‘Patrulha’ do Governo proíbe publicidade para crianças
Desde o dia 4 deste mês, o Brasil integra ao lado de Suécia, Noruega e da província de Quebec, no Canadá, uma restrita lista de países que proíbem a publicidade direcionada ao público infantil. Nesse caso, a comparação com nações ricas é mais motivo de preocupação do que de notoriedade. A imposição contra o livre exercício da propaganda é de autoria do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), subordinado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O órgão determinou nove critérios considerados abusivos na comunicação mercadológica dirigida à criança. O texto, aprovado em assembleia realizada em março e publicado no Diário Oficial da União, proíbe, por exemplo, a veiculação de campanhas com músicas cantadas por crianças, uso de bonecos e excesso de cores, desenho animado, entre outros detalhes que inviabilizam qualquer produção – deixando espaço apenas para campanhas institucionais de utilidade pública. O mercado reagiu estarrecido à resolução: nove entidades representativas assinaram um documento no qual declaram não reconhecer a legitimidade da resolução. “O Poder Legislativo, exercido pelo Congresso Nacional, é o único foro com legitimidade constitucional para legislar sobre publicidade comercial”, diz a nota.
A resolução se sobrepõe a um já estruturado arcabouço autorregulatório que estabelece os limites do exercício da publicidade no Brasil. O sistema de fiscalização capitaneado pelo Conar e auxiliado por artigos do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que versam sobre abusos da comunicação publicitária direcionada a menores de 12 anos, é considerado um dos mais sólidos do mundo. Além disso, em 2009, as principais empresas do ramo alimentício que atuam no país assinaram acordo nos mesmos moldes de um pacto internacional, o EU-Pledge, para restringir a publicidade de alimentos com alto teor de sódio, gordura e açúcar direcionada às crianças.
Diante disso, causou espanto uma determinação radical, elaborada por um conselho composto por entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Fundação Abrinq, Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag), entre outras. Faz parte também do quadro de eleitos para integrar o Conanda o Instituto Alana, a principal defensora do fim da publicidade infantil no país. A ONG é mantida pela pedagoga Ana Lúcia Villela, maior herdeira individual do Itau-Unibanco, que tem fortuna estimada em 1,1 bilhão de dólares, segundo a revista Forbes. A preocupação com a relação entre criança e consumo foi objeto de sua tese de mestrado e embasa, desde 2006, um projeto que visa minimizar o impacto do consumismo na infância.
A intenção dos defensores da proibição é que a resolução ajude a balizar a fiscalização em torno dos abusos, previstos, segundo eles, de forma pouco específica na legislação. “A criança por estar em uma fase peculiar de desenvolvimento psíquico e mental não tem condição de responder igual aos adultos às propagandas e por isso ficam expostas a subterfúgios que a convencem a consumir”, diz a diretora do Instituto Alana, Isabella Henriques.
O mercado publicitário aguarda as primeiras movimentações restritivas para se posicionar juridicamente diante do que classificam como resolução inconstitucional. De acordo com a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), o público infantil abocanha cerca de 0,5% do mercado publicitário e as inserções que falam diretamente com as crianças representam 0,1% do total de anúncios na TV aberta na faixa em que os menores de 12 anos são 50% da audiência.
“A preocupação não é apenas com o prejuízo financeiro que a resolução causa, mas principalmente com a censura que ela representa. O exercício da comunicação brasileira não pode ficar à mercê de pequenos grupos”, diz o vice-presidente da Associação Brasileira de Anunciantes, Rafael Teixeira.
Reclamações
É insignificante o volume de reclamações que chegam ao Conar a respeito de abusos cometidos em campanhas voltadas ao público infantil. Em 2013, do total de 340 denúncias recebidas pelo órgão, apenas 22 se referiam a exageros cometidos contra menores de 12 anos, das quais dez foram aceitas pelo conselho – que recomendou o cancelamento das peças publicitárias ou, em casos mais brandos, alterações pontuais.
O volume investido em publicidade direcionada a esse público também é ínfimo quando comparado ao mercado como um todo. O setor de brinquedos, um dos maiores anunciantes, é o 19º no ranking de segmentos da economia que mais anunciam. De acordo com levantamento do Ibope Media, de janeiro a dezembro do ano passado, os fabricantes e importadores de brinquedos investiram 910 milhões de reais em publicidade – 1% do aporte em mídia feito no país no ano que é de 112,6 bilhões de reais.
Mesmo na TV paga, que concentra a maior parte de investimentos em publicidade infantil, por concentrar a maior audiência desse público, as crianças representaram o último target na lista de intenções de investimentos por parte dos anunciantes em 2013, com 23% do planejamento de receitas, segundo o Mídia Dados, levantamento anual do setor de TV paga elaborado pela Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA).
Redoma
Restringir a publicidade infantil não assegura que as crianças fiquem imunes aos apelos consumistas da sociedade em que vivem. Segundo pesquisa realizada pela Pós-Gradução em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o programa de televisão mais visto por crianças entre 8 e 10 anos da classe C é a novela das nove da TV Globo, seguido pelos jogos de futebol exibidos pela emissora nas noites de quarta-feira. Em terceiro e quarto lugar, respectivamente, estão os filmes e o reality show Big Brother Brasil. Atrações, portanto, voltadas ao público adulto e permeadas por propagandas dos mais diferentes produtos e com apelo inadequado a pouca idade. “A influência da publicidade é menor do que as muitas outras que circundam as crianças, como a família e dos amigos. A chave para protegê-las está na educação e no diálogo com os pais, que devem mostrar o que é melhor para elas através de exemplos”, diz a pesquisadora Fernanda Cintra de Paula, da ESPM.
Para a diretora da Alana, a luta é que a publicidade de produtos e serviços infantis seja direcionada aos pais que, por sua vez, teriam o discernimento de escolher o melhor para seus filhos. O argumento é que marcas têm feito parte de ações educacionais dentro das escolas. A resolução do Conanda proíbe qualquer divulgação de produtos ou serviços no ambiente escolar. Um dos casos emblemáticos é um vídeo do sucesso estrondoso do YouTube Galinha Pintadinha, que inclui patrocínio de uma marca de sabonetes em clipe de música que ensina as crianças a lavar as mãos.
O cartunista Maurício de Sousa foi às redes sociais protestar contra a resolução. Em sua página no Instagram, ele publicou a foto de uma menina chamada Verônica segurando um cartaz com a seguinte mensagem: “Eu tenho direito de assistir publicidade infantil. A televisão não é só para os adultos. Alguém sabe quais produtos infantis lançaram por esses dias?”. Maurício foi achincalhado e, horas depois, tirou a publicação da rede social. A foto de Verônica com o cartaz foi substituída por uma dele seguida de uma legenda em que explicou a atitude. “Há mais de 40 anos, minha empresa faz, sim, publicidade de produtos que levam a marca dos meus personagens. Sempre de maneira responsável e criteriosa, porque nossa preocupação constante é o respeito à criança. Penso que é justamente por isso que meus personagens são tão queridos há mais de quatro gerações. Assim, a fim de evitar mal-entendidos, optei por deletar a imagem que postei mais cedo”.
Câmara
A discussão sobre a proibição da publicidade infantil é antiga no Brasil. Uma série de projetos de lei tramitaram no Congresso nos últimos anos, o mais recente de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). O texto apresentado em 2001 foi aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara em setembro do ano passado. A matéria deverá ser apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa e, se aprovada, ir à plenário para votação.
O deputado Milton Monti (PR-SP), que lidera uma frente na Câmara contra a proibição da publicidade infantil, afirmou que irá protocolar um decreto legislativo para anular a resolução do Conanda. “O Estado não pode ser o tutor da sociedade, isso é um grande equívoco. No fundo, medidas como essa são uma tentativa de atingir os veículos de comunicação e especialmente a liberdade editorial”.
Fonte: Veja