Estratégias na defesa do Livro de Mórmon

 

Fair Mormon é indiscutivelmente a principal organização Mórmon dedicada à defesa da religião dos Santos dos últimos Dias (SUD). Todos os anos essa organização realiza uma conferência em que estudiosos e apologistas Mórmons, apresentam artigos relevantes para a defesa do Mormonismo. Como um estudioso evangélico que se dedica à pesquisa em relação ao Mormonismo, tento acompanhar o que o FairMormon produz e faço referência frequente aos seus materiais on-line. Assisti a sua conferência de 2012 e este ano consegui participar da conferência de 2017 nos dias 2 e 3 de agosto, realizada no Utah Valley Convention Center em Provo, Utah.

Neste breve artigo, não comentarei todas as apresentações, mas apenas as relacionadas ao Livro de Mórmon. Na verdade, um fato notável sobre a conferência foi que uma considerável atenção foi dada ao Livro de Mórmon. Cinco das quatorze apresentações foram especificamente focadas no Livro de Mórmon e outras apresentações incluíram algum material sobre ele. Essa ênfase no Livro de Mórmon é consistente com a ênfase geral da Igreja SUD, uma vez que trata o Livro de Mórmon como sua escritura fundacional e a porta de entrada para os convertidos chegarem à fé mórmon, além de ser o foco do “testemunho” de uma pessoa sobre a verdade do Mormonismo. É por esta razão que tenho dedicado a maior parte da minha pesquisa e escritos nos últimos anos a este assunto.

Nesta Conferencia, todas as apresentações focadas na defesa do Livro de Mórmon foram bastante interessantes. No entanto, isso não significa que eu acredito que essas defesas são fortes o suficiente em prol da causa mórmon. De todas as apresentações apenas quatro temas serão analisados aqui.

  1. Nós não sabemos onde aconteceu: o problema da geografia do Livro de Mórmon

Alguns dos palestrantes fizeram referência ao fato de que a Igreja SUD afirmou que “não tem posição oficial sobre a geografia do Livro de Mórmon, exceto que os eventos ocorreram nas Américas”.1  Esta posição é motivada por dois fatores: nenhuma posição pode ser fundamentada de forma factual e a Igreja SUD não quer desprezar os muitos membros que rejeitam o consenso acadêmico Mórmon a favor de um local mesoamericano (centro-americano). Assim como os palestrantes da conferência acima mencionados, há mórmons que pensam que as terras do Livro de Mórmon estavam na Mesoamérica, na região dos Grandes Lagos, na Baja Califórnia ou no Peru.

Foi fascinante ouvir preletores virtualmente cuidadosos em torno da questão. A apresentação de Tyler Griffin no segundo dia da Conferencia (uma das mais fracas de todas as apresentações) argumentou que as descrições geográficas do Livro de Mórmon  são “internamente consistentes” enquanto ignorava a questão da sua consistência com quaisquer localidades no mundo real. Até Ugo Perego, um geneticista mórmon que claramente não gosta do modelo geográfico dos Grandes Lagos ou Terra do Coração, do Livro de Mórmon, refutou profundamente o argumento genético sobre isso, humildemente permitindo a possibilidade disso terminar sendo verdade.

  1. Nós não precisamos de nenhuma evidência: o problema da ausência da civilização nefita

Os mórmons geralmente respondem às críticas sobre a falta de apoio ao Livro de Mórmon pela arqueologia, argumentando que a mera falta de evidência para cidades, animais, tecnologias ou eventos específicos não significa que eles não existissem. Este ponto foi fortemente enfatizado por Neal Rappleye na apresentação de abertura no primeiro dia. O argumento baseia-se no jargão que ficou famoso em estudos bíblicos pelo egiptólogo e estudioso evangélico do Antigo Testamento Kenneth Kitchen, de que “a ausência de evidência não é evidência de ausência”.2 Mas há dois grandes problemas com essa defesa.

Em primeiro lugar, não podemos equiparar falta de evidência de elementos específicos no texto com falta de evidência para toda a narrativa. Não precisamos fornecer provas arqueológicas de que José de Arimatéia existiu para aceitar a historicidade e a credibilidade histórica dos Evangelhos. Seria um assunto completamente diferente se não tivéssemos nenhuma evidência fora dos Evangelhos para a existência de Israel, Jerusalém e todo o povo judeu. Talvez nunca encontremos evidências externas convincentes sobre a existência do patriarca Abraão em Gênesis, mas temos provas externas que demonstram que pessoas como Abraão viveram naquele período de tempo, que fizeram o tipo de coisas que Abraão fez e que as principais localidades e os grupos de pessoas mencionados no relato de Gênesis sobre Abraão eram lugares reais (por exemplo, Canaã e Egito).3

O problema com o Livro de Mórmon não é que não podemos identificar ou confirmar a existência, digamos, da cidade de Zarahemla ou de um profeta chamado Alma. O problema (sobre esta questão da falta de provas) é que não podemos confirmar a existência de nenhum dos seus locais, qualquer das suas personagens, ou mesmo dos nefitas, apesar do fato de que o Livro de Mórmon os apresenta como uma civilização que cobriu a terra americana por quase um milênio.

Em segundo lugar, a dificuldade enfrentada pelos defensores da historicidade do Livro de Mórmon não é apenas uma falta de evidência, mas a disponibilidade de evidências que realmente conflitam com suas teorias sobre quem e onde estavam os nefitas. Como mencionei anteriormente, a teoria dominante exposta pelos estudiosos da BYU e apologistas na FairMormon é que os nefitas viviam na Mesoamérica (especificamente no que é agora o sul do México e na Guatemala). Mas sabemos pela arqueologia quem realmente viveu naquelas partes das Américas no período em questão (cerca de 550 aC até 420). Os povos que moravam lá eram pagãos descendentes de asiáticos que se instalaram lá milhares de anos antes do povo de Néfi supostamente aparecer em seu navio.

A cultura da região apontada pelos estudiosos e apologistas como a terra Nefita era totalmente pagã durante todo aquele longo milênio, incluindo o período aproximado de 34 AD ate 250 AD, quando supostamente toda a região se converteu a fé cristã, quando Jesus apareceu a eles. 4 Por “ pagã” significa que aquela cultura adorava numerosas divindades representando as forças da natureza, através de imagens de criaturas mitológicas, com derramamento de sangue e até sacrifícios humanos, elementos proeminentes naquele culto.

Nós não sabemos o que eles significam: o problema das descrições do Livro de Mórmon

Em terceiro lugar, vários oradores argumentaram que vários tipos de termos ou descrições no Livro de Mórmon que nos parecem problemáticos podem não significar o que parecem. Este parece ter sido o tema dominante da conferência. Neal Rappleye, Michael Ash e Ben Spackman deram atenção especial a essa ideia, embora o foco de Spackman tenha sido principalmente na Bíblia, com breves comentários sobre o Livro de Mórmon.

Uma forma em que os apologistas mórmons tentam explicar muitas das problemáticas descrições no Livro de Mórmon é sugerindo que eles são instâncias conhecidas como “extensões semânticas”. Um exemplo geralmente citado é o ato de cunhar a palavra grega hippopotamus , que literalmente significa “cavalo do rio” mesmo entendendo que esse animal não é um cavalo. Rappleye mencionou esse exemplo e então sugeriu que o princípio pode explicar as referências a cavalos e carruagens no Livro de Mórmon. Sua proposta é que os termos podem se referir  a cachorros ( chamado ‘horses’) que andavam ao lado das liteiras (tipo de carruagem) nas quais personalidades reais eram carregadas por homens.

Nas P&R no final da sua apresentação, alguém perguntou a Rappleye porque os cachorros não eram chamados apenas  cachorros. Ele teve que admitir que não tinha uma resposta. Esse foi claramente o momento mais fraco em uma boa apresentação, mesmo que eu discorde  com ele nos assuntos mais amplos.

Os Mórmons tem frequentemente observado que apesar do Livro de Mórmon mencionar cavalos e carruagens no mesmo contexto, isso geralmente  nunca indica que os cavalos puxavam as carruagens.  Se trata de uma análise legal do texto.

Cavalos e carruagens  são citados sete vezes em passagens separadas no Livro de Mórmon (2 Nefi 12:7; Alma 18:9, 10, 12; 20:6; 3 Ne. 3:22; 21:14). Carruagens nunca são mencionadas exceto em associação com cavalos.  A repetida correlação de cavalos e carruagens nessas passagens não deixa dúvidas de que os cavalos puxavam as carruagens.  Assim como isso seria para alegar  que referencias a “boi e arado” não significaria que o boi puxasse o arado; é um ad hoc (para) alegar que referências a cavalos e carruagens  no mesmo texto imediato não se refere a cavalos que puxavam carruagens.  Além disso, duas dessas passagens do Livro de Mórmon estão geralmente citando textos do Antigo Testamento, onde nós sabemos o que autênticos cavalos e carruagens significavam (2 Nefi 12:7 cf. com Isaias 2:7; 3 Nefi 21:14 cf. com Miqueias 5:10). Não é plausível que estes termos signifiquem cavalos e carruagens quando o AT está sendo citado, mas cachorros e liteiras em qualquer outro lugar.  Assim,  enquanto o texto pode realmente  não “descrever” cavalos puxando carruagens, é claro o  suficiente  falar de  carruagens puxadas a cavalo.

Não importa-nos como ele fez isso: o problema da tradução de Joseph Smith

Um grande obstáculo para muitos mórmons nos últimos anos em relação à história da origem do Livro de Mórmon tem sido a questão evolvendo Joseph Smith e sua tradução por meio da pedra dentro de um chapéu. Esta não era apenas qualquer pedra, mas era a mesma “pedra vidente” que ele usara durante quatro ou cinco anos procurando por tesouros escondidos. Os apologistas mórmons afirmam rotineiramente que esta questão não tem nenhuma consequência. A apresentação de Brant Gardner na conferência foi um excelente exemplo desse tipo de apologética. Com efeito, a resposta de Gardner a este problema foi afirmar: “Não há nada para verificarmos aqui”. Em certo momento da palestra ele perguntou o que fez com que Joseph usasse sua pedra de caça ao tesouro ou os óculos chamados de “intérpretes”? A resposta deve ser óbvia:5a pergunta de Gardner pressupõe que se Joseph usou uma pedra ou qualquer outra coisa, isso não importa, porque de qualquer maneira o que ele fez foi milagroso.  Mas esta é uma suposição que precisa ser reexaminada. Proponho uma maneira diferente de entender o método de Joseph com base no fato de que a pedra no chapéu nunca funcionou para ele quando  estava procurando tesouro enterrado. Na minha opinião, era um dispositivo que manipulava as pessoas para pensar que Joseph estava vendo algo que elas não podiam ver. O propósito de olhar para a pedra com o rosto no chapéu não era realmente impedir que a luz externa interferisse com o que Joseph via, mas evitar que as pessoas vissem que, na realidade, nada estava acontecendo com a pedra.

É claro que os mórmons fiéis acharão esta explicação absurda: como Joseph poderia ter ditado todo o Livro de Mórmon de cabeça com o rosto enterrado em um chapéu? Mas esta questão também faz uma suposição que precisa ser reexaminada. Temos relatos que falam que grandes porções do Livro de Mórmon foram ditados com a pedra no chapéu, mas não temos informações específicas o suficiente para justificar a suposição de que foi assim que o livro inteiro foi ditado. Por outro lado, não temos nenhum relatório para apoiar a ideia de que partes do Livro de Mórmon foram ditadas de alguma outra forma. Em suma, a evidência do testemunho de quem relatou assistir Joseph ditar o Livro de Mórmon é insuficiente para responder a pergunta de uma forma ou de outra.

Devemos então observar a evidência interna do próprio Livro de Mórmon. Quando o fazemos, o que parece é que Joseph Smith usou intensamente a versão King James da Bíblia ao produzir uma grande parte do Livro de Mórmon, principalmente em pontos que reproduziu doze capítulos do livro de Isaias quase literalmente. Assim, a questão de como Joseph Smith produziu o Livro de Mórmon pode exigir uma resposta complexa que permita diferentes métodos em momentos diferentes. Ele pode de fato ter ditado muito do livro  extemporaneamente com o rosto enterrado em seu chapéu, e as passagens não-bíblicas do Livro de Mórmon realmente se encaixam muito bem nessa explicação (frases longas, executadas, repetição excessiva e similares). Ele pode ter ditado as passagens bíblicas com uma Bíblia na mão, fazendo mudanças ocasionais ao longo do texto (geralmente de natureza menor, assim como os plagiadores costumam fazer). Não há apenas um tipo de explicação que possa ser dada, é difícil saber com certeza como ele fez. Joseph se recusou a dar explicações ou a mostrar a alguém como ele fazia aquilo. A melhor explicação para o seu segredo sobre o assunto era que a pedra no chapéu não era nada além de um truque de mágico.

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NOTAS

  1. Book of Mormon Seminary Teacher Manual(Salt Lake City: Church of Jesus Christ of Latter-day Saints, 2012), 196–98.
  2. E.g., Kenneth A. Kitchen, “The Patriarchal Age: Myth or History,” Biblical Archaeological Review21 (March/April 1995): 50.
  3. See, for example, Kenneth A. Kitchen, On the Reliability of the Old Testament(Grand Rapids: Eerdmans, 2003), 313–72; Iain Provan, V. Philips Long, and Tremper Longman III, A Biblical History of Israel, 2nd ed. (Louisville: Westminster John Knox Press, 2015), 156–71.
  4. Standard academic reference works that provide wide-ranging information supporting these statements about ancient Mesoamerica include Archaeology of Ancient Mexico and Central America: An Encyclopedia, edited by Susan Toby Webster and David L. Webster (New York: Garland, 2001); The Oxford Encyclopedia of Mesoamerican Cultures: The Civilizations of Mexico and Central America, Davíd Carrasco, editor-in-chief (Oxford: Oxford University Press, 2001); Michael D. Coe, The Maya, Ancient People and Places, 8th ed. (New York: Thames & Hudson, 2011); The Southern Maya in the Late Preclassic: The Rise and Fall of an Early Mesoamerican Civilization, edited by Michael Love and Jonathan Kaplan (Boulder: University Press of Colorado, 2011); and The Oxford Handbook of Mesoamerican Archaeology, edited by Deborah L. Nichols and Christopher A. Pool (Oxford: Oxford University Press, 2012).
  5. For a thorough discussion of this point, see Robert M. Bowman Jr., “Joseph Smith’s Seer Stone” (Cedar Springs, MI: Institute for Religious Research, 2015).

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http://mit.irr.org/fairmormon-2017-recent-book-of-mormon-defense-strategies

Robert M. Bowman Jr.[1]

[1] Bowman é um teólogo cristão evangélico americano especializado no estudo da apologética. Possui mestrado (1981) em Teologia no Fuller Theological Seminary, realizou estudos de doutorado em apologética cristã no Westminster Theological Seminary e obteve seu Ph.D em Estudos Bíblicos no South African Theological Seminary . De 2006 a 2008 ele foi o diretor no departamento de Apologética e Evangelismo Inter-religioso para o Conselho de Missão da América do Norte, uma agência da Convenção Batista do Sul . Desde 2008 ele é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Religiosa.

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