Islamismo fundamentalista

COMO A TEOLOGIA ISLÂMICA INFLUENCIA OS GRUPOS RADICAIS MUÇULMANOS

É comum, no Ocidente, o pensamento de que somente o cristianismo produziu teologia, enquanto o islamismo esteve desprovido de tais reflexões em seus quase 1400 anos de história. Acrescenta-se a esse equívoco o fato de os cristãos, raramente, associarem o pensamento teológico islâmico à expansão de seus movimentos revolucionários.

Não é nem um pouco razoável desconsiderar o postulado de que influências formadoras de opi­niões tenham delineado o comportamento fundamentalista islâmico que tem sido noticiado nos meios de comunicação do Ocidente, os quais, aliás, façamos justiça, muitas vezes, distorcem os fatos.

Na verdade, o islamismo sempre produziu teologia, fruto de reflexões apoiadas em seu livro sagrado, o Alcorão, e na tradição islâmica posterior. Entre os vários expoentes representantes dessa teologia, apropriamo-nos (não segundo a nossa conveniência, mas segundo o reconhecimento que possuem junto ao mundo muçulmano) de dois pensadores religiosos que revolucionaram a teologia islâmica. São eles: Hassan al-Banna e Sayyd Qutb, ambos tendo produzido suas obras no século 20.

Almejamos, nesse caminho, proporcionar aos leitores de Defesa da Fé ferramentas para interpretação e compreensão do comportamento hostil que se vê entre grupos fundamentalistas islâmicos. E faremos isso a partir da análise das ideias e propostas desses intelectuais religiosos muçulmanos.

Antes, porém, e com a finalidade de desmistificarmos o mito de que cultura árabe e islamismo são sinónimos (isto é, são a mesma coisa), gostaríamos de convidar o leitor para que ponderasse conosco sobre um pouco de nossa dívida intelectual e histórica para com o mundo árabe.

Cultura e teologia

O Oriente Médio é uma das regiões que observou as civilizações nascerem. Povos diferentes ocuparam seus desertos e vales férteis. Levas de invasores e na­ções dominadas se alternaram ao longo da história a tal ponto que se tornou difícil separar os laços culturais construídos nos últimos séculos.

A partir do século de nossa Era, os árabes ocuparam os espaços da cultura cristã helénica (grega) nas regiões da Sí­ria, Palestina, Mesopotâmia, Pérsia, Egi-to e norte da Africa. Absorveram essas culturas e o helenismo (herança cultural grega) e desenvolveram áreas da ciência e da filosofia.

Foram grandes as contribuições dos árabes na matemática, na química, na me­dicina, na agronomia e na filosofia para a cultura ocidental. Para mencionar somen­te um exemplo dessa assertiva, recorre­mos às traduções do grego para o siríaco e para o árabe das obras dos filósofos Pla­tão e Aristóteles.

Em 711, sob a liderança de Tariq ibn-Ziyad1, os árabes invadiram a Península Ibérica2, derrotando os visigodos3. Criaram o Emirado de Córdoba, em 756, que, poste­riormente, passou a ser Califado4, tornando-se independente de Bagdá, dando origem ao reino árabe da Espanha, El Andaluz.

É importante destacar que, naquela época (século 9), Bagdá (na Mesopotâ­mia), capital do império árabe, era a ci­dade mais desenvolvida do mundo, sem rivais no Ocidente. E Córdoba, por sua vez, a cidade mais importante da Europa.

Na Espanha, os árabes desenvolve­ram uma cultura helenística de leitura árabe, cuja tendência criou as bases teó­ricas e metodológicas para o desenvolvi­mento da escolástica5 do século 13.

Para vislumbrar a riqueza daquela ci­vilização, é válido citar três vultos do pen­samento medieval que exemplificam esse florescimento do pensamento árabe:

————-

————-

————-

Dentro desse contexto, era de se es­perar que os árabes cristãos desenvolves­sem uma exegese e uma teologia bíblica peculiar e profunda, principalmente do Novo Testamento.

Ibn Al-Salibi, Ibn-Tayyb e Ibn Al-Assãl foram eruditos cristãos de primeira gran­deza. Al-Salibi redigiu uma belíssima obra de exegese, O livro das pérolas inusitadas de interpretação do Novo Testamento, em 1050. Tayyb, admirável teólogo árabe cristão, escreveu um extenso comentário dos quatro evangelhos, publicado no Cai­ro (Egito), em 1908.

Evocamos, aqui, todos esses nomes para ambientar o leitor, a fim de que não percamos de vista que o mundo árabe também foi muito fértil em seu legado intelectual, não obstante isso ser, muitas vezes, marginalizado.

A partir disso, passaremos a uma expla­nação mais direta e objetiva do nosso tema, conciliando-o com as declarações das auto­ridades muçulmanas já apresentadas.

Os dois significados de jihad

Geralmente, quando um leigo pensa em fundamentalismo islâmico, quase que imediatamente lhe vem à mente a ação terrorista e as guerras. Em certo sentido, especialmente em nossos dias, isso é to­talmente justificável e, para entendermos um pouco melhor a questão, recorrere­mos à génese doutrinária do comporta­mento islâmico fundamentalista.

A “guerra santa”, como é qualificada pelos muçulmanos, tem seu conceito derivado da palavra jihad, que significa “esfor­ço”. No islamismo clássico, o verdadeiro esforço é aquele voltado à causa religiosa, e uma das modalidades desse esforço pode, de fato, ser a guerra, pois, como consta no Alcorão, o termo autoriza duas leituras, uma associada à guerra interior e espiritual e outra à exterior e militar.

Para o Islã tradicional, a perra exterior, bélica, é secundária, exatamente o contrário do que pensa o Islã fundamentalista. A guer­ra interior é mais importante. E a verda­deira guerra que deve ser enfrentada pelo fiel muçulmano.

Há uma história de Maomé que nos demonstra um pouco dessa perspectiva islâmica em relação à guerra. Conta-se que Maomé voltou de uma batalha e chegou a Meca. Ali, aclamado pelo povo, por sua vitória, alguém o congratulou: “Voltaste vencedor do Jihad”. Ao que ele respondeu: “Voltei do pequeno Jihad con­tra os inimigos do Islã. Mas o essencial é o jihad al-akbar, aquele que todo homem deve travar dentro de sua própria alma, a batalha contra as paixões”.

A morte no islamismo clássico só é justificada quando o seu objetivo é a defe­sa da própria vida. Ao muçulmano, segun­do este ditame, não é autorizado iniciar o ataque fora dessas premissas, pois, como já vimos, do ponto de vista místico, as guerras são lutas interiores.

Essa compreensão tem como ponto de partida o entendimento islâmico sobre o problema do mal, que é visto não como “ser” ou realidade objetiva, mas como ques­tão metafísica. O mal, para o islamismo, é a sombra do bem. Não possui existência au­tónoma. Para o muçulmano, o mal é como a sombra que incide sobre uma pessoa ou objeto quando recebe a luz.

Não obstante estes contrapontos en­cerrados nos dois conceitos de jihad, o alvo dos noticiários, inegavelmente, são sempre as lutas exteriores, até porque, apesar de ser representado por um grupo menor, este tipo de guerra é fomentada por muçulmanos radicais e militantes. Na verdade, a predisposição do homem para fazer uma entrega total de si próprio sem­pre foi peculiaridade da cultura árabe, o que foi potencializado com o advento do Islã. Agora, nos dois últimos séculos, o conceito de jihad deu origem a uma teologia que deixa a vida à mercê de convicções religiosas nem sempre consensuais.

Vejamos como esta nova roupagem vestida pelo jihad se desenvolveu por intermé­dio de formadores de opi­niões islâmicos.

Hassan al-Banna

No século 20, as ideias e conceitos se radicalizaram. Em 1928, com apenas 22 anos, professor graduado pela universidade de Al-Azhar, no Egito, Hassan al-Banna deu início à Ir­mandade Muçulmana. “O Islã é fé e devo­ção, é um país e é cidadania, é uma religião e um Estado, é espiritualidade e trabalho duro, é o Alcorão e a espada”, disse ele.

Em seu livro mais conhecido, Carta a um estudante muçulmano, datado de 1935, sobre como o muçulmano deveria se comportar no exterior, afirmou: ‘Todos os prazeres trazidos pela civilização contem­porânea não resultaram em nada, a não ser em dor. Uma dor que vai superar seus atrativos e remover a sua doçura. Portan­to, evite os aspectos mundanos deste povo [mundo ocidental]: não deixe que eles te­nham poder sobre você e o enganem”.

Mas o grande aporte de al-Banna foi a definição do conceito de jihad, que an­tes dele era visto como guerra interna do crente muçulmano em busca do caminho reto e perra defensiva em caso de ata­que dos infiéis. A partir deste pensador, o jihad passa a ser conceituado como uma obrigação para “converter” o mundo mu­çulmano àquilo que al Banna considerava ser o “islamismo puro”.

Em seu livro, A mensagem dos ensi­namentos, al-Banna diz: “Por sacrifício eu entendo dar-se totalmente: sua rique­za, seu tempo, sua energia e tudo o mais pela causa do Islã. Não há jihad sem sarifício. E não há sacrifício sem uma reompensa generosa por parte de Deus. Quem evita o sacrifício é pecador. Por iso, queridos irmãos, vocês entendem o asso tema: a morte na luta por Deus é a nossa grande esperança”.

E, no mesmo livro, al-Banna definiu cincos objetivos da Irmandade Muçulmana. A saber:

1 Deus
2 O Mensageiro é o nosso exemplo
3 O Alcorão é a nossa constituição
4 O Jihad é o nosso método
5 O martírio é o noso desejo

Aos 43 anos, al-Banna foi assassinado, mas seus ensinamentos só têm crescido entre a jovem intelectualidade sunita8. No seu livro, A indústria da morte (perceba o leitor como já no título o livro é sintomá­tico), há uma frase que se tornou defini­tiva para a vida do crente revolucionário sunita: “Para umajiação que aperfeiçoa a indústria da morte e sabe morrer de for­ma nobre, Deus dá uma vida de orgulho neste mundo e terna graça no mundo que está por vir”.

Hoje, a Irmandade Muçulmana está presente no Egito, Síria, Arábia Saudita, Jordânia e Líbano. E, na Arábia Saudita, possui até uma universidade em Me­dina. O lema de al-Banna, cunhado em 1928, conti­nua seduzindo corações e mentes muçulmanas: “Pre-parem-se para o jihad e se­jam amantes da morte”.

Soyyd Qutb

Na década de 50, ou­tro teórico vai marcar e aprofundar os conceitos definidos por al-Banna. Estamos falando de So-yyd Qtub, que publicou mais de trinta volumes, os quais ficaram conhecidos como A sombra do Alcorão.

Para Sayyd Otub, “a rebelião contra Deus transferiu ao homem o maior atri­buto de Deus, a soberania sobre todas as coisas. E fez alguns homens senhores de outros. Somente num sistema islâmico de vida, todos os homens se tornam livres da servidão de alguns homens a outros homens e se devotam à submissão do Deus único, recebendo dele orientação e se curvando diante dele”.

Em seu livro, Sinalizações da estrada, Qtub afirma: “Essa religião [islamismo] é realmente uma declaração universal para libertar o homem da servidão a ou­tros homens e da servidão aos seus pró­prios desejos. E uma declaração de que a soberania pertence apenas a Deus e que Ele é o Senhor dos mundos. E um desafio a todos os tipos e formas de sistemas ba­seados na soberania do homem […] Em resumo, é preciso proclamar a autoridade e a soberania de Deus para eliminar toda forma humana de governo e anunciar o mando daquele que sustenta o Universo sobre a Terra inteira”.

E, para que isso se torne uma realida­de, adverte: “O estabelecimento do domí­nio de Deus na terra não pode ser atingi­do apenas com a pregação. Aqueles que usurpam o poder de Deus sobre a terra não desistirão de seu poder meramente por meio da pregação. Se assim fosse, a tarefa de estabelecer a religião de Deus no mundo teria sido fácil para os profetas de Deus. E isso é contrário a toda evidên­cia da história dos profetas e da história das lutas da verdadeira religião em todas as gerações”.

Assim, Qtub sugere que o Islã crie um Estado muçulmano exemplar que sirva de modelo para o mundo islâmico e se lance no jihad global, a fim de eliminar toda e qualquer forma de governo que te­nha por base a soberania humana.

Em 1996, Qtub foi condenado à mor­te por enforcamento pelo governo de Nasser, no Egito. Hoje, ele é considerado, pelos revolucionários sunitas, um mártir da causa islâmica.

Consequências ideológicas

A solução proposta por Hassan al-Banna e Sayyd Qtub é o retorno aos fun­damentos criados na antiga Arábia por Maomé e seus primeiros sucessores. Essa teologia de negação da vida deu base re­ligiosa aos movimentos que, a partir dos anos 70, transformaram-se na principal força de contestação no Oriente Médio. E, diante do desgaste dos nacionalistas árabes, como o nasserismo9, no Egito, A Frente da Libertação Nacional, na Argé­lia, e o kemalismo,10 na Turquia, todos de tradição sunita, a teologia de negação da vida grassou pelo mundo islâmico.

A introdução da leitura teológica no ário islâmico (que aconteceu em 1979, 1 a revolução de Khomeini,11 no Irã, se opunha, como os demais teóricos ios, tanto ao capitalismo como ao unismo) aumentou a radicalização aversão ao mundo ocidental. Assim, a partir daquele ano, nasceram os movimentos xiitas, que se construíram sobre mplo dos aiatolás iranianos.

Não podemos nos esquecer de que, Sayyd Qtub, a principal ação teoló-lo Islã não é mais a “islamização” 10 início, alcançaria as bases da po­io, como propunha al-Banna, mas iinação dos regimes dos infiéis, eio do jihad global. Assim, foi com me a teologia de negação da vida isforma numa teologia de morte lizmente, muitas vezes, de assassínio, condena qualquer muçulmano que não se torne um combatente contra os infiéis.

Nos Estados islâmicos, acontece, então uma polarização e uma divisão entre os agrupamentos religiosos que assumem essa teologia de negação da vida e os movimenentos que ainda acreditam num nacionalismo islâmico.

Foi, porém, com a guerra no Afeganistão, que produziu um salto qualitativo na ação político-militar desses agru­pamentos religiosos. Osama Bin Laden, discípulo declarado de Qtub, dá início à unificação de movimentos e grupos reli­giosos que, até então, estavam separados entre si. A participação dos mulas e dos voluntários do jihad na guerra contra os soviéticos no Afeganistão e a vitória que conquistaram deu consistência à teolo­gia de negação da vida e deslanchou a luta pela formação da Umma, ou Nação Islâmica, em oposição à teoria das revo­luções nacionais.

Al Qaed (o Movimento Islâmico do Usbequistão, também conhecido como MIL), de Juma Namangani, e Hizb ut-Tahrir al-Islami (Partido da Libertação Islâmica) são exemplos trágicos dessa teologia islâmica levada à prática.

Assim, o jihad na Palestina, na Che-chênia, na Caxemira e nas Filipinas, tan­to quanto os atentados contra as torres de Nova York e nos meios de transporte na Espanha e, mais recentemente, na In­glaterra, são as diferentes faces de uma mesma teologia de negação da vida que prega a formação de uma única nação is­lâmica que declare guerra global ao Oci­dente infiel (são também, é claro, uma atitude de retaliação contra os árbitros norte-americanos).

Ressalvas e conclusões

Não podemos concluir esta matéria sem antes enfatizar que a maioria dos muçul­manos não rege sua vida por meio de uma teologia que a negue. Não visamos, aqui, solucionar ou, simplesmente, incriminar o fundamentalismo muçulmano. Se fosse essa a nossa intenção, este artigo teria sido reducionista, pois elementos variados e im­portantes conectados à tensão causada pelo terrorismo não foram sequer mencionados.

Em verdade, o nosso objetivo, tão-so-mente, é conferir ao leitor de Defesa da Fé um panorama que lhe permitisse con­siderar que os movimentos revolucioná­rios islâmicos não surgiram num vácuo intelectual, e também propor um posicio­namento cristão diante do assunto.

No cristianismo, a aceitação de Cristo à morte de cruz nos legou, como seus discípulos, a teologia da vida, tan­to neste mundo quanto no mundo vin­douro. O apóstolo Paulo declara que, em Cristo, Deus reconciliou consigo o Universo, estabelecendo a paz pelo san­gue de seu Filho, Jesus, derramado na cruz (2Co 5.18).

À cristologia paulina transpõe o mo­mento de morte da paixão e da cruz de Cristo. Se Jesus, como explicou Lutero, veio até nós e sofreu uma morte real “en­volto em nossos pecados”, se Ele morreu sentindo em si mesmo e em sua consci­ência a agonia da separação, se o Pai se fez oculto no momento de sua morte, é fundamental não esquecer que esse Pai, que tem o poder da própria vida, é quem resgata Jesus da morte. E essa cruz sem rosas traz algo novo: vence a morte, res­suscita! (ICo 15.55).

Cristo foi levado à morte para que a morte fosse banida de nossas vidas. Se as teologias de al-Banna e Sayyd Qtub definem como pecadora e merecedo­ra de morte toda a herança iluminista e reformada que caracteriza o mundo Ocidental e o protestantismo, dizemos, contrariando tais teologias, que o mun­do não necessita de morte, mas de vida. E é justamente essa a nossa tarefa: levar vida, levar Cristo, porque Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. E foi o próprio Cristo que nos confiou tão honroso ministério!

————-

Notas

————-

————-

————-

————-

————-

————-

————-

————-

————-

————-

——————

Bibliografia recomendada:

COLLEY, J.K., Una guerra ímpia. Milano, 2000. CHIELSA, G., Vauro, Afghanistan anno zero. Milano 2001. FULLER, E.G.; LESSER, 1.0, Ceopolitica deUlsiam. Roma, 1996. H0URANI, A., Vlslam nelpensiero europeo. Roma, 1991. KEPEL, G., Jihad ascesa e declino delllslamismo. Roma, 2001. MERVIN, S., Ulslam fondamenti e dottrine. Milano, 2001. RASHID, A., Jihad. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

SCHULZE, R., // mondo islâmico nel XX sez colo: política e società civile. Milano, 1998.

—————

Fonte: Jorge Pinheiro (Defesa da fé – Revista de Apologética do Insitituto Cristão de Pesquisas – Ano 10 – nº 78).

Sair da versão mobile