor pelas obras que realizava, e o sofrimento era, na verdade, um castigo de Deus para o pecado conforme Elifaz (amigo de Jó) deixa claro quando diz:

“Lembra-te agora qual é o inocente que jamais pereceu? E onde foram os sinceros destruídos? Segundo eu tenho visto, os que lavram iniquidade, e semeiam mal, segam o mesmo. Com o hálito de Deus perecem; e com o sopro da sua ira se consomem.” Jó 4:7-9

O contexto dessa declaração nos mostra que ela está inserida na ideia de que se a pessoa sofre, logo é por estar em rebeldia contra Deus. Segundo esse amigo de Jó, a pessoa que sofre não é inocente, sincera e pratica o mal.

A má ortodoxia fica ainda mais evidente quando vemos as palavras de Bildade (segundo amigo de Jó), que diz:

“Porventura perverteria Deus o direito? E perverteria o Todo Poderoso a justiça? Se teus filhos pecaram contra ele, também ele os lançou na mão da sua transgressão. Mas, se tu de madrugada buscares a Deus, e ao Todo-Poderoso pedires misericórdia; Se fores puro e reto, certamente logo despertará por ti, e restaurará a morada da tua justiça.” Jó 8:3-6

Como podemos observar Bildade também está inserido neste pensamento errôneo sobre Deus e entende que se uma pessoa está sofrendo é porque fez algo contra Deus. Zofar, o terceiro amigo de Jó, tendo essa mesma teologia legalista afirma que:

“Se tu preparares o teu coração, e estenderes as tuas mãos para ele; se há iniquidade na tua mão, lança-a para longe de ti e não deixes habitar a injustiça nas tuas tendas. Porque então o teu rosto levantarás sem mácula; e estarás firme, e não temerás” Jó 11:13-15.

Zofar entendia que Jó havia feito alguma iniquidade e precisava confessar. Para ele, e para os outros dois amigos de Jó, era inconcebível que alguém sofresse sem que tivesse feito alguma injustiça, pois na teologia da época todos os que sofriam estavam assim por alguma iniquidade.

1.2 Por que o Justo sofre?

Com as observações apresentadas sobre o pensamento teológico da época de Jó podemos entender o motivo de Deus permitir que o Diabo fizesse todas aquelas mazelas com Jó. A questão não era que Jó não fosse um justo, pois o próprio Deus chama a Jó de íntegro e reto. Isso sugere que Jó não só se desviava do mal na presença dos outros, mas que até mesmo quando estava sozinho continuava agindo da mesma maneira reta, pois temia ao Senhor e por isso seu caráter era sincero (Jó 1.8). A questão repousa no entendimento errado que Jó e seus amigos tinham sobre Deus. Para eles, Deus não passava de uma divindade mecânica pronta para castigar os impenitentes com sofrimentos e dores. É verdade que Deus pune os maus, mas Deus também prova seus filhos com o objetivo de torná-los melhores. Deus então permite que todas essas coisas aconteçam para promover um amadurecimento em seu povo. Como Stanley Ellisen diz:

“O sofrimento é um privilegio que Deus da ao seu povo para ajuda-lo a cumprir um grande proposito, tal como refutar Satanás.” (Jó 1.8).

Não é que Deus seja dependente do homem, mas que Ele graciosamente nos dá o privilegio de cooperar com Ele na execução de seu proposito que, no caso do contexto do livro, era mostrar o péssimo entendimento que se tinha sobre Deus. Aqui cabe uma observação! Esse mesmo entendimento tem surgido em meio do atual cenário teológico com o nome de teologia da prosperidade. Os defensores dessa “teologia” entendem que se uma pessoa sofre não tendo riquezas ou tendo alguma enfermidade, é porque estão longe de Deus. Isso fere completamente as escrituras porque a própria Bíblia refuta tal ideia. Podemos ver na Palavra do Senhor que vários homens de Deus passaram por dificuldades e nem por isso estavam longe d’Ele. Paulo nos informa que passou por diversas fazes da vida. Em Filipenses 4, ele diz:

“Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter abundância, como a padecer necessidade. Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece.” Filipenses 4:12,13

O crente quando entende que Deus não deixará vir sobre si nada que não possa suportar (1ª Coríntios 10.13), sabe que quando Deus permite algo sobre nós está nos instruindo a sermos crentes melhores que não blasfemarão quando estiverem passando necessidades e não se esquecerão de Deus quando estiverem em abundância. O crente verdadeiro tem a sua confiança, pois ama a Deus e Ele tem poder para fazer todas as coisas cooperarem para o bem dos que O amam (Hebreus 8.28).

  1. Entendendo Jó 42.2

            Agora que entendemos esse contexto sobre o pensamento teológico da época de Jó e respondemos a pergunta de “por que o justo sofre?” podemos então prosseguir para o correto entendimento correto de Jó 42.2. O texto diz:

“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado.”

Agora Jó reconhece que Deus pode fazer tudo e não apenas pelo Seu Poder, mas também por Seu Direito. O entendimento errado de Jó que levou o mesmo a murmurar contra Deus era estar sendo punindo de maneira injusta. Jó agora entende que Deus tem o direito de agir como bem entender e que deveria confiar em Deus mesmo não entendendo os motivos que levaram Deus a permitir a adversidade.

Os planos de Deus não podem ser frustrados. É aqui que o determinista erra ao tentar entender esse texto, pois o mesmo não está dizendo que tudo que acontece no mundo é determinado exaustivamente por Deus. O que o texto diz é que nada que o homem ou o diabo fizer poderá frustrar os planos de Deus, mas isso não significa que todas as mazelas que acontecem no mundo sejam a vontade de Deus. Os planos ou propósitos de Deus são conhecidos na sua palavra e são justos e amorosos, pois Deus é Amor. É da vontade de Deus e, portanto seu proposito, salvar os que livremente creem e condenar os que não creem. Entretanto, até condenar os que rejeitam a oferta da salvação deriva da vontade de Deus em preservar os relacionamentos sinceros e não forçar ninguém a ama-Lo sem que esse sentimento seja livre. Norman Geisler cita CS Lewis para demonstrar essa verdade quando comenta o assunto:

“A porta do inferno esta trancada pelo lado de dentro”. Todos os que para lá vão escolheram ir para lá. Lewis acrescentou: “Não se preocupe. Só há duas espécies de pessoas no final: os que dizem a Deus, “Seja feita a tua vontade”, e aqueles a quem Deus diz: A tua vontade seja feita. Todos os que estão no inferno foi porque escolheram. Sem essa auto escolha não haveria inferno. Alma alguma que desejar sincera e constantemente a alegria irá perdê-la. Os que buscam encontram. Para aqueles que batem a porta é aberta.”[2]

Após citar Lewis, Geisler continua:

“Além do mais, o céu seria inferno para os que não se encacham nele. Pois o céu é um lugar de constante louvor e adoração a Deus (Apocalipse 4-5). Mas para os não cristãos, que não gostam de uma hora sequer de adoração por semana na terra, seria o inferno força-los a adorar a Deus eternamente no céu!”[3]

Geisler continua a explicação citando mais uma vez CS Lewis:

“Escutemos Lewis mais uma vez: Todos salvos. A minha razão, porem, replica: com ou sem o consentimento deles? Se disser: sem seu consentimento, percebo imediatamente uma contradição; como pode o ato supremo da auto – rendição ser involuntário? Se disser: “com seu consentimento”, minha razão replica, como, se não quiserem crer?”[4]

Geisler, conclui de maneira majestosa dizendo:

“Deus é Justo e deve punir o pecado (Habacuque 1.13, Apocalipse 20.11 – 15). Mas Ele também é amor (1joão 4.16) e Seu Amor não pode forçar os outros a amá – Lo. O amor através da coerção, mas apenas persuasivamente. O amor forçado é uma contradição em termos, Por conseguinte, o amor de Deus exige que haja um inferno onde as pessoas que não desejam amá-Lo possam experimentar o grande divorcio quando Deus lhe disser: “seja feita a sua vontade!””[5]

Com isso entendemos que os propósitos de Deus sempre são bons propósitos. Deus é bom e justo na maneira como governa o ser humano e não faz nada que seja arbitrário ou contrario a sua natureza santa, justa e amorosa. Jó imaginava que Deus estava sendo injusto ao permitir que todas aquelas mazelas que sobrevieram sobre ele era injustiça, mas ao ver o tamanho da sabedoria divina (Jó 42.3), percebeu que falou do que não conhecia, mas agora Jó sabe que tudo que Deus faz é justo e tem um objetivo bom, mesmo que não se entenda de imediato.

2.1 A opinião de diversos especialistas é contraria ao determinismo

            Ao pesquisar sobre o texto de Jó 42,2 vemos que vários comentaristas respeitados fazem “eco” conosco quando falamos que não existe base para o determinismo nesse verso e nem no contexto do livro de Jó. Agora vamos colocar a opinião de alguns deles e logo em seguida daremos a conclusão do nosso estudo.

Jamieson Fausset

“Na primeira cláusula, ele é dono de Deus para ser onipotente sobre a natureza, em contraste com sua própria fraqueza, que Deus havia provado (Jó 40:15; 41:34); No segundo, que Deus é supremamente justo (o que, para ser governador do mundo, Ele precisa ser) em todos os Seus tratos, em contraste com sua própria vileza (Jó 42: 6) e incompetência para lidar com a Ímpio como juiz justo (Jó 40: 8-14).

Pensamento – “propósito”, como em Jó 17:11; (Jó 21:27, Sl 10: 2): a palavra ambígua foi projetada para expressar que, enquanto que para a visão finita de Jó, os planos de Deus parecem ruins, ao Todo-sábio eles continuam sem obstáculos em seu desenvolvimento, e finalmente serão vistos como sendo tão bons quanto eles são infinitamente sábios. Nenhum mal pode emanar do Pai do bem (Tg 1:13, 17); Mas é sua prerrogativa para anular o mal para o bem.[6]”

 O comentário de Wiersbe

“A segunda resposta de Jó (Jó 42: 1-6):Jó sabia que ele era espancado. Não havia nenhuma maneira que ele pudesse discutir seu caso com Deus. Citando as próprias palavras de Deus (Jó 42: 3-4), Jó se humilhou perante o Senhor e reconheceu Seu poder e justiça ao executar seus planos (v. 2). Então Jó admitiu que suas palavras foram erradas e que ele havia falado sobre coisas que ele não entendia (v.3). Jó retirou suas acusações de que Deus era injusto e não o tratava com justiça. Ele percebeu que tudo o que Deus faz é certo e o homem deve aceitá-lo pela fé.[7]”

Henry, Matthew

“Na primeira sentença Jó reconhece que Deus é onipotente sobre a natureza, em contraste com sua própria fraqueza, que Deus havia testado (40:10; 41:34); no segundo, que Deus é o justo supremo (o que deve ser, para ser governante do mundo) em todas as suas relações, em contraste com a fraqueza de Jó (v. 6), e sua incompetência em lidar com os ímpios como justo juiz ( 40: 3-9).

Pensamento-propósito, como em 17:11; mas comumente aplicado a projetos maus (27:27; Sl 10: 2): a palavra ambígua é escolhido deliberadamente para expressar que, na visão humana de Jó, aparentemente, os planos de Deus parece ruins, mas  para o Onisciente continuam sem obstáculos em o seu desenvolvimento e, finalmente, estes planos serão vistos tão bons e infinitamente sábios, como eles são (Tiago 1:13, 17).”[8]

Assim, fica evidente que Jó descobriu algo importantíssimo: a diferença entre o poder humano, e o poder de Deus. Como ser humano, ele descobriu como seus poderes eram limitados e impossíveis de se comparar com o poder de Deus que pode todas as coisas. Jó que havia tido condições de obter riquezas, família e ter servos, não podia todas as coisas, pois não pode enfrentar satanás, a doença, bem como, a depressão e o desânimo que se abateram sobre ele. Assim, ele reconhece que precisa de Alguém superior para ajudá-lo e que quem está no governo é o Altíssimo que age sempre com Justiça. [9]

Conclusão

A contradição calvinista começa quando tentam usar esse texto para dizer que tudo que acontece é determinação de Deus. A Bíblia é clara quando diz que Deus não tem prazer na morte dos ímpios (Ezequiel 18.22), que os fariseus frustraram o plano de Deus para eles (Lucas 7.30), que Deus não queria que os filhos de Israel queimassem seus filhos (Jeremias 32.35) e etc. É claro que  Deus é soberano e poderoso para cumprir todos os seus propósitos, mas isso não significa que tudo que acontece é da vontade de Deus. Além disso, também é propósito de Deus permitir a liberdade humana para que (como foi citado nas palavras de Geisler e Lewis) exista amor verdadeiro. Deus além de salvar também quer aperfeiçoar Seus filhos para que tenhamos um relacionamento mais profundo com Ele! Deus usa todas as circunstancias (sem que tenha que determinar) em prol desse proposito. Falar que Deus determinou todos os atos do ser humano a partir de Jó 42.2 é não levar em conta o contexto do próprio livro, pois Deus repreende os amigos de Jó por terem falado o que não era reto diante d’Ele (Jó 42.7) e, portanto, seria uma incoerência ou até mesmo uma falsidade da parte de Deus repreender os amigos de Jó por falarem coisas falsas d’Ele, se na verdade eles só falaram porque o próprio Deus colocou as palavras na boca deles. Assim, o determinismo é refutado pelo contexto do livro, pela logica e por toda a Escritura.

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[1] Staneey Ellisen, Conheça melhor o Antigo Testamento pagina 182

[2] Quem criou Deus? Pagina 28, Editora Reflexão, edição de 2014

[3] IBIRD,29

[4] IBIRD, pagina 26

[5] IBIRD, Pagina 26

[6] Jamieson, Robert; Fausset, A. R .; Brown, David comentário exegético e explicação da Bíblia – Volume 1: O Antigo Testamento. El Paso, TX: Batista Publishing House, 2003, 435 S.

[7] Wiersbe, Warren W .: Seja Paciente. Wheaton, Ill.: Victor Books, 1996, c1991 (Um Antigo Testamento Estudo), S. Jó 42: 1

[8] Henry, Matthew: Comentário Bíblico de Matthew Henry Tomo. Miami: Unilit Editorial, 2003, S. 380

[9] Contribuição: Wesley  Paladino.

Texto: Pr. Anderson de Paula
Revisão: Àlefe Joia
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