Eleição corporativa

vaso oleiro

Eleição é um tema fundamental para a compreensão do plano de redenção humana que percorre as Escrituras Sagradas do começo ao fim.  Examinaremos a Bíblia de um modo geral para obter uma visão mais abrangente do assunto e, depois, voltaremos nossa atenção para o tratamento que Paulo dá a questão da eleição nos capítulos 9, 10 e 11 de Romanos.

Visão Geral

Certa vez, alguém me fez a seguinte pergunta: “Por que foi que Deus escolheu um povo em detrimento dos demais?” Respondi que Deus ao escolher Israel, não o fez em detrimento, mas, sim, em favor de todas as demais nações da terra. As raízes da formação do povo hebreu são descentralizadoras e missionárias, pois nasceu recebendo o apelo missionário de beneficiar a todos os demais povos com a mesma bênção com que foi contemplado por Deus. Abraão foi abençoado por Deus para se tornar uma bênção para todas as demais famílias da Terra (Gn 12.3). Ele não deveria represar a bênção em si mesmo ou em sua própria família. Deus é criador de todos, ama a todos e oferece graça e bênçãos a todos os povos, línguas e nações.

O livro de Gênesis mostra isto com clareza. Analisando as quatro narrativas registradas nos onze primeiros capítulos de Gênesis após a magnífica descrição da criação, a saber: 1) A queda em pecado 2) O primeiro assassinato, 3) O Dilúvio e 4) A Torre de Babel, observa-se que elas seguem um mesmo padrão narrativo, pois cada uma delas possui quatro componentes, que aparecem nesta sequência: 1) Descrição do pecado; 2) Discurso de Deus; 3) Descrição do Castigo e, por fim: 4) Uma manifestação da Graça de Deus.

Este padrão está bem explícito nas três primeiras narrativas. No entanto, no episódio de Babel, vemos a descrição do pecado, ouvimos o discurso de Deus e também percebemos o consequente castigo que culminou em distanciamento, estranhamento e inimizades entre as nações, mas, onde está o quarto elemento? Onde está um sinal da Graça de Deus? Cadê o elemento de cura para as nações? O autor de Gênesis parece mesmo estar despertando a nossa curiosidade e atenção para este importante aspecto. Não é à toa que a narrativa de Babel termine com uma lista genealógica que desemboca no personagem Abraão. Aí está a manifestação da graça divina em favor das nações! O chamado de Abraão é um chamado missionário que visa o bem-estar e a salvação de todos os povos: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3)!

Com Abraão se inaugura a história da salvação. Até então, o que parecia prevalecer era o pecado e a maldade humana como vistos nos episódios da Queda, de Caim, do Dilúvio e de Babel, trazendo muita maldição (3.14,17; 4.11; 5.29; 8.21; 9.25). Mas, agora, com Abraão, esboça-se um período de bênção, graça e redenção. Curioso notar que, em Gênesis, a história da desgraça humana culmina com o episódio da “Torre de Babel”, e que, de Babel, Deus escolhe Abraão para dar início a história da salvação! No episódio da Queda, Deus já prometera o advento de um descendente de mulher que pisaria a cabeça da serpente, promovendo cura para a maldição do pecado que se abateu sobre toda a humanidade. Ao escolher Abraão, Deus está escolhendo a linhagem da qual descenderá o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

E é também interessante o contraste que podemos estabelecer entre Babel e Abraão:

  1. Em Babel, homens pretendem alcançar os céus, de baixo para cima, por méritos próprios, enquanto que, no chamado de Abraão, é Deus quem desce até ele;
  2. Em Babel, temos a soberba daqueles que pretendem dominar o mundo através de seu poder e conhecimento tecnológico (11.3), enquanto que, Abraão, em sua fraqueza, ousa acreditar na promessa que seria pai;
  3. Enquanto os homens de Babel estão dizendo: “tornemos célebre o nosso nome” (11.4), no episódio de Abraão, é Deus que lhe fala: “te engrandecerei o nome” (12.2);
  4. e, por fim, enquanto a Torre de Babel divide as nações, Deus chama a Abraão para formar uma nação cuja missão principal é tornar-se um canal de bênção para todas as demais nações (12.3)

O restante do livro de Gênesis relata como isto começa a se cumprir através de Abraão e sua descendência. Abraão é descrito abençoando Ló, que formará uma nação, e também libertando cinco cidades das mãos de seus opressores (Gn 13, 14). Não podemos esquecer de que Abraão intercedeu em favor de Sodoma e Gomorra (Gn 18); E, Deus diz o seguinte a Abimeleque a respeito de Abraão: “ele é profeta e intercederá por ti, e viverás” (20.7); E Labão confessa a Jacó: “tenho experimentado que o Senhor me abençoou por amor de ti” (30.27); E bem sabemos que os últimos capítulos de Gênesis são destinados a contar a história de José que se tornou grande e poderoso a ponto de abençoar o Egito e muitas outras nações vizinhas.

Eis aí a grande vocação do povo de Deus. Mas, não podemos nos esquecer de que tal privilégio traz consigo uma enorme responsabilidade, pois, quando Israel deixa de ser bênção, acaba se tornando maldição: “foste maldição entre as nações” (Zc 8.13; Jr 4.4).

O Antigo Testamento afirma que Deus escolheu Israel para ser o Seu povo. Deus diz: “Mas escute agora, Jacó, meu servo, Israel, a quem escolhi” (Is 44:1). No entanto, como Paulo explica em Romanos 9-11, nem todo o Israel é Israel (Rm 9:6). Ou seja, nem todos os descendentes sanguíneos de Abraão são judeus em termos de redenção. A eleição de Israel não significa a eleição pessoal de cada judeu. Um judeu não faz automaticamente parte do povo escolhido por ser judeu, pois, para fazer parte, é necessário que se torne um judeu espiritual: “Não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é meramente exterior e física. Não! Judeu é quem o é interiormente, e circuncisão é a operada no coração, pelo Espírito, e não pela lei escrita…” (Rm 2.28-29).

As Escrituras revelam que os descendentes de Abraão, de um modo geral, fracassaram na fé e negligenciaram a sua missão. Mas, Deus sempre cumpre as suas promessas. Cristo é um descendente de Abraão que nasceu para desfazer as obras de Satanás e para iluminar o mundo inteiro.

A grande maioria dos israelitas não reconheceu a Jesus como o Messias prometido (Jo 1.10-12) e tropeçaram na pedra de tropeço (Rm 9.32); Então, muitos gentios recebem o Cristo e são enxertados na Oliveira da qual também faz parte um grupo remanescente fiel de Israel que também estão ligados a Cristo (Rm 11.17-24). Repare que não existem duas oliveiras mais somente uma. Jesus disse: “Eu sou a videira verdadeira”. Sabemos que tanto videira, como oliveira são símbolos de Israel. Jesus está afirmando ser o Israel verdadeiro. Por esta razão Paulo diz aos gentios cristãos: “naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo. Mas agora em Cristo Jesus, vós que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um, e tendo derrubado a parede de separação que estava no meio, a inimizade… para que dos dois criasse em si mesmo um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo… Assim já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois família de Deus… os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e coparticipantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho.” (Ef 2.12-3.6). “Dessarte, não pode haver judeu nem grego… porque todos vós sois um em Cristo. E se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão, e herdeiros segundo a promessa.” (Gl 3.28-29).

Por tudo isto Paulo pode declarar ousadamente: “Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão… Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como se falando de muitos, porém como de um só: E ao teu descendente que é Cristo” (Gl 3.7, 16. Ver também Rm 4.10-18). Jesus é “a pedra principal”, os que estão firmes nesta pedra, quer judeus, quer gentios, pois “Deus não faz acepção de pessoas” (Rm 2.11), é que, agora são chamados de “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus…” (1 Pe 2.4-10). Interessante notar que, neste trecho, Pedro está citando uma promessa de Deus dirigida ao povo de Israel, registrada em Êxodo 19.5-6: “… então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos… vós me sereis reino e sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel”. Pedro estava convicto de que era através da Igreja que tal profecia havia tido o seu cumprimento, e por isso ousou dirigir tais palavras à Igreja.

Não é à toa que Jesus escolhe o número de 12 apóstolos, fazendo alusão as doze tribos de Israel; bem como o Céu é descrito em termos de “Nova Jerusalém”, bem apropriado para o Novo Israel de Deus. Jesus Cristo é o “sim” e o “amém” pronunciado sobre cada uma das promessas de Deus registradas no Antigo Testamento: “Porque quantas são as promessas de Deus tantas têm nele o sim; porquanto também por ele é o amém para a glória de Deus.” Jesus é o Messias prometido; e, verdadeiro israelita é aquele que possui o Messias.

A esperança do povo judeu é crer no Messias, ingressando no Corpo Eleito de Cristo que é a Igreja. Quando Israel rejeitou o Messias foi cortado da “Oliveira” e os gentios crentes foram enxertados nesta mesma árvore. Não existem duas árvores; não existem, portanto, dois povos de Deus. A esperança e promessa em relação a Israel é de que mais  judeus creiam no Cristo e venham a ser enxertados de volta na mesma árvore, onde agora estão os gentios e o remanescente fiel de Israel.

A Igreja é este “mistério de Deus” (Ef 5.32), que engloba todos os povos, formando um “só corpo”, com “um só Senhor” (Ef 4.4 e 5). Percebemos nitidamente o elemento de continuidade no que diz respeito ao povo de Deus e a missão de Israel (Gn 12.3) que se cumpre na missão da Igreja: “Ide, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28.18-20), “E ser-me-eis testemunhas em Jerusalém, Judéia, Samaria e até nos confins da terra” (At 1.8).

Quando a promessa do Espírito foi derramada sobre a Igreja no dia de Pentecostes, um fenômeno extraordinário envolvendo línguas e nações aconteceu, promovendo um efeito reverso daquele de Babel! Enquanto em Babel tivemos a confusão das línguas e a divisão das nações, em Pentecostes, através da Igreja, temos uma língua compreendida por todos os povos, promovendo conversões e a unidade dos povos debaixo do senhorio do descendente de Abraão que de fato é Filho de Deus e o legítimo Rei de Todas as Nações! Apocalipse usa a palavra “nação” ou “nações” mais de 20 vezes. Redimidos de todas as nações adoram ao Senhor (5.9; 7.9) com o cântico “Rei das nações” (Ap 15.3,4). “É necessário que o Evangelho seja primeiramente pregado para todas as nações, só então virá o fim” (Mt 24.14). Nós apressamos o retorno de Jesus através do cumprindo de nossa missão (At 1.8; Mt 28.19,20, 2 Pe 3)

Vimos, portanto, que desde os tempos do Antigo Testamento, uma grande preocupação de Deus com todos os povos. E, aquele mesmo que nos disse: “vinde a mim”, também nos disse: “ide por todo mundo”. Jesus orou ao Pai para que não fossemos tirados do mundo, pois ele tem um plano para nós aqui, uma grande missão. Não devemos ser crentes de arquibancada, portando-nos como meros espectadores dos eventos históricos e escatológicos, pois não foi para isto que fomos chamados. Devemos assumir o nosso papel na história, devemos atuar como protagonistas, e entrar em campo com o auxílio do Espírito Santo para contribuir com a concretização dos propósitos de Deus (Mt 5.14-16).

Além da eleição corporativa da Igreja em Cristo, será que Deus escolhe também indivíduos para a salvação? Calvinistas afirmam que sim, alegando que as pessoas não regeneradas estão mortas em seus pecados, sendo, portanto, incapazes de aceitar a Cristo como Salvador (Ef 2:1-5). Concluem daí que só os escolhidos são agraciados por Deus com a capacidade de crer e aceitar o Evangelho. Os demais são abandonados à sua condição de perdição.

Já os arminianos, ressaltam que Deus é amor e deseja a salvação de todos os homens (1Tm 2.4; 2 Pe 3.9). Ensinam que todas as pessoas são agraciadas por Deus com a capacidade de responder com fé a pregação do Evangelho (graça preveniente). Como Jesus disse, “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12:32). Tal atração não é do tipo irresistível e fatal, cabendo ao ouvinte a decisão de aceitar ou rejeitar o evangelho. É possível resistir a graça e ação do Espírito Santo de convencer o homem do pecado, da justiça e do juízo, e muitos assim o fazem (2Tm 3.8 e At 7.51). No entanto, os que creem tornam-se os indivíduos eleitos, sob a condição de permanecerem firmes nesta fé, por este motivo, temos esta exortação de Pedro: “Portanto, irmãos, empenhem-se ainda mais para consolidar o chamado e a eleição de vocês, pois se agirem dessa forma, jamais tropeçarão” (2Pe 1:10; ver também: 1Co 9:27). Como disse Jesus: “É perseverando que vocês obterão a vida” (Lc 21:19; Mt 24.13). Como também advertiu o autor de Hebreus: “pois passamos a ser participantes de Cristo, desde que, de fato, nos apeguemos até o fim à confiança que tivemos no princípio” (Hb 3:14). Tal eleição é, portanto, condicional a fé que coloca o indivíduo dentro do Corpo Eleito, numa correta relação com Aquele que é a Cabeça deste Corpo. Tal inclusão se dá pela fé e não pelas obras. Sendo assim, não há mérito pessoal na aceitação da dádiva da salvação. Deus tomou a iniciativa, tanto no ato de prover a salvação, quanto no de conceder às pessoas a capacidade de responder ao evangelho. De outro modo, se o calvinismo estivesse correto, as palavras de Cristo e de seus apóstolos convidando a todos ao Evangelho seriam insinceras  (Mt 11:28).

Quero concluir esta primeira parte com uma conhecida ilustração que ajuda a entender corretamente a doutrina da eleição. A eleição corporativa é como um navio (Igreja) a caminho do seu destino final (a santificação e a Nova Jerusalém). Cristo é escolhido para ser o piloto deste navio. Deus deseja que todos os seres humanos embarquem neste navio e faz providências neste sentido. Todos são chamados, mas escolhidos são apenas aqueles que confiam no Piloto. Estes tem o direito de embarcar. E estarão na condição de eleitos desde que permaneçam firmes em sua fé. Mas, se abandonarem o navio por conta da incredulidade, passaram a não constar mais entre os eleitos. A eleição só é experimentada na união com o Comandante deste navio. Predestinação tem a ver com o porto de destino deste navio e com o destino final que Deus tem preparado para aqueles que permanecem nele. Todos são convidados e ninguém precisa ficar de fora!

Romanos 9-11 – Introdução – 9.1-5

O tema central de Romanos, que é o da justificação pela fé, continua em destaque também nestes 3 capítulos (9.30-31 cp. 10.11-17). No começo desta carta, Paulo afirmou que o Evangelho era o poder de Deus para salvação de judeus e gentios (1.16 e 17). Que todos pecaram e carecem da glória de Deus (3.23). Deus não faz acepção de pessoas (2.11). Ele não é Deus somente de judeus, mas também de gentios (3.29). Paulo lembrou que Abraão era um gentio incircunciso quando foi chamado, tendo sido justificado por conta de sua fé e não por obras, para a vir a ser o pai de todos os que creem (4.11). Ele foi enfático quando afirmou que os herdeiros da promessa não são os da lei, nem os filhos naturais, mas, sim, os filhos espirituais, herdeiros da mesma fé do Pai Abraão, quer sejam judeus ou gentios (4.11-17). E afirmou também que ninguém será justificado por obras da lei (3.20), pois a salvação de Deus é alcançada unicamente por meio da fé no Messias, que é Jesus (3.22). Mas os judeus, como nação, rejeitaram a Cristo (10.21; cf. Jo 1.11). Os ramos naturais foram cortados e em seu lugar foram enxertados os ramos da oliveira brava, uma referência aos gentios, ou seja, a todos os demais povos (11.17-23).

Portanto, Paulo havia demonstrado a ineficácia de tudo aquilo que um judeu costumava se orgulhar: ser filho natural de Abraão, a circuncisão e a lei. Ele havia abandonado a confiança em tudo isto, considerando estas coisas como refugo para ganhar a Cristo (Fp 3.8). Ele havia descoberto que “a circuncisão não têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo amor” (Gl 5:6).

Por conta disto, muitos judeus, indignados, estavam acusando Paulo de renegar o seu próprio povo e de ensinar que as promessas de Deus feitas a Israel não eram verdadeiras, firmes e confiáveis. Teria Deus se esquecido de suas promessas feitas a Israel? Tais promessas não deveriam necessariamente terem de se cumprir no Israel nacional?

Paulo inicia sua defesa manifestando sua tristeza em ver a grande maioria de seus compatriotas rejeitando o Messias, e, também demonstra um amor sacrificial por seu povo (v. 3), a semelhança de Moisés que pediu a Deus que perdoasse um grave pecado de Israel, dizendo: “Mas agora, eu te rogo, perdoa-lhes o pecado; se não, risca-me do teu livro que escreveste” (Ex 32.32).  Paulo faz questão de reconhecer Israel como povo escolhido ou adotado por Deus, que teve o privilégio de receber a glória, as alianças, a lei, o culto e as promessas, sendo a raiz da qual descende o Cristo!

As promessas que Deus fez a Israel não irão se cumprir? (9.6-13)

Mas, se é assim, por que é que a nação foi rejeitada? Seria isto justo? As promessas que Deus fez a Israel não irão se cumprir? Deixou Deus de ser fiel a sua Palavra? Paulo começa a responder a tais questões de modo claro e direto: “E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas” (v.6). Repare que a questão gira em torno da eleição do povo de Israel como povo de Deus e de como, na verdade, se processa a filiação de indivíduos a este povo. Paulo chama à atenção para a diferença que existe entre a Nação de Israel e o Verdadeiro Israel espiritual, entre os filhos naturais e os filhos da promessa. O Israel de Deus foi eleito, mas os verdadeiros israelitas são os filhos da fé de Abraão. De modo que os que não possuem esta fé são excluídos desta comunidade a despeito de serem descendentes naturais de Abraão.

Paulo argumenta que a promessa de Deus não falhou, pois ela jamais foi dirigida a todos os descendentes naturais de Abraão. Os judeus estavam errados em pensar que todos os filhos de Israel eram, de fato, filhos da promessa. Pois, Abraão teve dois filhos, mas apenas Isaque herdou a promessa (9.7). Isaque, por sua vez, também teve dois filhos, mas apenas Jacó foi escolhido para ser o patriarca do povo de Israel (9.11-13). E, dos filhos de Israel, a maioria pereceu no deserto devido a incredulidade (Hb 3.11-18), e é sabido que nos dias do rei Acabe, haviam apenas 7 mil fiéis que não se dobraram diante de Baal (11.4; 1Rs 19.18). De modo que, desde os dias do Antigo Testamento, as promessas feitas a Abraão começaram a se cumprir apenas em uma parcela de seus descendentes. Paulo lembra uma profecia de Isaías que reforça esta tese: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo” (9:27 cf Is 10.22).

Portanto, o povo de Israel foi eleito, mas não os judeus individualmente e nem automaticamente por serem da linhagem de Abraão (9.6).  A salvação não se dá por ser descendente natural de Abraão (9.7) e nem tampouco através da lei (9.31,32 e 10.3,4). Os judeus devem crer no Messias para serem salvos, tornando-se parte do remanescente de Israel, que agora é também chamado de Igreja e de o Israel de Deus (Gl 6.16), que é a continuidade daquele povo de propriedade exclusiva de Deus, congregando, em um só Corpo, judeus e gentios crentes em Cristo (9.25-26; cf. 1Pe 2.9, 10 e Ef 2.11-22). Há um só Deus, um só Senhor, e um só rebanho (Jo 10.16), uma só Oliveira (Rm 11.17-24)! As promessas feitas a Israel estão se cumprindo em Cristo e em sua Igreja!

“Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (9.13)

Os calvinistas interpretam Romanos 9 de modo a contradizer todo o ensino bíblico a respeito do amor de Deus. Por exemplo: o texto: “Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” é interpretado como se Deus realmente tivesse odiado a Esaú e a todos os não eleitos de modo totalmente arbitrário, antes mesmo de que viessem a existir. Tal conclusão entra em choque direto com o ensino de inúmeras passagens da Bíblia que declaram que “Deus é amor” e entra também em flagrante conflito com o caráter de Deus revelado em Jesus Cristo.

No entanto, o termo “aborreci” significa um repúdio relativo semelhante ao que encontramos no seguinte texto bíblico: “Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14.26). Sabemos muito bem que foi o próprio Esaú quem desprezou o seu direito de primogenitura, perdendo assim o privilégio de ser o pai da linhagem da qual nasceria o Salvador do Mundo.

Não se trata aqui de salvação ou perdição pessoal ou dos descendentes. Mais tarde, observamos que Esaú foi misericordioso para com o seu irmão. Seria isto um sinal da graça de Deus sobre sua vida? Em todo caso, não podemos afirmar que tenha perdido a sua alma. Muitos ou alguns de seus descendentes podem ter exercido fé em Deus a semelhança do Pai Abraão. E, quanto a Israel, muitos de seus filhos se desviaram após outros deuses.

Notar também que Jacó e Esaú representam Israel e Edom. Israel, e não Edom, foi escolhido para ser o povo de Deus herdeiro da promessa feita a Abraão. Edom é descendente de Abraão e Isaque tanto quanto seu irmão Israel.

O que Paulo quer demonstrar aqui é que a rejeição atual de boa parte dos descendentes de Abraão não é apenas possível, como já havia ocorrido no passado, como se vê no caso de Esaú e seus descendentes.

Através do profeta Obadias, Deus esclareceu o real motivo de sua ira contra os Edomitas: “Por causa da violência feita a teu irmão Jacó, cobrir-te-á a vergonha, e serás exterminado para sempre… tu não devias ter olhado com prazer para o dia de teu irmão, o dia da sua calamidade; nem ter-te alegrado sobre os filhos de Judá, no dia da sua ruína; nem ter falado de boca cheia, no dia da sua angústia… não devias ter parado nas encruzilhadas, para exterminares os que escapassem; nem ter entregado os que lhe restassem no dia da angústia.” (Ob 1.10-14). Precisamos sempre associar a presciência de Deus com a eleição e reprovação divina, pois Deus é amoroso e justo!

E quando os calvinistas interpretam que a escolha de Jacó e a rejeição de Esaú como algo arbitrário que nada tem ver com a presciência de Deus, acabam por tropeçar no próprio ensino de Paulo que, no capítulo anterior de Romanos, escreveu “porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (8.29) e também no texto de Pedro: “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai” (1Pe 1.2).

Não podemos confundir predestinação com presciência. O conhecimento prévio que Deus tem das coisas não é o que as tornam assim existentes, antes, porque elas serão desta ou daquela maneira, Deus as conhece antecipadamente. Deus conhece as pessoas mesmo antes delas nascerem. Ele sabe como elas reagirão diante das variadas circunstâncias da vida. Deus as escolhe baseado em sua presciência. Isto não nega o livre arbítrio do homem, pelo contrário, o reafirma ainda mais. Pois uma eleição baseada na presciência divina leva em consideração a autonomia dos seres humanos. Deus é soberano, e em sua soberania, determinou que o homem fosse um ser dotado da capacidade de escolher, sendo, portanto, responsável por seus atos. Seria completamente sem cabimento existir um dia de juízo final se as pessoas não tivessem tido a mínima possibilidade de escolha, se cada um tivesse apenas cumprido o papel teatral que lhe foi prescrito, como um fantoche nas mãos do inevitável destino sobre eles decretado.

Para reforçar a tese de que a promessa nada tem a ver com a descendência carnal de Abraão, Paulo lembra que Esaú, foi rejeitado como povo herdeiro da promessa ainda que fosse o preferido de seu pai, Isaque. Deus tem os seus motivos e enxerga bem melhor do que Isaque. Deus é livre para escolher e decidir como e através de que povo ou povos se dará o cumprimento de suas promessas.

Observe que o tema da eleição individual não está na mente de Paulo, mas, sim, o da eleição dos judeus para ser o povo escolhido, a rejeição da nação de Israel, e a escolha dos gentios em seu lugar. Esaú e Jacó são os representantes de dois povos: Israel e Edom. O indivíduo Esaú jamais serviu ao indivíduo Jacó (9.12). Tal profecia se cumpriu posteriormente na história dos dois povos que deles descenderam.

Portanto, o que Paulo quer deixar claro aqui é que o conceito de povo de Deus é algo que transcende a etnia hebraica. Não basta ser descendente físico de Abraão, é preciso ser descendente espiritual, como o foram Raabe e Rute! Não importa se você é judeu ou gentio, pois os verdadeiros herdeiros da promessa de Abraão são os que exercem fé no Messias que é sobre todos, Deus Bendito Eternamente!

“Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia” (9.15)

Outro texto mal interpretado por eles é o que diz “terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia” (Rm 9.15), pois, baseados nele, afirmam que Deus ama e tem misericórdia apenas dos eleitos. Mas isto contrariaria a afirmação do próprio Paulo, que, na conclusão deste assunto, disse que Deus tem misericórdia de todos (11.32). Lembre-se também que, um pouco antes, ele proclamou a rica misericórdia de Deus para com todos os que o invocam (10.11). Tal interpretação também colide com diversas outras passagens bíblicas que falam da bondade e da misericórdia de Deus para com todos os homens, como o Salmo 145.9, que diz: “O Senhor é bom para todos, e as suas misericórdias estão sobre todas as suas obras”.

Portanto, as promessas de Deus feitas a Abraão estão, sim, sendo cumpridas no Israel de Deus, que é composto por judeus e gentios que creem em Cristo. Deus tem direito de rejeitar a qualquer povo, mesmo os judeus, por sua incredulidade, e eleger qualquer outro que ele quiser em seu lugar. Deus é livre para estabelecer a fé como a condição para a salvação de judeus e gentios.

“Não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (9.16)

E, quanto a Romanos 9.16, “assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia”, a conclusão dos calvinistas é de que Deus usa de misericórdia apenas para aqueles que ele escolheu de antemão salvar. Tal interpretação contradiz os textos que afirmam que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10.34 e Rm 2.11) e entra em colisão com todos aqueles que falam sobre o amor de Deus por todas as pessoas. Um amor tão grande pelo mundo, termo kosmos que no Evangelho de João sempre representa toda a humanidade, a ponto de o levar a oferecer o Seu Filho Unigênito para a salvação de todos que creem (Jo 3.16). A expiação ilimitada tem sido defendida pela ampla maioria dos teólogos da história da Igreja, até mesmo Calvino reconheceu que Jesus morreu em favor de todos os homens! (Calvin, John. Commentary on John’s Gospel. Grand Rapids: Baker Book House, 1949, vol. 1, p. 64 e 125).

Expiação limitada aos eleitos não é possível porque a Bíblia diz que Jesus “é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1Jo 2:2). Observa-se aqui que “todo o mundo” não pode de maneira alguma significar “mundo dos eleitos”, pois apresenta-se em contraste com “não somente pelos nossos”.  Porque é dito que “Cristo morreu pelos nossos (Igreja) pecados” (1 Co 15:3) e a eficácia do Seu sangue é poderosa para salvar todos os seres humanos” (1Jo 2.2). “Porque: “a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus; a saber: aos que creem no seu nome” (Jo 1.12). Porque: “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 10:13). Porque Jesus, “o Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”,  estendeu este sincero convite as multidões: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8:34) e também: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28).

“Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.11-12). Porque Deus não tem prazer na morte do ímpio, pois seu desejo é que se converta e viva (Ez 18.23). Porque Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2.4) e “o qual a si mesmo se deu em resgate por todos” (1Tm 2.6). Porque Deus “não quer que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se” (2Pe 3.9). Jesus “provou a morte por todos” (Hb 2.9). E Paulo afirmou que Jesus morreu por todas as pessoas, inclusive por aquelas que perecem, quando exortou aos cristãos de Roma, dizendo: “Não faças perecer por causa da tua comida aquele por quem Cristo morreu” (Rm 14.15).

O coração endurecido de Faraó (9.17,18)

Paulo usa a figura de faraó para retratar Israel. Assim como faraó, através da dureza de seu coração, serviu como um instrumento para o Êxodo milagroso do povo de Israel, produzindo a glória de Deus por toda a terra, assim também a dureza de coração de Israel propiciou a redenção dos gentios (11.11).

Deus também pode endurecer o coração de quem Ele achar por bem fazê-lo, sem que isto implique em injustiça ou em uma atitude meramente arbitrária. Não é dito que Deus endureceu o coração de Faraó desde a eternidade. Tal endurecimento é melhor compreendido como a entrega da pessoa a si mesma: “Por isso também Deus os entregou às concupiscências de seus corações” (Rm 1:24a).

Lembremos que antes do relato do Êxodo dizer que Deus endureceu o coração de faraó, por 5 vezes é dito que foi o próprio faraó quem foi endurecendo o seu próprio coração de maneira gradativa (Ex 7.13; 7.22; 8.15; 8.32; 9.7). Paulo sabe que os judeus aceitam com facilidade o fato do endurecimento do coração de faraó, mas que não reconhecem que a mesma incredulidade que levou a rejeição de faraó também está levando a rejeição dos judeus como povo de Deus. O povo uma vez favorecido e liberto das garras de faraó, deixa de ser favorecido quando se desvia da fé de Abraão e segue o erro, a obstinação e a incredulidade de faraó. Deus endurece a quem quer. E Ele quer endurecer aqueles que endurecem a si mesmos.

Portanto, “se, hoje, ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hb 3.15). Sem fé é impossível agradar a Deus. A verdadeira circuncisão é a do coração e os verdadeiros filhos de Abraão são aqueles que abraçaram a Promessa com fé. É bom observar que a citação do endurecimento de Faraó tem a ver com o seu papel histórico como líder da nação Egípcia no conflito com a nação de Israel e não diz respeito a sua salvação pessoal.

Vasos de ira e vasos de misericórdia

Paulo  entraria em contradição consigo mesmo se por “vasos de ira” e “vasos de misericórdia” estivesse ensinando que, por conta de um decreto eterno de Deus, apenas uma parte da humanidade seria salva, enquanto que a grande maioria restante estaria irremediavelmente condenada a perdição, pois, como foi dito, no final do capítulo 11, ele fala sobre a possibilidade de salvação dos rejeitados e de perdição dos que se encontram salvos, em decorrência da atitude de fé e não de uma prévia eleição. É por isto que Paulo enfatiza a relevância da pregação do Evangelho para a salvação de todos os que creem em Cristo: “Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?  E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (10.12-15).

Paulo não usa a expressão “vasos de ira” para discorrer sobre predestinação, mas para falar da rejeição temporária de Israel por conta de sua incredulidade, o que, de certa forma, favoreceu a salvação dos gentios, contribuindo assim para os propósitos divinos. Deus não nos destinou para a ira (1Ts 5.9). Deus não criou ninguém para a perdição, nem nós, nem o povo de Israel e nem mesmo os ninivitas (Jn 4.11). “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e coração impenitente, acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo o seu procedimento: a vida eterna aos que perseverando em fazer o bem procuram glória, honra e incorruptibilidade; mas ira e indignação aos facciosos, que desobedecem à verdade e obedecem à injustiça. Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego; glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro e também ao grego. Porque para com Deus não há acepção de pessoas.” (Rm 2.4-11).

É preciso sempre lembrar que  a intenção de Paulo aqui é a de esclarecer que a promessa não é para os filhos carnais de Abraão, mas para os herdeiros daquela mesma espécie de fé de Abraão. Gentios crentes são adotados como “filhos da promessa”, enquanto os “filhos da carne” são rejeitados por conta da sua incredulidade (9.8 cf 11.17). Agora, tal rejeição não é, de maneira alguma, determinista, fatalista ou definitiva, mas apenas contingencial, pois, mais adiante, Paulo fala da esperança que tem na conversão de judeus, pelo menos de alguns mais (11.14), e arremata dizendo: “Eles também, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo”! (11.23). Portanto, vasos de desonra podem ser transformados em vasos de honra: “Se alguém se purificar dessas coisas, será vaso para honra, santificado, útil para o Senhor e preparado para toda boa obra” (2Tm 2.21).

Assim também vemos suceder aos gentios que, anteriormente, eram “filhos da ira”, mas que alcançaram salvação pela fé em Jesus Cristo e se tornaram “filhos da promessa”, herdeiros de Deus! (Ef 2.3-6). Mas os gentios crentes não devem se sentir superiores aos judeus incrédulos, pois a fatura ainda não está definida, nem de um lado e nem de outro. Aquele que está em pé, cuide para que não caia (1Co 10.12).

Aos que Paulo chamou de “vasos de misericórdia” preparados de antemão para a glória (9.23, 24), ele adverte: “Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado” (Rm 11.22). Em sua primeira carta aos Coríntios, Paulo fala deste risco em termos bem pessoais: “Mas esmurro o meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado” (1Co 9:27). Tal esforço de Paulo por uma vida de santidade para não ser reprovado não faria o menor sentido se ele acreditasse que sua alma já estivesse predestinada para a salvação.

Portanto, para Paulo, o destino das pessoas não está traçado. Enquanto o destino do Povo de Deus está definido “todo o Israel será salvo”, o destino dos indivíduos está condicionado a fé no Messias que lhes permite fazer parte deste Israel de Deus. Sendo portanto, necessário estar em Cristo pela fé, e nele permanecer fiel até o fim (Jo 15.1-6; Mt 24.13 e Ap 2.26).

A fé vem pela pregação e não pela eleição incondicional (10.17)

Ainda que Paulo afirme que os judeus “tropeçaram na pedra de tropeço” (9.32), Ele ainda trabalhava para ver a salvação de mais judeus (11.14, cf 1Co 9.20-27) e também orava neste sentido (10.1), pois não via o endurecimento de Israel como algo definitivo (11.25). Ensinava que judeus incrédulos que são contrastados com gentios e judeus crentes (9.24), a quem ele se referiu como “vasos de ira” (9.22), podem ser transformados em “vasos de honra” (2Tm 2.20,21), pois os ramos que foram cortados podem voltar a ser enxertados caso abandonem a incredulidade (11.20-24). E é por isto também que Paulo ensina que “a fé vem pela pregação” e não pela eleição incondicional (10.17).  De outra sorte, toda pregação seria vã, pois seria desnecessária para aqueles que são eleitos, e inútil para os destinados a perdição.  E a exortação para salvar e arrebatar as almas que estão à caminho do fogo da perdição (Jd 1.23) seria totalmente descabida, pois, segundo o calvinismo, as almas dos eleitos jamais estariam sujeitas ao risco do fogo do inferno e a dos não eleitos jamais poderiam ser salvas e arrebatadas do fogo para o qual estão inexoravelmente destinadas.

Eleição condicional dos indivíduos

Se observarmos bem, notaremos que a própria eleição de Abraão não foi incondicional, pois ele foi justificado por conta de sua fé, que se apresenta aí como condição. Além disto, temos também que Abraão foi provado para depois disto ser confirmado (Gn 22.1-19). Tal prova não faria sentido se a eleição fosse incondicional.

Quando Paulo discorre sobre como a salvação se processa na vida dos indivíduos, ele sempre diz que se dá por intermédio da fé (Rm 9.30-31 cp. 10.11-17). Ele deixa claro que os ramos naturais, que foram cortados por sua incredulidade, podem voltar a ser enxertados se vierem a crer, e os que, atualmente, creem podem vir a ser cortados se derem lugar a incredulidade (11.20-24). O que reforça a tese de que não existem indivíduos definitivamente eleitos para salvação, a não ser da perspectiva da presciência divina (Rm 8.29). A eleição individual está condicionada a fé em Cristo. Embora, Deus conheça os indivíduos que farão definitivamente parte do povo escolhido, estes tais, também denominados de escolhidos, ou predestinados segundo a presciência de Deus, não são assim denominados devido a uma eleição incondicional, mas porque acolheram com fé o Evangelho.

A expressão: “Deus nos escolheu em Cristo” (Ef 1.3a) diz respeito a eleição corporativa da Igreja em Cristo. A Igreja foi escolhida em Cristo antes mesmo da fundação do mundo. A Igreja estava inclusa na escolha de Abraão: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3). A promessa foi feita a Abraão e ao seu descendente que é Cristo, O Eleito por excelência, do qual toda a eleição é derivada e dependente. Os da fé é que são verdadeiramente filhos de Abraão. Cristo é o Messias de Israel, os que são de Cristo pertencem ao verdadeiro Israel.

Portanto, a eleição de indivíduos para a salvação está condicionada a sua associação e permanência no Corpo Eleito de Cristo que é a Igreja. Deus conhece os que irão crer e perseverar em sua fé. Neste pré-conhecimento é que se baseia a predestinação individual. Em Romanos 9, é dito que Deus endurece os homens, mas nunca que Ele os predestinou deste a eternidade para a dureza de coração, e nem também que tal endurecimento é total e definitivo, pois Paulo disse: “veio o endurecimento em parte a Israel, até que…” (11.25); É dito também que Deus tem o direito de fazer vasos de ira, mas jamais que Ele predestinou pessoas para serem vasos de ira, pois, como já dissemos anteriormente, por vasos de ira, Paulo se refere aos judeus incrédulos, que, segundo ele mesmo afirmou, podem vir a se converter em vasos de honra, abandonando a incredulidade e abraçando a fé (11.23).

Para Paulo, a fé é que ocupa o papel determinante na salvação ou perdição dos indivíduos: “Bem! Pela sua incredulidade, foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, também não te poupará. Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado. Eles também, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo” (11.20-23).

O destino da Igreja é certo, pois sabemos que “as portas do inferno não prevalecerão contra a ela” (Mt 16.18), e seu futuro glorioso também já foi contemplado na visão Apocalíptica de João (7.9-17; 14.1-5), e Paulo diz que ela será apresentada diante de Cristo, “como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e inculpável” (Ef 5.27); mas o destino dos indivíduos não está definido, pois aos membros da Igreja, Paulo exorta: “Mas agora ele os reconciliou pelo corpo físico de Cristo, mediante a morte, para apresentá-los diante dele santos, inculpáveis e livres de qualquer acusação, desde que continuem alicerçados e firmes na fé, sem se afastarem da esperança do evangelho, que vocês ouviram e que tem sido proclamado a todos os que estão debaixo do céu. Esse é o evangelho do qual eu, Paulo, me tornei ministro” (Cl 1.22-23). Enquanto é garantido que a Igreja será apresentada santa e inculpável diante de Deus, os membros precisam continuar alicerçados e firmes, sem se afastarem da esperança do evangelho, para poderem garantir sua participação no destino glorioso da Igreja.

Em 1 Coríntios 10, Paulo usa o exemplo histórico de Israel como exemplo para a Igreja. Ele diz que, embora todos os israelitas tenham experimentado a graça libertadora de Deus, a maioria apostatou-se da fé e pereceu no deserto. Paulo diz que o perigo da apostasia é real para os crentes em Cristo, por isto adverte aos que se encontram firmes em Cristo: “Aquele que está em pé, cuide para que não caia” (1Co 10.12, compare com Rm 11.22).

“Todo o Israel será salvo” (11.26)

Por que é que Paulo fala da esperança que tem de que alguns de seus compatriotas sejam salvos (11.14) e, logo a seguir, proclama que todo o Israel será salvo (11.26)? Serão salvos mais alguns israelitas ou todo o Israel? Certamente, Paulo não está se contradizendo aqui. Paulo profetiza um reestabelecimento de Israel, uma salvação futura, que ele denomina de plenitude (11.12), mas tal “plenitude” não significa a salvação da nação como um todo, ou de todos os judeus, pois ele claramente indica que sua esperança tem a ver com a salvação de “alguns” mais até que se complete a plenitude do número de judeus que serão salvos, do mesmo modo como ele aqui também fala da plenitude dos gentios “… veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios. E, assim, todo o Israel será salvo” (11.25b, 26a).

Precisamos entender que a expressão “todo Israel”, além de “todo o remanescente de Israel” pode também significar a Igreja composta pela plenitude dos remanescentes salvos de Israel e da plenitude de salvos de todas as demais nações, tribos e povos (Ap 7.9). Paulo já havia citado a profecia de Isaías que diz que apenas um remanescente fiel de Israel será salvo (9:27 cf Is 10.22). Nos dias do Novo Testamento, o remanescente de Israel era composto originalmente por apóstolos e discípulos judeus que receberam a Jesus como Messias,  acrescidos de gentios que também passaram a abraçar a fé em Cristo. “Todo o Israel” significa a plenitude da Igreja que é composta por judeus e gentios que serão salvos em Cristo. Pois a Igreja é o Israel espiritual de Deus (Gl 6.16) e povo de propriedade exclusiva de Deus (1Pe 2.9), composta por judeus e gentios que creem em Jesus como Messias (Ef 2.11-22). O salão do grande banquete estará cheio (Mt 22.10)! A Igreja estará plena no final. Por enquanto, cabe a nós a missão de evangelizarmos judeus e gentios até que cheguemos a tal plenitude que apenas por Deus é conhecida.

Eleição para tarefa

Temos diversos exemplos de indivíduos sendo eleitos para uma função ou missão o que não é o mesmo que eleição para salvação. Saul e Salomão foram eleitos para serem reis de Israel, mas, tudo indica, que acabaram apostatando-se da fé no final de suas vidas. Jesus escolheu doze homens para a função de apóstolos, mas o Iscariotes fracassou,  traiu a Cristo e cometeu suicídio.

A Própria nação de Israel foi escolhida para desempenhar um papel histórico. No início de Romanos 9, Paulo reconhece o valor do papel de Israel no projeto de Deus, mas sem que isto implicasse em eleição ou predestinação para a salvação, pois mais adiante é dito que foram cortados por sua incredulidade. Observe que a eleição para tarefa é a que Paulo está destacando aqui com as seguintes palavras:  “Deles é a adoção de filhos; deles é a glória divina, as alianças, a concessão da lei, a adoração no templo e as promessas. Deles são os patriarcas, e a partir deles se traça a linhagem humana de Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém.”(Rm 9.4-5)

Indivíduos são escolhidos para colaborarem com o plano de Deus para Israel: Os patriarcas são escolhidos para darem início a este povo (Ne 9.7; Rm 9.7, 13). Moisés é escolhido para ser um veículo de libertação e de formação e organização da nação (Sl 106.23), e, até mesmo governantes gentios foram escolhidos para cumprir o plano divino na vida da nação de Israel, como Faraó (Rm 9.17) e Ciro (Is 45.1).

Romanos 9 e a Parábola das Bodas

Certamente, quando escrevia este trecho de Romanos, Paulo tinha em mente a Parábola das Bodas (Mt 22.1-14) que fala da rejeição de Israel não por conta de predestinação, mas por pura incredulidade. O rei não predestinou quem iria participar definitivamente da festa. Os convidados originais deixaram de participar por não cumprirem a condição de aceitarem o convite, por desprezo e, em alguns casos, até por ódio e maldade (22.3,5 e 6). E olha que o convite foi insistente, mesmo após a recusa inicial: “E enviou ainda outros servos” (v. 4). “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quiseste!” (Mt 23.37).

Então, o convite foi estendido a todos, sem exceção, “bons e maus” (v. 10), pois é um convite da graça (Is 55.1; Mt 11.28 e Rm 5.8) . A Sala do Banquete ficou repleta de convidados! Algo comparável aquela tal plenitude de salvos de que Paulo também fala  em Romanos 11.25,26 e que vemos também futuramente realizada na visão de Apocalipse 7.9.

Mas, um dos convidados ousou apresentar-se diante do Rei sem as vestes nupciais que por ele mesmo haviam sido gratuitamente oferecidas. Tal descaso para com as vestes nupciais é coisa séria, o que ofende ao Rei tanto quanto a atitude daqueles que, inicialmente, desprezaram o seu convite. As vestes aqui simbolizam a justiça divina não apenas imputada como também comunicada. Ou seja, não apenas a justificação, mas também a santificação sem a qual ninguém verá o Senhor (Hb 12.14). Por exemplo, o Pai abraça ao Filho Pródigo, que se encontra em farrapos, sujo e arruinado, mas graciosamente lhe oferece um bom banho, roupas novas, sandálias para os pés e um anel de filho! O filho deve receber o banho, as roupas e tudo o mais que o pai lhe oferece para andar de modo digno e apropriado. Além do perdão, Deus está oferecendo a todos um novo coração (Ez 36.26) e a graça de se tornarem participantes da natureza divina (2Pe 1.4), para serem feitos filhos de Deus (Jo 1.12). O convidado deve despir-se de sua velha e surrada vestimenta (Cl 3.8), para vestir a nova que lhe é oferecida: “mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências” (Rm 13.14).

As Palavras de Paulo aos judeus que rejeitaram o Evangelho estão em perfeita sintonia com o tema que estamos tratando: “Então Paulo e Barnabé lhes responderam corajosamente: ‘Era necessário anunciar primeiro a vocês a palavra de Deus; uma vez que a rejeitam e não se julgam dignos da vida eterna, agora nos voltamos para os gentios’” (At 13:46).

Todos foram chamados, mas, escolhidos foram apenas os que receberam o convite com fé. Estes não exerceram fé porque foram previamente escolhidos, mas foram escolhidos por terem exercido fé a ponto de atenderem apropriadamente ao convite nos termos estabelecidos pelo Rei.

O paralelo com Romanos 9-11 é evidente: Ambos os textos falam da rejeição de Israel (Mt 22.3-6; Rm 9.31 e 32; 11.20). Ambos apontam a incredulidade como  causa de tal rejeição (Mt 22.3,5,6; Rm 9.31,32; 10.3,4,16,17,21 e 11.20). Ambos os textos tratam do tema da eleição, estabelecendo a fé como a condição para estar e permanecer na comunidade escolhida para as Bodas do Filho (Mt 22.3-6,11; Rm 9.30-31 cp. 10.11-17). Tanto em um texto como em outro, vemos que a fé de cada indivíduo não é uma decisão falsa onde tudo já teria sido decidido de antemão pelo ser supremo (Mt 22.3; Rm 9.33; 10.4,8,11,16-21). O destino dos convidados não está previamente definido (Mt 22.3,5, 11 e 14; Rm 11.20-23). Ambos os textos falam da bondade e também da severidade de Deus (Rm 11.22; Mt 22.4,7,9,13). O convite foi feito a todos (Mt 22.9; Rm 10.18) e Deus usou de misericórdia para com todos (Mt 22.3,4,9 e 14; Rm 11.32); “Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (Rm 10.12;  Mt 22.9 e 14). A Parábola conta que aqueles que recusaram o convite receberam mais que uma oportunidade (Mt 22.4; Rm 10.21), e Paulo ensina que se os judeus “não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo” (Rm 11.23, cp. Rm 10.1). Ambos os texto falam que “nem todos obedeceram ao Evangelho” (Mt 22.3-6;  Rm 10.16), tal recusa não foi por predestinação, falta de oportunidade ou incapacidade, mas, simplesmente, porque “não quiseram” (Mt 22.3; Rm 11.21). Ambos os textos também falam do severo juízo de Deus sobre os incrédulos que desprezam a sua graça (Mt 22.7,13; Rm 11.10, 20-22).

Veja o vídeo


Bibliografia

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Autor: José Ildo Swartele de Mello é bispo do Concílio Geral Brasileiro e presidente mundial do Concílio de Bispos da Igreja Metodista Livre. É o atual presidente da Fraternidade Wesleyana de Santidade e pastor da imel de Mirandópolis.

Nota do CACP: Nem todos os teólogos do CACP corroboram com a visão arminiana. Temos as duas visões descritas aqui no site – tanto Calvinista como Arminiana.

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