Um fato importante que deve ser realçado é que, embora não cremos em uma eleição individual incondicional à salvação porque a Bíblia não ensina isso, nós cremos que existem certos indivíduos que, em especial, Deus chama ao ministério. É uma chamada individual ministerial, e não uma predestinação coletiva à salvação, como ocorre na eleição corporativa da Igreja.
Para entendermos isso, é bom compreendermos o contraste. Sempre quando a Bíblia fala da eleição de um grupo de pessoas (eleição corporativa), ela diz que é para a salvação. Ela nunca para na questão ministerial. Por exemplo, em 2ª Tessalonicenses 2:13 Paulo diz:
“Mas nós, devemos sempre dar graças a Deus por vocês, irmãos amados pelo Senhor, porque desde o princípio Deus os escolheu para serem salvos mediante a obra santificadora do Espírito e a fé na verdade” (2ª Tessalonicenses 2:13)
Portanto, a eleição corporativa – notemos novamente o termo no plural – é para a salvação. Mas e o chamado individual de alguns indivíduos em específico? Seria para a salvação também? Se fosse, isso significaria que existem pelo menos alguns “predestinados” entre nós, no sentido calvinista do termo. Mas não é isso o que a Bíblia ensina. Sobre Jeremias, por exemplo, Deus diz:
“Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi; antes de você nascer, eu o separei e o designei profeta às nações” (Jeremias 1:5)
Como vemos, Deus não diz que escolheu Jeremias “para a salvação” (como quando diz em relação à Igreja como um todo), mas sim para ser profeta. Trata-se de um chamado ministerial. A mesma coisa ocorreu com Moisés. Deus não o escolheu “para ser salvo”, mas para ser um libertador do povo no Egito e líder deles:
“Ele foi enviado pelo próprio Deus para ser líder e libertador deles, por meio do anjo que lhe tinha aparecido na sarça” (Atos 7:35)
Com Isaías também. Ele diz que “antes de eu nascer o Senhor me chamou; desde o meu nascimento ele fez menção de meu nome” (Is.49:1). E ele explica do que se trata esse chamado nos versos seguintes, explicando sua designação como profeta, uma “luz para os gentios, para levar a salvação até aos confins da terra” (Is.49:6). O mesmo também podemos dizer sobre Paulo. Jesus testemunha a respeito dele:
“Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel” (Atos 9:15)
Cristo não diz que Paulo era um vaso escolhido “para a salvação”, mas “para levar meu nome diante dos gentios”, ou, mais precisamente, como apóstolo, que significa enviado. O próprio Paulo testemunhou a este respeito, dizendo:
“Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça, quando lhe agradou revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios” (Gálatas 1:15-16)
Ao invés de ele dizer que Deus o separou desde o ventre materno para a salvação, ele afirma que o propósito deste chamado era anunciar Cristo aos gentios. Mais uma vez, vemos que o chamado particular de certos indivíduos em nada tem a ver com uma salvação particular, mas com um chamado ao ministério. Que este chamado ministerial não implica em salvação fica nítido ao vermos que Judas era um escolhido e mesmo assim não foi salvo:
“Então Jesus respondeu: ‘Não fui eu que os escolhi, os Doze? Todavia, um de vocês é um diabo!’” (João 6:70)
Jesus não diz que ele “escolheu onze” e que o outro era um diabo, e sim que escolheu os doze e um deles era um diabo. Em outras palavras, embora ele soubesse que Judas iria traí-lo e que nunca foi salvo verdadeiramente, ele não nega que Judas era um eleito, um escolhido, assim como os outros discípulos. Por isso, quando a Bíblia diz que Judas “se desviou”, ela não diz que ele se desviou da salvação (a qual ele nunca teve), mas do apostolado, do ministério:
“Para que tome parte neste ministério e apostolado, de que Judas se desviou, para ir para o seu próprio lugar” (Atos 1:25)
Por tudo isso, a conclusão que podemos chegar é que existem certas pessoas que Deus designa de antemão para algum chamado ministerial em especial, mas a salvação depende da perseverança e da não-resistência de cada um, pois ninguém é predestinado individualmente à salvação. Mesmo no caso das pessoas que foram chamadas particularmente ao ministério, isso não significa que elas foram mais “privilegiadas” do que as outras em função disso, porque a Bíblia diz que tais pessoas serão julgadas com maior rigor (Tg.3:1).
Este chamado ministerial é compreendido tanto por calvinistas como por arminianos. Começando por Calvino, que admite que “o caso de Judas não milita contra a certeza da eleição, porque ele foi eleito para o apostolado, porém não para a salvação”[1]. Ele cita o caso de Judas na defesa do chamado ministerial que não inclui uma predestinação à salvação:
“Entretanto, o fato de Cristo, em outro lugar, incluir Judas entre os eleitos, quando era um diabo [Jo 6.70], isto se refere apenas ao ofício apostólico, o qual, ainda que seja um nítido espelho do favor de Deus, como em sua pessoa tantas vezes Paulo reconhece, contudo não contém em si a esperança da salvação eterna”[2]
Como vemos, ele reconhecia que existem indivíduos que são eleitos para o ministério e não para a salvação, que é o que estamos dizendo aqui. Existe possibilidade de apostasia para eles, e até mesmo de nunca serem salvos. Era assim que cria Calvino, embora este também pensasse que existisse uma eleição individual à salvação paralela a uma outra eleição individual ao ministério. Para sustentar ambas as coisas à luz do caso de Judas, ele cita outra passagem que supostamente fala de outro tipo de eleição, sem incluir Judas:
“Esta é a mesma causa de que Cristo faz a exceção há pouco referida, onde diz que ‘ninguém pereceu, exceto o filho da perdição’ [Jo 17.12]. E de fato é uma expressão imprópria, todavia, muito longe de obscura, pois ele não era contado entre as ovelhas de Cristo porque o era realmente, mas porque ocupava seu lugar. Que de fato o Senhor declara em outro lugar que ele foi escolhido para si, com os apóstolos, isto se refere somente ao ministério. ‘Não vos escolhi’, diz ele, ‘em número de doze? Contudo, um dentre vós é um diabo’ [Jo 6.70]. Isto é, o havia escolhido para o cargo de apóstolo. Quando, porém, fala da eleição para a salvação, o mantém longe do número dos eleitos: ‘Não falo a respeito de todos; eu sei a quem escolhi’ [Jo 13.18]”[3]
Essa, porém, é uma interpretação defeituosa do texto de João 13:18, onde Cristo diz “conheço a quem escolhi” (Jo.13:18). A palavra grega eido, aqui utilizada, significa “adquirir conhecimento de, entender, perceber”[4]. Jesus estava dizendo que conhecia todos os escolhidos dele (incluindo Judas), de modo que ele sabia que o que estava dizendo sobre ser servo (v.16), lavar os pés uns dos outros (v.14) e praticar o evangelho (v.17) não se aplicavam a ele, embora ele estivesse entre os escolhidos.
É basicamente o mesmo que ele disse em João 6:70, onde o próprio Calvino reconhece que Judas estava incluso. Aqui não se trata de “outra eleição”, e sim da mesma eleição ao ministério, em que Cristo diz que conhecia a todos e, por esta mesma razão, sabia que Judas (um dos escolhidos) não estava apto a praticar o evangelho, pois Jesus sabia que ele seria o traidor, e por isso não falava a respeito de todos [os escolhidos] quando o assunto era as obras que procedem da fé, as quais Judas não tinha.
John Wesley disse: “Com relação à eleição, eu creio que Deus, antes da fundação do mundo, elegeu incondicionalmente certas pessoas para certas obras, como Paulo para pregar o evangelho, e que Ele incondicionalmente elegeu algumas nações para receber privilégios peculiares, a nação judaica em particular”[5]
Assim, creio estar claro que, enquanto a predestinação corporativa (da Igreja) se refere à salvação, o chamado individual se refere ao ministério, e é uma coisa completamente diferente daquela. São duas coisas que não podem ser confundidas. Um cristão nos dias de hoje pode se considerar “individualmente predestinado” ao ministério, mas, assim como Judas, se desviar deste ministério e nunca ter sido salvo.
Corporativamente falando, todos nós somos “predestinados” enquanto estamos em Cristo, porque a Igreja é predestinada à glória.
Extraído do livro Calvinismo X Arminianismo cedido pela comunidade de arminianos do Facebook
[1] Institutas, 3.24.9.
[2] Institutas, 3.22.7.
[3] Institutas, 3.24.9.
[4] De acordo com a Concordância de Strong, 1492.
[5] WESLEY, John. The Works of The Reverend John Wesley, volume VII, New York, 1835, p. 480-481.