Falência da Patrística

No decorrer dos séculos medievais, a Bíblia sofreu por parte do catolicismo acerbíssimas perseguições. Em 1211, por exemplo, o bispo de Metz se lamentava ao papa Inocêncio III pelo fato da existência de círculos de leigos que, à revelia das autoridades eclesiásticas, liam as Escrituras. Em 1229, o Sínodo de Toulouse proibiu a leitura de suas traduções. Em 1234, o Sínodo de Tarragona ordenou confiscarem-se todas as traduções espanholas e lançá-las à fogueira.

Dentre milhares de interdições e casos de violências contra a Bíblia, a filosofia escolástica foi o maior empreendimento para se distanciar o clero e, em conseqüência, o povo europeu do seu exame. Referindo-se a esta obra nefasta de Tomás de Aquino, o sistematizador da escolástica, o teólogo católico, Van Iersel declara: Desenvolveu-se assim um sistema, por vezes autônomo, de posições teológicas que muitas vezes só muito a custo atingiram a realidade da fé, enquanto o sistema como tal perdia progressivamente o contato visível e detectável com a Escritura. Resultou dai… que se começou a pregar sistemas em vez de ser o partir da Palavra Viva da Escritura.(Igreja, Fé e Missão — Temas Conciliares – Lisboa – 1966, vol V, pág.16).

No fim da Idade Média, porém, influenciadas por cristãos genuínos, algumas áreas do catolicismo começa­ram buscar nas Escrituras esclarecimentos para a sua fé. Nesta conjuntura, invocou-se a Tradição consubstandada na Patrística como fonte suprema de Revelação Divina.

No conceito católico, a Patrística é o conjunto dos escritores da antiga literatura católica. É o período do pensamento tido como cristão que se seguiu à época neotestamentária e que chegou até ao começo da filosofia escolástica.

Impingiu-se, então, a tese de que o consenso (harmonia, acordo) unânime dos santos padres, ou esses escritores antigos, se constituía em legitima revelação.

É evidente que os cristãos não se conformavam e nem se submetiam. Bradavam os seus protestos!

O catolicismo romano, que já conseguira criar o seu hierarca supremo na pessoa do bispo de Roma, via-se em palpos de aranha para poder ajeitar o consenso ou a concordância entre os santos padres.

Cada dia, nos mosteiros surgia novas obras patrísticas. E cada vez mais discordantes entre si.

Quando os cristãos, com ousadia e decisão, resolveram elevar no conceito da Europa a Bíblia como única Regra de Fé e Prática, de acordo mesmo com essa Fonte de Revelação, sentiu-se o catolicismo romano na emergência de terçar todas as suas armas no sentido de estabelecer o mencionado consenso entre os santos padres, imprescindível à sua sobrevivência.

Constatou, porém, que só numa coisa eles concordavam: — é que discordavam em tudo.

Como fazer?

Forjar a necessária concordância unânime!

Com esse propósito, o papa Leão X, em 28 de Abril de 1515, como produto da 10a Sessão do 5o Concilio de Latrão, emitiu a Bula «Inter Multiplices», estabelecendo os índices Expurgatórios, cujo objetivo consistia em exa­minar todas ás obras literárias consideradas até então no conjunto da patrística.

No afã de se lograr a mencionada e ansiosamente almejada harmonia entre os santos padres em todos os pontos doutrinários católicos, decidiu-se estabelecer uma balisa entre eles, considerando-se Isidoro, bispo na Espanha e morto em 636, o último escritor eclesiástico agregado à patrística, no Ocidente. E João Damasceno, falecido em 749, no Oriente.

Assim como os cristãos aceitam haver se encerrado a Revelação Divina com a morte de João, o Apóstolo, os teólogos católicos se submeteram àquela demarcação da sua patrística.

Isso, porém, não bastava. Necessitou-se de um trabalho de expurgo. Por isso, muitas obras dos seis primeiros séculos foram repudiadas.

Mesmo assim com esse trabalho de peneira, o pretendido consenso ou harmonia unânime não foi consegui­do. Apelou-se para a tesoura e para o enxerto. E trechos inteiros contrários às pretensões romanistas foram extraídos. Muitas frases e palavras foram interpoladas no intuito de se transformar o significado dos textos ao sabor das interpretações desejadas!

Enquanto essa tarefa criminosa era consumada nos bastidores da cúria romana, explodiu na Alemanha a Reforma Protestante.

Sentia-se o catolicismo romano ruirem-se-lhes as bases falsas. Entricheiroü-se na atitude de Contra-Reforma e convocou o Concilio de Trento, cuja finalidade foi firmar em dogmas as suas doutrinas contestadas à luz da Bíblia, impondo-as com ameaças de anátemas e excomunhões aos seus fiéis imbecilizados e narcotizados pelas suas superstições cretinizadoras.

Mas, onde estruturar a sua dogmática?
Não na pureza da Bíblia por ser-lhe incompatível e, por isso, proibia sua versão nas línguas vernáculas.

Valeu-se, por conseguinte da Tradição consubstanciada na Patrística. E confirmou na 4a Sessão do Concílio de Trento aos 8 de Abril de 1546, o trabalho de «expurgo» anteriormente estabelecido pelo mundano Leão X no 5o Concilio de Latrão.

Na esfera religiosa européia, a Idade Moderna surgiu empunhando a Bíblia. Nessa conjuntura, o catolicismo resolveu arvorar-se em seu único e legítimo intérprete. Então, nessa sua mesma 4a Sessão estabeleceu que, em matéria de fé e costumes, ninguém ousasse interpretar a Sagrada Escritura em sentido contrário ao inexistente e utópico consenso unânime dos padres. «.. descernit, ut nemo… in rebus fidei et morum… contra unanimem consensum patrum, ipsam Scripturam sacram interpretari audeat».

É a Tradição consubstanciada em norma suprema da interpretação das Escrituras!

O teólogo católico Van Iersel, em seu artigo: «O uso da Bíblia na igreja católica», inserido no vol. V, de Temas Conciliares (página 17), confessa: «… Em oposição à Reforma deu-se um lugar à Tradição ao lado da Escritura, o que tornava muito relativo o valor da Bíblia».

Vamos repetir e frisar bem a constatação de Van Iersel: «… EM OPOSIÇÃO Á REFORMA DEU-SE UM LUGAR À TRADIÇÃO AO LADO DA ESCRITURA, O QUE TORNAVA MUITO RELATIVO O VALOR DA BIBLIA».

Tornava? Não!!! Porque a Tradição ainda vige e com muito mais intensidade depois deste último Concilio Ecumênico! E ficam por ai certos protestantes católicizados a promover manifestações públicas no Dia da Bíblia de parceria com os embatinados!

Evidentemente que o Concilio Tridentino não podia fundamentar em nenhuma passagem bíblica, o estabelecimento de sua patrística como órgão da Tradição. E os teólogos católicos não se pejam de apresentar como defesa da tese tridentina, o seguinte argumento de cabo de esquadra: — À TRADIÇÃO INFALÍVEL DA IGREJA CATÓLI­CA COMPETEM AS MATËRIAS DE FÉ E COSTUMES.

ORA, O CONSENSO UNÂNIME DOS SANTOS PA­DRES EM MATÉRIA DE FÉ E COSTUMES, DE SI MESMO, REFLETE A MENCIONADA TRADIÇÃO.

PORTANTO, ÊSTE CONSENSO CERTO É O AR­GUMENTO DA VERDADE DIVINA. Os reverendos teólogos, na mais das aberrantes interpretações, firmam a maior do seu silogismo falso nos versículos 19 e 20 do capitulo 28 de Mateus: «Portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século».

A maior do argumento é antilógica! A perícope neotestamentária nem de teve lhe fornece base!

A menor demonstra os paroxismos da estupidez.

E todo o silogismo é um grosseiro sofisma!

A par deste esforço por sistematizar a Tradição no intento de conseguir harmonia, ao menos moral, entre os santos padres em favor das teses católicas inteiramente opostas ou alheias às Sagradas Escrituras, generaliza­ram-se após a Reforma as medidas antes tomadas acidentalmente para proibir ou pelo menos limitar ao mínimo o uso da Bíblia nas línguas vulgares. É verdade que o Concilio de Trento, depois de longas discussões, não proibiu a tradução da Bíblia. Em 1559, todavia, já se encontrava a seguinte cláusula, junto à menção de vá­rias edições da Bíblia, no INDEX DOS LIVROS PROIBI­DOS promulgada por Paulo V: (Não se pode ler, imprimir-se ou possuir-se sem licença do Santo Oficio as edições da Bíblia em língua vulgar). Esta cláusula foi re­produzida de diferentes maneiras nas edições ulteriores até que, em 1664, a lista dos livros proibidos refere simplesmente: (Qualquer Bíblia traduzida em vernáculo).

Estas informações não fomos colhe-las em nenhuma obra polêmica de lavra protestante.

Fomos buscá-las numa revista católica, ANGELI­CUM, uma das mais importantes editadas em Roma, que, em 1947, XXIV, nas páginas 147-158, trouxe o artigo:

«La chiesa e la versione della Scritura in lingua volgare» de autoria do P. G. Duncker.

O catolicismo empenhava-se sobremodo por conservar o Livro Santo inteiramente fechado para o povo. Quem quisesse que estudasse latim para ler a Vulgata.

Outro documento comprobatório desta assertiva é a carta «Magno et Acerbo», de três de Setembro de 1816, em que o seu autor, o papa Pio VII ataca violentamente as traduções vernáculas da Bíblia.

E para completar o cúmulo de tanto pavor, Leão XII, na Encíclica “Ubi Primum”, de cinco de Maio de 1824, chama de «PESTE» as Sociedades Bíblicas por divulgarem aquelas versões indesejáveis aos embustes católicos.

O catecismo de Gand, largamente difundido pelos paises de origem latina, como reflexo desse pavor, em sua forma clássica de pedagogia catequética, perguntava e respondia: «Ë proibido ler a Bíblia? Sim, é proibido aos simples fiéis lê-la sem autorização na sua própria língua. É a Escritura suficientemente clara e pode cada um compreendê-la? Não, é muito obscura em muitas passagens; em conseqüência é muito perigoso para as pessoas sem cultura lê-la.

Conjugaram-se todas as energias nestes dois objetivos: dificultar o acesso à Bíblia por parte do povo e organizar a patrística para demonstrar uma harmonia in­terna como lastro suficiente das teses católicas.

Com sua dogmática firmada na patrística, como órgão de sua Tradição, o catolicismo empreendeu esforços descomunais no sentido de apresentar uma coleção de todas as obras dos escritores de sua literatura antiga por ele mesmo selecionados, objetivando fundamentar os seus dogmas na pretendida concordância entre elas.

O trabalho foi gigantesco em quase todos os mosteiros da Europa em vista mesmo da contingência de se obter o sonhado consenso unânime nos moldes da bula (Inter Multíplices). E somente um século após o Concilio Tridentino, o sínodo da Contra-Reforma e da apologia da Tradição, é que surgiu a primeira grande coleção dos escritores eclesiásticos antigos, elaborada por Margarin de la Bigne, cônego de Bayeux, em 9 volumes in folio e intitulada «Bibliotheca Sactorum Patrum», contendo o texto de mais de 200 autores da antiguidade.

Esta obra não podia satisfazer à necessidade de se comprovar com informes da Tradição todos os dogmas. Precisou, então, ser ampliada e poucos anos depois já se cognominara de «Maxima Bibliotheca Vaterum Patrunv>> por abranger 27 volumes in folio, tornando-se mais apta para estudos mais largos.

Apesar de grandiosa não agradava ainda por não cumprir integralmente o seu objetivo. Além de ser incompleta, reconheceram-se outros defeitos, sobretudo o de manifestar a carência da almejada concordância.

O Concilio de Trento fora terminante: «Para reprimir a petulância a fim de que ninguém, movido pela sua própria competência nas coisas relativas à fé e aos costumes pertencentes à edificação da doutrina cristã, torça para o seu modo de entender a Sagrada Escritura, contrariando o sentido aceito pela santa madre igreja, a quem cabe julgar o verdadeiro sentido e a verdadeira interpretação das Sagradas Escrituras ou contrariando o unânime consenso dos padres» (Sessão IV, de 8 de Abril de 1546).

Era preciso, pois, redobrar os esforços por se conseguir uma coleção satisfatória às exigências das teses católicas.

Ainda, para se safar desta enrascada porque, apesar dos grandes polemistas especializados em sofismas, como cardeal Belarmino, Jesuíta (?!), a Bíblia continuava, mesmo amordaçada, a ameaçar as bases daquelas teses, fizeram-se novas tentativas e apareceram outras coleções: a do frade dominicano Combéfis, concluída em 1672; a do helenista francês João Batista Cotolier, concluída em 1683 e intitulada «monumenta ecclesiae grae­cae»; a do monge beneditino francês, Bernardo de Montfaucon, em 1706; e a do oratoriano, André Gallandi, concluída em 1788 e superior a todas as anteriores.

Todas estas coleções, entretanto, redundaram em no­vos fracassos. Não puderam satisfazer a necessidade de consenso unânime na patrística. Além disso, não foram capazes de desfazer as incertezas sobre os santos padres dos dois primeiros séculos.

Nos meados do século passado, de 1844 a 1860, aconteceu a derradeira arrancada para se lograr o desenrasque desse intrincado problema. Coube ao fundador do jornal católico, «Univers», de Paris, Jaime Paulo Mígne, publicar a coleção mais completa de todas. Intitulada «Patrologiae Cursus Completus», consta de duas séries: a dos padres latinos e a dos gregos. A primeira consta de 217 volumes e a dos gregos, de 162.

Mesmo considerada a mais completa, os seus defeitos, outrossim, são reconhecidos.

Não serviu para suprir a necessidade mais premente da contra-Reforma. Mas, foi útil para lotar as prateleiras das bibliotecas dos mosteiros e servir de pasto para os insetos.

Infrutíferos todos os esforços por se alcançar uma coleção completa. Recrudesceram as dificuldades dos polemistas católicos. Esta própria coleção de Migne, com­posta de 379 volumes in folio, se constituiu em motivo de irrisão.

Fonte:Anibal Pereira dos Reis

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