Deus Pai é causalmente anterior ao Filho?

Biblia

O senhor afirmou que “uma boa maneira de expressar a prioridade de Deus sobre a criação é que Deus é causalmente, mas não temporalmente, anterior ao começo do universo” (Seção de perguntas e respostas: “Criação e tempo”).

Além disso, J. P. Moreland em seu livro Scaling the Secular City [Escalando a cidade secular] também afirmou que “anterior ao primeiro evento — onde anterior significa ‘ontologicamente anterior’, não ‘temporalmente anterior’ — não havia tempo, espaço, nem mudança de nenhuma espécie” (p. 41).

1) Que diferença há entre dizer que Deus é causalmente anterior, ontologicamente anterior ou temporalmente anterior ao universo? O senhor poderia definir cada uma dessas expressões, i.e., causalmente anterior, ontologicamente anterior e temporalmente anterior? Além disso, causalmente anterior e ontologicamente anterior seriam sinônimas?

2) Dizer que “Deus é causalmente anterior ao universo” é o mesmo que “Deus é a causa do universo”? Ou seria possível a Deus ser a causa do universo, mas não ser causalmente anterior ao universo? Se possível, como?

3) Como o senhor interpretaria Judas 1.25: “ao único Deus, nosso Salvador, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor, sejam glória, majestade, domínio e poder, antes de todos os séculos, agora e para todo o sempre. Amém.”, i.e., “antes de todos os séculos”? Seria possível dizer “antes de todos os séculos” sem implicar um tempo “antes de todos os séculos”? Se possível, como?

4) Ainda, como o senhor interpretaria o Credo Niceno “[…] gerado do Pai antes de todos os séculos […]”?

5) Pelo menos alguns dos Pais da igreja primitiva pareciam crer que, na Trindade, o Pai é a fonte/causa do Filho. Por exemplo, João de Damasco em An Exposition of the Orthodox Faith [Uma exposição da fé ortodoxa], Livro 1, Capítulo 8, “Da Santa Trindade”, declara:

“Com isso queremos dizer que o Filho é gerado do Pai, e não o Pai, do Filho, e que o Pai é naturalmente a causa do Filho: exatamente como dizemos que não é o fogo que procede da luz, mas, antes, a luz, do fogo. Assim, pois, sempre que ouvirmos dizer que o Pai é a origem do Filho e maior do que o Filho, entendamos o seu significado com respeito à causação. E da mesma maneira que não afirmamos que o fogo é de uma essência e a luz de outra, logo não podemos dizer que o Pai é de uma essência e o Filho, de outra: mas os dois são de uma única e mesma essência”.

Agostinho também declara em “A Sermon to Catechumens on de Creed” [Sermão aos catecúmenos a respeito do credo]:

Imaginem o fogo como um pai e seu brilho como um filho; vejam, acabamos de achar os coetâneos. Desde o instante que o fogo passa a existir, nesse instante ele gera um brilho: não existe o fogo antes do brilho, nem o brilho depois do fogo. E se perguntarmos, qual deles gera o outro? O fogo gera o brilho, ou o brilho, o fogo? Vocês compreendem de imediato pelo sentido natural, pela perspicácia inata de sua mente, e gritam: O fogo gera o brilho, não o brilho, o fogo. Mas, vejam, eis o pai começando; observem, eis o filho começando ao mesmo tempo que ele, não vindo nem antes nem depois. Olhem, eis então o pai começando, percebam, o filho começando ao mesmo tempo. Se lhes mostrei um pai começando e um filho começando ao mesmo tempo, creiam no Pai não começando e com Ele o Filho não começando também; um é eterno, o outro, coeterno.”

Portanto, o senhor descreveria a visão de João de Damasco e de Agostinho acerca da Trindade, nas quais o Pai é a fonte/causa do Filho, como:

a) O Pai é causalmente anterior ao Filho? Por quê/por que não?
b) O Pai é ontologicamente anterior ao Filho? Por quê/por que não?
c) Como o senhor descreveria a visão de João de Damasco e de Agostinho acerca da Trindade, uma vez que para ambos o Pai é a fonte/causa do Filho?

Paul

Que pergunta interessante! Abordarei suas indagações na sequência.

1. A prioridade causal tem a ver com o que se chama de direcionalidade causal. Quer dizer, se A e B estão relacionados causalmente como causa e efeito, seria A a causa de B ou B a causa de A? A prioridade temporal tem a ver com se A é ou não anterior a B. Observe que, mesmo se A e B existirem ou ocorrerem ao mesmo tempo, não existindo, portanto, prioridade temporal de um sobre o outro, a pergunta da prioridade causal ainda faz sentido. Tomando emprestada uma ilustração de Kant, uma bola pesada repousando em cima de uma almofada é a causa da depressão na almofada, mesmo que a bola esteja sobre a almofada desde a eternidade passada. Alguns filósofos, que acreditam que o futuro é tão real como o passado ou o presente, pensam que é possível haver casos em que a prioridade causal acontece na direção oposta à prioridade temporal: primeiro ocorre o efeito e mais tarde vem a causa, de modo que, embora A seja causalmente anterior a B, B é temporalmente anterior a A! No que diz respeito à prioridade ontológica, isso indicaria que a existência de um ser pressupõe a existência de outro ser. Acho que, nesse contexto, vem a ser basicamente a mesma coisa que prioridade causal. (Em outro contexto, alguém poderia dizer, por exemplo, que uma substância ou coisa é ontologicamente anterior às propriedades da coisa.)

2. Afirmar que Deus é causalmente anterior ao universo é o mesmo que dizer que Deus é a causa do universo.

3. Amo Judas 25! Esse versículo esquematiza basicamente a visão da eternidade divina que eu defendo, ou seja, que Deus existe atemporalmente sem a criação e, para sempre no tempo desde o princípio do tempo na criação. Ele emprega um perdoável façon de parler (modo de dizer) para descrever o estado de Deus existindo sem o universo como “antes” do tempo. O filósofo entenderá que essa é uma expressão da linguagem comum que revela a ideia de que o tempo teve um princípio, ao passo que Deus não o teve.

4. A noção de o Filho ter sido gerado eternamente do Pai, que aparece no Credo Niceno, é um vestígio da cristologia primitiva do Logos dos primitivos apologistas gregos, homens como Justino Mártir, Taciano e Atenágoras. Já discuti esse desenvolvimento no capítulo sobre a Trindade em meu livro Philosophical Foundations for a Christian Worldview (IVP: 2003) [Filosofia e cosmovisão cristã, Vida Nova], versão ampliada do artigo que você encontrará neste site em “Scolarly Articles: Christian Doctrines” [Artigos acadêmicos: Doutrinas cristãs].

Os apologistas gregos tentavam explicar a doutrina da Trindade sustentando que Deus Pai, existindo sozinho sem o mundo, tinha em si mesmo a sua palavra ou razão (grego: logos), ou sabedoria (cf. Pv 8.22-31), que de alguma maneira procedeu dele, como a palavra falada que procede da mente do falante, para se tornar um indivíduo distinto que criou o mundo e, por fim, se tornou encarnado em Jesus Cristo. A processão do Logos vinda do Pai era entendida de forma variada como havendo ocorrido no instante da criação ou, como alternativa, eternamente. O Espírito Santo também seria entendido como procedente da mente de Deus Pai. Eis como Atenágoras o descreve:

O Filho de Deus é a Palavra do Pai em Forma Ideal e poder vitalizante; porque na sua semelhança e por meio dele todas as coisas vieram à existência, o que pressupõe que o Pai e o Filho são um. Ora, estando o Filho no Pai e o Pai no Filho pela unidade poderosa do Espírito, o Filho de Deus é a mente e a razão do Pai […] Ele é o primeiro gerado do Pai. O termo é usado, não porque ele veio à existência (pois Deus, que é mente eterna, tinha em si mesmo a sua palavra ou razão desde o princípio, portanto ele era eternamente racional), mas uma vez que ele veio para servir como Forma Ideal e Poder Vitalizante, para tudo o que é material […]. O […] Espírito Santo […] consideramos como uma efluência de Deus que emana dele e retorna como um raio de sol (A Plea for the Christians 10 [Um apelo em favor dos cristãos]).

Assim, segundo essa doutrina, há um único Deus, mas ele não é uma unidade indiferenciada. Antes, certos aspectos de sua mente são expressos como indivíduos distintos.

A doutrina do Logos abraçada pelos apologistas envolve uma reinterpretação fundamental da paternidade de Deus: Deus não é meramente o Pai da humanidade e nem mesmo, especialmente, o Pai de Jesus de Nazaré, mas é o Pai do qual o Logos é gerado antes de todos os mundos. Cristo não é meramente o filho unigênito de Deus em virtude da sua encarnação; pelo contrário, ele é gerado do próprio Pai na sua divindade pré-encarnada. Essa visão consagrou-se no Credo Niceno como ortodoxa.

5. Os protestantes trazem todas as declarações doutrinais, até mesmo os credos conciliares, perante o tribunal da Escritura. Nesse caso, é preciso afirmar honestamente que nada na Escritura nos dá a garantia para pensar que Deus Filho é gerado do Pai em sua natureza divina e não meramente na sua natureza humana. Quase a totalidade dos eruditos contemporâneos do Novo Testamento reconhece que, se a palavra tradicionalmente traduzida como “unigênito” (monogenes) portasse a conotação de derivação quando usada no contexto familiar — em oposição ao mero sentido de “único” ou de “singular”, como defendem muitos eruditos —, ainda assim, a referência bíblica a Cristo como monogenes (Jo 1.1,14,18; cf. Ap 9.13) não contempla nenhuma pré-criação nem processão eterna do Filho divino advindo do Pai, mas tem a ver com o Jesus histórico ser filho especial de Deus (Mt 1.21-23; Lc 1.35; Jo 1.14,34; Gl 4.4; Hb 1.5-6). O apóstolo João, em 1João 3.18, refere-se de fato a Jesus como ho gennetheis ek tou theou (o unigênito de Deus), que é a expressão crucial, mas não há nenhuma sugestão de que tal geração seja eterna ou de que tenha algo a ver com sua natureza divina. Ao contrário, a condição de Cristo ser o Unigênito tem menos relação com a Trindade do que com a encarnação. Esse entendimento primitivo de Cristo como ser gerado é ainda evidente na descrição que Inácio faz de Cristo como “Médico único, de carne e de espírito, gerado e não gerado, […] tanto de Maria como de Deus” (Aos Efésios 7). Não há aqui nenhuma ideia de que Cristo seja gerado em sua natureza divina. De fato, a transferência que os apologistas fazem da filiação de Cristo, de Jesus de Nazaré, para o Logos pré-encarnado tem contribuído para depreciar a importância do Jesus histórico para a fé cristã.

Em termos teológicos, segundo me parece, a doutrina da geração do Logos a partir do Pai, apesar de garantias ao contrário, consegue apenas diminuir o status do Filho, porque ele se torna um efeito contingente sobre o Pai. Mesmo que essa processão eterna ocorra necessariamente e à parte da vontade do Pai, o Filho é menos do que o Pai, pois o Pai sozinho existe em si mesmo, ao passo que o Filho existe mediante outro. Esse ser derivado existe da mesma maneira que as coisas criadas existem. Apesar dos protestos contrários, a ortodoxia nicena não parece ter exorcizado totalmente o espírito de subordinação introduzido na cristologia pelos apologistas gregos.

Por essas razões, os teólogos evangélicos tendem a tratar a doutrina da geração eterna do Filho a partir do Pai com uma negligência benigna. Se decidirmos de fato eliminar de nossa doutrina da Trindade a geração e processão eternas do Filho e do Espírito a partir do Pai, como interpretaremos as relações intratrinitarianas? Nesse ponto, acho que seja útil distinguir entre a Trindade ontológica e a Trindade econômica. A Trindade ontológica é a Trindade conforme existe por si mesma à parte da relação de Deus com o mundo. A Trindade econômica está relacionada aos diferentes papéis interpretados pelas pessoas da Trindade com relação ao mundo e, especialmente, com relação ao plano da salvação. Na Trindade econômica há subordinação (ou, talvez seja melhor dizer, submissão) de uma pessoa à outra, assim como o Filho encarnado faz a vontade do Pai e o Espírito fala, não por sua própria conta, mas em nome do Filho. A Trindade econômica não reflete diferenças ontológicas entre as pessoas; pelo contrário, é uma expressão da amorosa condescendência de Deus em prol da salvação. O erro da cristologia do Logos está em combinar a Trindade econômica com a Trindade ontológica, introduzindo a subordinação na natureza da própria Divindade.

Portanto, não considero Deus Pai nem como ontologicamente nem como causalmente anterior a Deus Filho, e entendo as visões de Agostinho e do damasceno como extrabíblicas e infelizes.

William Lane Craig – Extraído de: www.reasonablefaith.org

Sair da versão mobile