História da Igreja e Calvinismo

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História da Igreja e Calvinismo

Dizer que qualquer semelhança de Agostinianismo ou Calvinismo se aparta inteiramente dos ensinos dos primeiros pais da Igreja é um entendimento grosseiro, como se tornará evidente. João Calvino não foi o inventor da doutrina da Eleição Incondicional por decreto — o núcleo distintivo do Calvinismo; o fundador dessa nova doutrina foi Agostinho (c. 354-430).

De acordo com Laurence M. Vance, a “influência de Agostinho sobre a história em geral e o Cristianismo em particular é incalculável – mas não surpreendente – uma vez que, como Calvino, ele foi extensivamente um prolífico escritor…..Quando um calvinista moderno empreende substanciar o Calvinismo por uma apelo aos homens, o primeiro nome mencionado é sempre Agostinho.[1] Santo Agostinho escreveu, no entanto, entre o final do quarto e inicio do quinto século d.C.. O que os Calvinistas não conseguem substanciar é qualquer forma de Agostinianismo e Calvinismo na história da igreja antes de Agostinho no século quinto. Assim, Agostinho não manteve a tradição cristã primitiva em muitas doutrinas, especialmente, sua nova teoria da eleição incondicional (predestinação particular para a salvação de alguns).

Antes de examinarmos algumas crenças peculiares e heterodoxas que Santo Agostinho manteve, vamos primeiro descobrir qual é o consenso com respeito à eleição e livre-arbítrio entre os pais da Igreja primitiva. Todas as citações são retiradas de A Dicitionary of Early Christian Beliefs, editado por David W. Bercot (publicado por Hendrickson, 1998):

  • Justino Mártir (160 d.C): A fim de que alguns não presumam, a partir do que temos dito, que tudo acontece por uma necessidade fatal, pois é anunciado como conhecido de antemão, isso nós também explicamos. Nós aprendemos dos profetas e sustentamos ser a verdade, que as punições, castigos e boas recompensas são concedidas de acordo com o mérito das ações de cada homem. Agora, se isso não é desta foma, mas todas as coisas acontecem por destino, então, nada está em nosso próprio poder. Porque, se está predeterminado que este homem será bom e esse outro homem será mau, nem é o primeiro digno de mérito nem o último culpado. E novamente, a menos que a raça humana tenha o poder de evitar o mal e escolher o bem por livre escolha, eles não são responsáveis por suas ações (p. 285).
  • Melito (170 d.C): Portanto, não há nada que impeça você de mudar sua maneira corrupta de viver, porque você é um homem livre (p. 286).
  • Theófilo (180 d.C): Se, por outro lado, ele se voltaria para as coisas da morte, desobedecendo a Deus, ele próprio seria a causa da morte para si mesmo. Porque Deus fez o homem livre e com poder sobre si mesmo (p. 286).
  • Tertuliano (210 d.C): Como a fortuna, assim é a liberdade da vontade do homem (p. 288).

Observe a ausência de Agostinianismo determinista e, deste modo, de Calvinismo em todas essas declarações. O que é seguro admitir é que os primeiros pais seriam terrivelmente inconsistentes em reivindicar o Agostinianismo determinista (e, portanto o Calvinismo) como sua teologia ao mesmo tempo em que faziam tais declarações (as quais todos os primeiros pais também apoiavam).

Mantendo uma visão presciente da eleição (ou predestinação), o ensino cristão primitivo sustenta:

  • Irineu: Deus conhece o número daqueles que não crerão (visto que Ele conhece todas as coisas de antemão). Ele os entregou à incredulidade e virou seu rosto de homens como esses (p. 284).
  • Clemente de Alexandria (195 d.C): Não somente o crente, mas até mesmo o descrente, é julgado mais retamente. Pois, desde que Deus soube em virtude de sua presciência que essa pessoa não acreditaria, Ele, entretanto, a fim de que ele possa receber a sua própria perfeição, deu-lhe a filosofia antes da fé (p. 284, ênfase adicionada).
  • Tertuliano (207 d.C): Não é a característica de um Deus bom condenar de antemão as pessoas que ainda não merecem a condenação (p. 285).
  • Hipólito (225 d.C): A palavra promulgou os mandamentos divinos declarando-os. Desse modo, ele liberou homem da desobediência. Chamou o homem à liberdade por meio de uma escolha que envolve a espontaneidade – não trazendo-o em servidão por força de necessidade (p. 288).
  • Orígenes (225 d.C): Um alma sempre tem a posse do Livre-Arbítrio – tanto quando ela está no corpo e quando ela está fora dele (p. 291).

Para os primeiros pais da Igreja, tais como Clemente de Roma, Hermas, Irineu, Clemente de Alexandria e Metódio, os eleitos eram simplesmente o povo de Deus (pp. 293-294).

Dizer que uma pessoa é eleita é admitir nada mais do que identificação. Assim, os eleitos são os Cristãos; e assim, ninguém é eleito incondicionalmente de antemão, por um mero decreto, visto que ninguém é um cristão antes da fé em Jesus Cristo.

Os primeiros pais da Igreja também foram igualmente sinergistas:

  • Inácio (105 d.C): Quando você está desejoso de fazer o bem, Deus também está pronto a ajudá-lo (p. 294).
  • Hermas (150 d.C): Para aqueles cujo coração Ele viu que se tornariam puros e obedientes a Ele, deu o poder de se arrependerem de todo o coração. Mas para aqueles cuja falsidade e maldade Ele percebeu, e vendo que tinham a intenção de se arrepender hipocritamente, Ele não concedeu o arrependimento (p. 294).
  • Clemente de Alexandria (195 d.C): O homem, por si mesmo, trabalhando e labutando em seu livre desejo, não consegue nada. Mas se ele simplesmente se mostrar muito desejoso e sério sobre isto, ele o atinge mediante a adição do poder de Deus. Porque Deus conspira com almas diligentes….Mas se eles abandonam seu entusiasmo, o Espírito que é dado por Deus também é restringido. Pois, salvar o relutante é a parte de um exercício de imposição. Mas salvar o disposto é uma manifestação de graça (p. 295).

As evidências apontam que os pais da Igreja primitiva favoreciam uma visão Arminiana do Livre-Arbítrio libertário, eleição e predestinação, sem mencionar a interação de Deus com suas criaturas (uma rejeição do determinismo). O Agostinianismo e o Calvinismo, portanto, representam um desvio aos ensinos dos cristãos primitivos, introduzindo “novas” ou “estranhas” doutrinas à Igreja.

Ademais, se o Calvinismo é tão “dolorosamente óbvio” a partir de qualquer leitura superficial do Novo Testamento, como é admitido por alguns, então porque todos os primeiros pais da Igreja, antes de Santo Agostinho no quinto século, não seguem as tradições conforme apresentadas nas Escrituras? Devemos pensar que todos os pais da Igreja abandonaram a teologia ortodoxa do primeiro século – as tradições (teológicas e litúrgicas) transmitidas a eles por São Paulo, São Pedro e São João?

O Imperador Constantino (237-337 d.C), de acordo com Laurence M. Vance,

tornou-se o único governante do braço ocidental do Império Romano, após derrotar Maxêncio (c. 283-312) na famosa batalha da Ponte Mílvian, perto de Roma, em 312. Foi aqui que Constantino afirmou ter visto uma visão de uma cruz brilhante que o levou a vitória. . . . .Depois de supostamente atribuir a sua vitória ao “Deus Cristão”, Constantino se uniu a Licínio (c. 265-325), um dos imperadores do Oriente, na emissão em 313, em Milão, de um decreto de tolerância em relação ao Cristianismo.[2]

Por esse tempo, o casamento da Igreja com o estado iria revelar-se difícil para o evangelho. Assim, em muitos casos, os remidos sentaram-se ao lado dos não remidos em cada serviço da Igreja. Teodósio, sucessor de Constantino, por volta de 381, proclamou a todas as pessoas que elas “firmemente aderissem à religião que foi ensinada por São Pedro aos romanos, que tem sido fielmente preservada pela tradição”.[3]

Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, 354-430) nasceu no Norte da África e estudou em Cartago. Antes de sua conversão, ele era lascivo, um jovem homem sexualmente promiscuo, consumido pelo orgulho e arrogância. Ele se encantou pela filosofia de Cícero e juntou-se com a religião gnóstica maniqueísta. Essas coisas teriam um profundo impacto sobre a sua teologia em anos posteriores.

Ao ouvir a voz de uma criança, dizendo: “Toma e lê”, Agostinho virou-se para o primeiro texto sobre o qual os olhos podiam fixar. Esse texto foi Romanos 13:14, que o convenceu de seu estilo de vida sexualmente perverso. Seu arrependimento foi seguido pelo batismo na Páscoa seguinte. Ele então retornou a Roma por um ano. Após a morte de sua mãe, ele retornou a sua cidade natal e entrou para o monastério para estudar teologia.

Além de suas Confissões e a Cidade de Deus, ele é mais famoso por três debates. Ele debateu fervorosamente a heresia maniqueísta, bem como os Doantistas e, por último, Pelágio. Os debates com Pelágio seriam seu mais famoso conflito teológico. No entanto, Santo Agostinho não estava apenas combatendo contra Pelágio, mas também contra a maioria dos pais da Igreja primitiva, pelo menos sobre o assunto da eleição incondicional e livre-arbítrio. Novamente Vance escreve:

Esta é seu conflito teológico mais significante, e um que se aplica diretamente na questão do Calvinismo, pois como os calvinistas David Steele e Curtis Thomas sustentam: “As doutrinas básicas da posição calvinista foram vigorosamente defendidas por Agostinho contra Pelágio durante o quinto século.” E por causa da moderna comparação dos sistemas opostos do Agostinianismo e o Pelagianismo com o Calvinismo e o Arminianismo que Pelágio e seu sistema demandam mais estudo.[4]

Muitos dos Protestantes de hoje rejeitam muitos dos ensinos de Agostinho, inclusive a crença em alguns (e em alguns casos todos) dos seguintes:

  • inspiração dos livros Apócrifos;
  • a hermenêutica alegórica subjetiva;
  • teologia da substituição;
  • regeneração batismal (e até mesmo necessária para a salvação das crianças);
  • a falsa ideia que o martírio poderia substituir o batismo;
  • cessacionismo;
  • amilenismo;
  • a sucessão apostólica dos Bispos a partir de São Pedro;
  • a impecabilidade de Maria;
  • a intercessão dos santos mortos;
  • a adoração das relíquias;
  • purgatório;
  • a ideia de que o grande pecado atrás da miséria humana é a relação sexual e é considerada pecaminosa a menos que usada para a procriação;
  • defesa da poligamia se for para a propagação;
  • a noção de que a graça de Deus é distribuída por meio dos sacramentos;
  • e, é claro, que Deus tem eleito incondicionalmente salvar alguns e não outros por um simples decreto e para a sua glória.[5]

Quando se considera a quantidade de falsos (alguns diriam mesmo heréticos) pontos de vista que ele possui, alguém pergunta como ele se tornou uma respeitada “autoridade” na igreja. Em alguns círculos, citar Agostinho é o mesmo que citar uma autoridade, tal como as Escrituras.

Como já notado (e admitido por todos que estudaram história da Igreja), Agostinho foi o primeiro a introduzir a teoria que Deus elegeu incondicionalmente somente alguns para a salvação. Nessa admissão, ele não atribui eleição ao pré-conhecimento de Deus, como fizeram todos os seus antecessores, quatro séculos antes dele, mas por decisão prévia e deleite exclusivo de Deus.

Mais chocante, no entanto, é esta crença: “é, de fato, de se admirar, e de se admirar grandemente, que para alguns de seus próprios filhos – que Ele tem regenerado em Cristo – para quem Ele tem dado fé, esperança e amor, Deus não dá perseverança também”.[6] (ênfase adicionada) Nunca se ouve qualquer citação calvinista afirmando este entendimento de Agostinho (embora Calvino também tenha ecoado estes sentimentos em seus escritos).

Com o devido reconhecimento, esta declaração poderia ter preenchido os primeiros escritos de Agostinho, em oposição ao Agostinho final. Tal distinção é importante se quisermos ser justos, porque nem sempre ele abraçou suas crenças de forma consistente a totalidade de sua vida. Mas uma teoria que ele manteve consistentemente era a sua crença que Deus elegeu alguns incondicionalmente, passando sobre o resto – a maioria da humanidade.

Entretanto, compare essa nova doutrina com a visão de presciência de todos os pais da igreja primitiva, incluindo Justino Mártir, Taciano, Clemente de Roma, Melito, Teófilo, Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Bardesanes, Hipólito e Orígenes, que viveram entre o primeiro e o terceiro século antes de Agostinho. Claramente, a história da Igreja se levanta contra o entendimento Agostiniano (e por padrão o Calvinista) da eleição, livre-arbítrio, salvação e determinismo.

Por William Birch

Tradução: Walson Sales

Fonte: http://www.classicalarminian.com/2012/06/church-history-and-calvinism.html (acesso em 07/01/2013)

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[1]Laurence M. Vance, The Other Side of Calvinism (Pensacola: Vance Publications, 1999), 39.

[2] Ibid., 43-44.

[3] Ibid., 46.

[4] Ibid., 49-50.

[5] Ibid., 53-59.

[6] Ibid., 58.

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