Será que os dias da criação tinham vinte e quatro horas?
Boa parte da disputa entre os defensores das teses da «terra jovem» e da «terra antiga» baseia-se na interpretação da extensão dos “dias” de Gênesis 1. Os defensores da terra antiga propõem que os seis “dias” de Gênesis 1 se referem não a períodos de vinte e quatro horas, mas a longos períodos de tempo, milhões de anos, durante os quais Deus executou as ações criadoras de Gênesis
Essa proposta provocou um acalorado debate com outros evangélicos, que ainda está longe de ser resolvido definitivamente para um lado ou para outro.
Em favor da tese de considerar os seis dias como longos períodos há o fato de que a palavra hebraica yôm, «dia», é às vezes usada para se referir não a um dia de vinte e quatro horas, mas a um período mais extenso. Vemos isso quando a palavra é usada, por exemplo, em Gênesis 2.4, “No dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” (ias), oração que se refere a toda a obra dos seis dias de criação. Entre outros exemplos em que a palavra dia significa um período indeterminado de tempo encontram-se: Jó 20.28 (“no dia da ira de Deus»); Salmos 20.1 (“O SENHOR te responda no dia da tribulação»); Provérbios 11.4 (“As riquezas de nada aproveitam no dia da ira»); 21.31 (“O cavalo prepara-se para o dia da batalha»); 24.10 (“Se te mostras fraco no dia da angústia, a tua força é pequena»); 25.13 (“no tempo [yclnu] da ceifa»); Eclesiastes 7.14 (“No dia da prosperidade, goza do bem; mas, no dia da adversidade, considera em que Deus fez tanto este como aquele»); muitas passagens que se referem ao “Dia do SENHOR” (como Is 2.12; 13.6, 9;Jl 1.15; 2.1; Sf 1.14); e muitas outras passagens do Antigo Testamento que profetizam tempos de juízo e bênçãos. Uma concordância mostra que esse é um sentido freqüente da palavra dia no Antigo Testamento.
Outro argumento a favor de que esses «dias» representam um período longo é o fato de o sexto dia incluir tantos eventos que só poderia mesmo ter mais de vinte e quatro horas. O sexto dia da criação (Gn L24-31) contém a criação dos animais e do homem e da mulher (“homem e mulher os criou”, Gn 1.27). Foi também no sexto dia que Deus abençoou Adão e Eva., dizendo-lhes: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1.28). Mas lemos significa que o sexto dia incluí a criação de Adão, a introdução de Adão no Jardim do Éden para cultivá-lo e guardá-lo e as orientações divinas sobre a arvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.15-17), a apresentação dos animais ao homem, para que ele lhes atribuísse nome (Gn 2.18-20), o fato de não se achar uma auxiliadora adequada a Adão (Gn 2.20) e o pesado sono que Deus impôs a Adão para criar Eva a partir da costela dele (Gn 2.21-25), A natureza finita do homem e o número incrivelmente grande de animais criados por Deus exigiriam, por si sós, um período muito mais longo do que apenas parte de um Único dia para a ocorrência de tantos acontecimentos — pelo menos essa seria uma compreensão «comum» da passagem para os primeiros leitores, consideração que não deixa de ter importância num debate que muitas vezes enfatiza aquilo que uma leitura comum do texto pelos primeiros leitores os levaria a concluir. Se puder ser demonstrado pelas considerações contextuais que o sexto dia foi consideravelmente mais longo do que um dia comum de vinte e quatro horas, então será que o próprio contexto não favorece a acepção de um “período de tempo” de duração indeterminada para a palavra dia?
Ligada a essa consideração está mais uma. E importante notar que o sétimo dia não conclui com a frase «houve tarde e manhã, o sétimo dia». O texto diz apenas que Deus ‘descansou nesse dia [o sétimo] de toda a sua obra que tinha feito» e que “abençoou Deus o dia sétimo e o santificou» (Gn 2.2-3). Isso subentende a possibilidade, talvez a implicação, de que o sétimo dia ainda esteja em curso.Jamais terminou, mas é também um “dia” que, na verdade, equivale a um longo período de tempo (cf.Jo 5.17; Hb 4.4, 9-10).
Alguns já objetaram que, no Antigo Testamento, sempre que a palavra dia se refere a um período de tempo diferente do dia de vinte e quatro horas o contexto deixa isso bem claro, mas como o contexto não faz esse tipo de esclarecimento em Gênesis 1, devemos então supor que são dias normais. Mas a isso podemos responder que sempre que a palavra dia significa um período de vinte e quatro horas, o contexto também deixa isso claro. Caso contrário, não poderíamos saber que nesse contexto o dia equivale a um período de vinte e quatro horas. Portanto não se trata de uma objeção convincente. Simplesmente afirma que todos concordam que o contexto nos permite determinar qual sentido certa palavra assumirá quando tem vários significados possíveis.
Outra objeção é que a Bíblia poderia ter usado outras palavras se pretendesse significar um período mais longo do que as vinte e quatro horas de um dia. Contudo, se (como nitidamente é o caso os primeiros leitores soubessem que a palavra dia podia significar um longo período de tempo, então não haveria necessidade de usar outra palavra, pois o vocábulo yôm transmitia muito bem o significado pretendido. Além disso, era uma palavra bem apropriada a usar na descrição de seis períodos sucessivos de trabalho, mais um período de descanso, que assim determinaria o modelo de semana de sete dias que as pessoas adotariam.
Isso nos leva à pergunta original: qual o significado da palavra dia no contexto de Gênesis 1? O fato de a palavra necessariamente se referir a um período mais longo poucos versos adiante, na mesma narrativa (Gn 2.4), deve-nos precaver contra afirmações dogmáticas de que os primeiros leitores certamente sabiam que o autor estava falando de dias de vinte e quatro horas. Na verdade, ambos os sentidos eram comuns para os primeiros leitores dessa narrativa.
Ë importante perceber que aqueles que defendem a tese de que os seis “dias” da criação eram na verdade longos períodos não estão afirmando que o contexto demanda tal interpretação. Afirmam simplesmente que o contexto não especifica claramente um ou outro significado de dia, e se os dados científicos convincentes sobre a idade da terra, que provêm de muitas disciplinas diferentes e fornecem respostas semelhantes, levam-nos a aceitar que a terra tem bilhões de anos de idade, então essa possível compreensão de dia como um longo período de tempo talvez seja a melhor interpretação a adotar, Desse modo, a situação é algo parecida àquela enfrentada pelos primeiros a defender que a terra girava sobre o seu eixo e circulava em torno do sol. Eles não diriam que as passagens que afirmam que o sol «se levanta» ou “se põe» exigem que, nesses contextos, acreditemos num sistema solar heliocêntrico (que tem o sol como centro), mas que essa é uma interpretação possível dos textos, considerando que retratam apenas o ponto de vista do observador. As provas que a ciência extraiu da observação nos informam que essa é, na verdade, a maneira correta de interpretar tais textos.
Do outro lado dessa questão estão os argumentos em favor da interpretação de “dia” como um período de vinte e quatro horas em Gênesis 1:
1. Ë significativo que cada um dos dias de Gênesís 1 termine com uma expressão do tipo: “Houve tarde e manhã, o primeiro dia” (Gn 1.5). A frase “Houve tarde e manhã» é repetida nos versículos 8, 13, 19,23 e 31. isso parece implicar uma seqüência que determina um dia normal de vinte e quatro horas e indica que os leitores interpretariam assim o texto.
Esse é um forte argumento do contexto, e muitos o acharam convincente porem aqueles que defendem um período longo para esses “dias» poderiam contrapor: (a) que na verdade tarde e manhã não constituem um dia inteiro, mas somente o final de um dia e o início de outro; portanto a expressão pode simplesmente compor o modo como o autor nos relata que chegava ao final o primeiro dia da criação (ou seja, um longo período de tempo) e começava o “dia” seguinte;e (b) que os três primeiros “dias” da criação não poderiam ter sido determinados por tarde e manhã provocadas pela luz do sol sobre a terra, pois o sol só foi criado no quarto dia (Gn 1.14-19); assim, o próprio contexto mostra que “tarde e manhã” neste capítulo não faz referência às tardes e manhas comuns dos dias que conhecemos hoje. Assim o argumento que se baseia em “tarde e manha” embora dê talvez algum peso á tese das vinte e quatro horas, não parece desequilibrar a seu favor.
2. O terceiro dia da criação não pode ser muito longo, pois o sol só passa a existir no quarto dia, e as plantas não vivem muito tempo sem luz. Em resposta a isso pode se dizer que a luz que Deus criou no primeiro dia forneceu energia às plantas durante milhões de anos. Mas isso seria supor que Deus criou uma luz quase exatamente igual a do sol em termos de brilho e poder, sem ser no entanto o sol — urna sugestão excêntrica.
3. É difícil evitar a conclusão de que nos Dez Mandamentos a palavra dia significa um período de vinte e quatro horas:
Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e fa obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus;.., porque, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, a descansou; por isso, O SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou…
Certamente nesse texto o «dia” de sábado é um período de vinte e quatro horas. Mas então não nos vemos obrigados a dizer que o versículo 11, que no mesmo período gramatical diz que o Senhor fez os céus e a terra em «seis dias», usa dia no mesmo sentido? Esse é outro argumento de peso, que, levando em conta todos os fatores proporciona mais poder de persuasão à tese do dia de vinte e quatro horas. Mas novamente não é lá muito conclusivo por si só, pois é possível contrapor que os leitores sabiam (com base numa leitura cuidadosa de Gn 1-2) que esses dias eram periodos
determinados de tempo, e que o mandamento do sábado meramente dizia ao povo de Deus que, assim como ele seguiria um modelo “seis por um» na criaçãc seis períodos de trabalho seguidos por um período de descanso), também eles deveriam seguir esse modelo (seis dias de trabalho seguidos por um dia de descanso; seis seguidos por um ano sabático de descanso, como em Êx 23.10). De fato já na frase seguinte dos Dez Mandamentos, “dia” significa «um período de tempo “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR TEU Deus te dá” (Êx 20.12). Certamente aqui a promessa não é de dias comuns «prolongados algo como dias de vinte e cinco ou vinte e seis horas!), mas de que o período de prolongue na terra.
4. Os que argumentam em favor de um “dia” de vinte e quatro horas também perguntam se em algum outro trecho da Biblia hebraica a palavra “dias”, no plural, especialmente quando acompanhada de um número (como em “seis dias”), se refere a qualquer outra coisa que não dias de vinte e quatro horas. Esse argumento, todavia, não é convincente, pois: (a) encontra-se em Exodo 20.12 um caso de “dias”, no plural, que significa períodos de tempo, caso esse discutido no parágrafo anterior; e (b) se a palavra no singular assume claramente o sentido de “período de tempo” (e de fato assume, como todos admitem), então os leitores certamente compreenderiam o significado desses seis “períodos” de tempo, ainda que o Antigo Testamento não apresentasse em nenhum outro trecho exemplo desse sentido. O fato de que essa expressão não aparece em nenhum outro lugar pode significar simplesmente que não houve outra oportunidade de usá-la.
5. Quando Jesus diz “Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher” (Mc 10.6), ele dá a entender que Adão e Eva não foram criados bilhões de anos depois do princípio da criação, mas no princípio desta. Esse argumento também tem alguma força, mas os defensores da terra antiga podem responder que Jesus está apenas se referindo ao conjunto de Gênesis 1-2 como o “princípio da criação”, em contraposição ao argumento das leis mosaicas em que os fariseus se baseavam (v. 4).
Contrapondo uma resposta a cada um dos cinco argumentos em prol do dia de vinte e quatro horas, mas essas respostas talvez não convençam os seus defensores. Eles responderiam assim à idéia do “período de tempo”: (1) logicamente é verdade que dia pode significar “período de tempo” em muitos trechos do Antigo Testamento, mas isso não demonstra que dia deve necessariamente ter tal significado em Gênesis 1. (2) O sexto dia da criação não precisaria ter tido mais de vinte e quatro horas, especialmente se Adão só deu nomes aos principais tipos representativos das aves e de “todos os animais selváticos” (Gn 2.20). (3) Embora não houvesse sol para demarcar os três primeiros dias da criação, assim mesmo a terra girava sobre o seu eixo numa velocidade fixa, e havia a “luz” e as “trevas”, que Deus criara no primeiro dia (Gn 1.3-4), chamando “dia” à luz e “noite” às trevas (Gn 1.5). Assim Deus, de algum modo, engendrou uma alternância entre dia e noite desde o primeiro dia da criação, segundo Gênesis 1.3-5.
Que devemos então concluir quanto à extensão dos dias de Gênesis 1? De modo nenhum parece fácil decidir com as informações hoje disponíveis. Não é simplesmente uma questão de “acreditar na Bíblia” ou “não acreditar na Bíblia”, nem uma questão de “ceder à ciência moderna ou “rejeitar as claras conclusões da ciência moderna”. Mesmo para aqueles que crêem na absoluta confiabílidade das Escrituras (como este autor), e que abrigam alguma dúvida a respeito dos períodos excepcionalmente longos que os cientistas propõem para a idade da terra (como este autor), a questão não parece fácil de resolver. No momento, as considerações do poder da palavra criadora de Deus e da instantaneidade com que parece produzir resultados, o fato de “tarde e manhã” e da numeração dos dias sugerir também dias de vinte e quatro horas, e o fato de Deus aparentemente não ter nenhum motivo para adiar a criação do homem por milhares ou mesmo milhões de anos — tudo isso me parecem fortes argumentos a favor da tese do dia de vinte e quatro horas. Mas mesmo aqui há bons argumentos do outro lado: para aquele que vive para sempre, para quem “um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia” (2Pe 3.8), que se compraz em gradualmente realizar os seus desígnios ao longo do tempo, talvez 15 bilhões de anos sejam precisamente a extensão de tempo certa para preparar o universo.